terça-feira, 16 de agosto de 2022

O último Rivera

                                                        


Autor João Ribeiro.

Goiânia- GO
































Goiânia-GO

 2014


DIREITOS RESERVADOS

É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer meio, sem a autorização prévia e por escrito do autor. A violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo

artigo 184 do Código Penal.

Impresso no Brasil

Printed in Brazil

2014

João  Ribeiro 

 O último Rivera. - JoãoRibeiro. - Goiânia: /

Kelps, 2014

240 p.

ISBN:

1. Literatura brasileira. Romance. I. Título.

CDU:

CIP - Brasil - Catalogação na Fonte

BIBLIOTECA PÚBLICA ESTADUAL PIO VARGAS

Índice para catálogo sistemático:

CDU: 




                                                                  O último Rivera





O último Rivera traz a história de um adolescente que cresceu sem conhecer seus pais biológicos, e fora adotado aos dez anos de idade, por um senhor solitário que o tem como seu neto estimado.

Na busca para descobrir sua verdadeira origem e encontrar seus pais, ele deixa Goiânia e vai á São Paulo e se depara com o drama de mulheres que conviveram com o filho do senhor que o adotou.

Revolvendo as cinzas do passado, Ângelo se vê numa misteriosa história de traições, seduções, ambições, mortes e segredos á serem revelados.


“meu amiguinho, através das sombras se chega ás cabeças que ás guiam e aos corpos que se movimentam” – Ângelo recordou abraçado á ela.


















                                                                                01





Monsenhor Olavo era descendente de uma linhagem feudal. Quem o conhecia sabia que seu pai, Monsenhor Bento, como era chamado por todos que o conheceram, era um homem cruel, impiedoso, que explorava seus funcionários com trabalho árduo em suas plantações de café e cana de açúcar, e que tomava para si suas mulheres, para com elas conseguir ter filhos herdeiros de seus bens. Tanta riqueza não era suficiente para dar á ele a tranquilidade e bem estar.

Com uma das muitas mulheres, Monsenhor Bento teve Olavo, seu único filho. Aos dezoito anos de idade, Olavo tornou-se órfão de pai e mãe. Monsenhor Bento e Monsenhora Gertrudes morreram após comerem a alimentação noturna envenenada. Olavo herdara de Monsenhor Bento toda a fortuna acumulada, adquirida sem empreendedorismo ou trabalho honesto. Algumas pessoas da época diziam e afirmavam que Olavo teria sido o responsável pelas mortes dos seus próprios pais.

Olavo conferia as planilhas do rendimento mensal de suas indústrias de metalurgia. A mesa de madeira de lei bem talhada, com pernas torneadas, feita por mãos hábeis de um talentoso artesão, estava forrada de papéis que informavam seus ganhos, despesas e lucros, quando uma ordem de pagamento de um valor irrisório o chamou a atenção.

-Mas o que é isso que eu vejo? –perguntou a si mesmo ao conferir o valor pago por aquela mesa espaçosa e bem talhada. –Cinco contos por uma mesa tão bem feita.  Do que Plates Rivera sobrevive? De comer serragem e lascas de madeira, só pode.

Para ele, Cândido Plates Rivera era de origem desconhecida. O mais que Monsenhor Olavo sabia á respeito do artesão caprichoso era que ele seria um mero lenhador que vivia em uma região de difícil acesso.

-Recebedor Cândido Plates Rivera. –levantou-se da cadeira e foi ao arquivo de notas, pegou todas as pastas e seguiu procurando tudo que fizesse menção de pagamento á Plates Rivera.

Duas horas depois, já com a mesa abarrotada de folhas de pagamentos, Monsenhor conferiu todas e encontrou registros de pagamentos na ordem de valores baixos, mas na soma de todos eles, o total era exorbitante, podendo fazer do simples lenhador o homem mais rico de todo o estado de São Paulo.

Quando terminou a conferência ele constatou que todos os móveis de seu escritório, as máquinas, a lenha que era queimada nas fornalhas, a terra prensada e processada que moldava as peças produzidas, e até a água utilizada nas caldeiras de suas indústrias, eram fabricados e fornecidos por Plates Rivera.

-Como pode... –disse, levando as mãos aos cabelos que cobriam sua testa já úmida do suor provocado pela estupefação causada pela descoberta. –Cândido Plates Rivera. –falou recostando-se a cadeira almofadada. -Maldito. -praguejou ele se levantando. –Ele é mais rico do que eu. -pegou a bengala e o chapéu e abandonou o escritório.

Quando ele chegou sozinho em seu casarão, encontrou Gorete com três de seus quatro filhos jogando cartas e bebendo conhaque na sala em volta de uma mesa de madeira que também havia sido feito por Cândido Plates Rivera. Seu filho Galdino não estava entre eles.

De cara amuada entrou e mandou que seus filhos saíssem.

-Alguma coisa te preocupa?

-Sim Gorete. Plates Rivera. Um deus qualquer o ensinou o segredo para ter o domínio dos elementos.

Gorete ficou encucada, mas em silêncio se levantou e foi á cozinha e chamou Otero, Norato e Ferreira para se reunirem com eles á mesa novamente. Olavo pigarreou limpando a garganta, e todos entenderam que ele não estaria disposto á compartilhar suas descobertas com seus filhos.

-Saiam vocês três. E não me dêem as caras aqui hoje.

Nenhum dos filhos contestou a ordem do pai. Gorete os viu deixando a sala e, uma curiosidade instigante entrou de súbito na mente dela.

-Anda homem, diz logo o que é que tem te deixado tão aborrecido. Eu tenho que passar algumas ordens á criadagem.

-Sente aqui e se aquiete mulher. E vê se preste sentido no que eu vou dizer á você. –disse, levando a mão á garrafa de conhaque.

Gorete sentou na cadeira na outra extremidade da mesa, deu um nó nos cabelos lisos e os jogou ás costas para então expressar sua falta de fé na conversa de seu marido.

-Homem, homem, não me diga que você já está bêbado antes de começar á beber. –ela o alertou.

-Cale essa boca, mulher, e me escute. – ordenou e mandou a mão nas cartas do baralho, jogando-as ao piso. -O segredo terá de ser repassado de geração á geração. Isso quer dizer que existe um manuscrito guardado á sete chaves, e, ele está em poder de Plates Rivera. -  levantou-se procurando o chapéu e a bengala, mas se lembrou de que os havia deixado aos cuidados do seu serviçal.

A pele branca igualmente á agua de arroz, de Gorete, ganhou um tom ainda mais embaçado. Ela ajuntou a saia preta de tecido pesado entre as pernas, e arqueando as sobrancelhas finas como risco de esferográfica, bateu na mesa com as duas mãos.

-Eu sou quem devia ter ido pra cama com Cândido Plates Rivera.

-Ora, sua muxibenta, Plates Rivera não te levaria pra cama nem que você fosse a única mulher nesse mundo. –falou e fez algumas cartas do baralho lamberem o rosto dela. Em seguida engoliu uma boa dose de conhaque.

-Pois fique sabendo que eu só preciso de um macho reprodutor para...

-Feche a matraca, rabugenta. Eu não posso falhar.

-Larga a mão de acreditar em desejos que não se cumprem, homem.

-Está se aproximando o grande dia de eu ser mais rico do que Plates. –disse batendo palmas e se apressou em engolir o último gole.

-Eu vou ao encontro de Cândido Plates Rivera para dormir com ele e me engravidar de um filho dele.

-Relaxe os ânimos. –disse Monsenhor Olavo disfarçando o ódio que lhe corroia por dentro. –Darei uma festa e providenciarei para que todos os moradores, desde o Braz á divisa com o Paraná, estejam presentes nessa festança.  -ele girava dentro da sala, e, em cada móvel que ele olhava parecia ter as digitais de Cândido Plates Rivera.

A lenha na lareira ardia em chamas, entre as labaredas ele via a imagem ilusória do possuidor do segredo da prosperidade.


As ruas do bairro já fervilhavam de pessoas subindo e descendo. A maioria das pessoas estava indo em direção a festa na casa de Monsenhor Olavo. O quiosque ficava com as mesas e cadeiras ocupadas. Denilton, o festeiro contratado por Monsenhora Gorete, sempre começava a festa com música agitada para os festeiros dançarem, suar e esgotar o estoque de bebidas. Como chamariz de clientes, Olavo contratou Luana, uma loira provocante para ser a garçonete. Com esta estratégia comercial ele conseguia vender muitas doses de bebida. As pessoas se apinhavam na pista de dança. Nas laterais do lote, garotas e rapazes trocavam ideias e faziam comentários sobre os demais que ali estavam. Alguns dançavam em qualquer ponto fora da pista de dança. Na rua, pessoas surgiam feito formigas em formigueiros. Carros com superlotação paravam e desembarcavam os passageiros loucos para caírem na farra, garotos faziam de espelho o vidro do carro, para ajeitar as roupas no corpo, as garotas conferiam o visual umas das outras.

Dolores, moça recatada e cobiçada pela maioria dos rapazes que viam na beleza dela a oportunidade para agradar seus pais dando á eles a nora perfeita, no ponto de vista de formosura e índole moral. Ela passou a sua irmã Iolanda alguns detalhes sobre Plates, até porque, tudo que ela sabia sobre o enamorado era que ele era um rapaz surpreendente no ponto de vista intelectual. Ele tinha uma boa conversa, sabia se expressar muito bem e estava escrevendo uma história á qual ela não ficaria sabendo o conteúdo do manuscrito, mas deu para ela notar que Plates tinha certo conhecimento sobre a vida em geral.

Ela usara meias verdades com Iolanda, dizendo apenas que os dois haviam se conhecidos no domingo, mas que eles não tiveram muito tempo para conversar. Com certeza, ela já se sentia realmente feliz. Depois de mais um pouco de conversa com uma amiga, Dolores se juntou aos outros, no quiosque da festa.

-Olá pessoal. –Dolores cumprimentou aos que ocupavam ás cadeiras em voltas das duas mesas.

-Até que enfim você resolveu dar o ar da graça. –disse Antônia pegando no braço dela.

Ao olhar para todos em volta da mesa, ela notou a ausência de Iolanda e Plates.

-Onde está a Iolanda. –Dolores perguntou esperando que alguém pudesse responder onde estava o Plates também.

-Ela está dançando com o Rivera. –Doralice respondeu. – Olha lá, eles dançando. – mostrou os dois á Dolores.

Ao ver os dois dançando, Dolores sentiu um choque e um enrubescer no rosto, mas se conteve para que ninguém percebesse o seu mal estar, e se sentou ao lado de Doralice. Minutos atrás ela estava adorando aquela noite. Estar com suas amigas e os novos amigos em uma festa bacana, ao lado de pessoas bacanas, e de sua mãe que também fora bacana por não censurar o seu envolvimento com Plates. Enfim, estava tudo perfeito. Mas de repente tudo virou uma droga, sua irmã dançando uma droga de música romântica, com á droga de um rapaz. – não ele não é uma droga, mas que droga de irmã eu tenho?–Indignou–se.

Só lhe restou á difícil tarefa de ficar vendo Plates e Iolanda dançando coladinhos.

Plates Rivera era um dos muitos jovens presentes no baile. Seu aspecto gentil, de feições dóceis, juntamente com seu estilo de se vestir: calça de linho bem engomada, na cor bege, camisa de viscose cor de beterraba, tornava-o um personagem em destaque em meio à multidão. Ele já havia passado por experiências que ele jamais sonhara passar. Nos primeiros minutos da festa, uma garota chamada Soraia segurou em sua mão e, ela parecia querer passar a noite com ele, só não passou porque á irmã gêmea dela passou mal depois de ingerir algumas bebidas, por isso elas tiveram que ir embora mais cedo, mas ficou marcado entre Plates e Soraia que numa próxima ocasião, os dois se conheceriam melhor. De repente ele deparou com Dolores, e numa abordagem despretensiosa, ele conseguiu entender que ela ficara interessada nele. Na mesa do quiosque, a garçonete mais provocante, mais sensual, mais bonita e mais outras coisas que ele já teria visto, se sentou na frente dele de minissaia, que causava frisson até em criança de dois anos de idade, não a minissaia, mas sim o que ela não cobria, e, aquele pedaço de bom ou mau caminho, chamado Luana, deu lhe três beijos no rosto, e depois insistiu para lhe ensinar a dançar, e quem sabe, até, como degustar batom vermelho cereja direto dos lábios dela. Bem que o Galdino me disse que eu sou mole.

Mesmo se sentindo traída pela irmã e por Plates principalmente, Dolores não quis entrar no jogo de cena de ciúmes. Seria baixeza de sua parte, e por outro lado, os dois só estavam dançando, não houve beijos, nem afagos. Foram apenas duas músicas, a terceira estava começando. –pode ser que depois da terceira, acabe essa droga de música Bonequinha de seda e eles voltem para as mesas, e talvez, quem sabe, o Plates me chame para dançar e me esclareça tudo que meus olhos veem.

-Vamos dançar Dolores? –José a convidou.

-Não. Obrigada.

-Quê isso? Só essa.

Diante da insistência dele, Dolores ia dizer que estava esperando o Plates, mas ela mudou de ideia.

-Sabe o que é José? É que meus pés estão doendo muito. –mentiu.

-Tudo bem então. Tchau.

-Senhorita Dolores, vamos dançar que eu quero te falar um negócio. –Tarcísio propôs.

-Não Tarcísio, eu não quero dançar. Abaixa aqui, me deixa contar o por quê. Tarcísio aproximou o ouvido á boca dela. Ela cochichou alguma coisa e o fez entender o motivo por ela não querer dançar com ele.

-Ah sim. Entendi. –Tarcísio se sentou ao lado de José, deixando desocupada a cadeira do lado de Dolores.

-Dolores, por que você não vai dançar um pouco? –Matilde perguntou.

Dolores inclinou-se em direção á mulher para ninguém ouvi-la dizer baixinho.

-Senhora Matilde, você sabe que eu não sei dançar direito.

-Aprende, oras! – Matilde sussurrou se inclinando também.

-Não. –decidiu se ajeitando na cadeira e acomodando os cabelos atrás das orelhas.

Um homem vestindo camisa de mangas longas abotoadas até aos pulsos e calçado em sapatos incolores, elegantemente se aproximou.

-Licença. –pediu á Gervásio e Antônia. –Vamos dançar senhorita. –convidou á Matilde.

-Perdão, mas eu sou uma mulher casada.

-Mil desculpas. Eu pensei que você fosse solteira.

A educação do cavalheiro Monsenhor Olavo fez com que todos olhassem para Matilde e antes que ele se retirasse, ela resolveu aceitar o convite.

-Tudo bem. –levantou–se. –Vamos dançar sim. –ajeitou a saia e a blusa no corpo, deu a mão á Monsenhor e o acompanhou até a pista. Os dois se aparelharam de forma respeitosa. Monsenhor colocou uma mão no quadril de Matilde. Ela segurou em seu ombro com a mão direita e com a esquerda segurou a mão direita dele. Seus corpos não se tocavam e eles dançavam.

-Pessoal, abrem alas porque Monsenhor Olavo está na pista com uma linda dama, provando á todos que ele também sabe viver a vida. –Denilton anunciou os pés de valsas.

Gervásio e senhora Antônia até estavam dançando igual à Matilde e Monsenhor Olavo.

Plates observou os dois casais por alguns segundos. Aquele jeito de os casais dançarem não lhe parecia correto. Principalmente o par Olavo e Matilde. Matilde estava quase que hipnotizada olhando para o rosto dele. Ele movimentava os lábios, mas não como quem cantava a música Bonequinha de seda, que os dois dançavam.

Iolanda quis imitá-los, porém, Plates disse que ele não podia acompanhar o compasso dos dois, e foi logo  puxando-a pelo braço em direção ao quiosque.

Quando Plates e Iolanda chegaram ocupando as cadeiras, Dolores se sentiu aliviada ao ver Plates se sentando ao seu lado. O sufoco queria ir embora, mas apenas uma explicação convincente de Plates poderia expulsá-lo de vez. No entanto, antes que ele começasse a dizer algo, eis que surgiu a garçonete. Ela inclinou-se á ele.

-E aí Plates, aprendeu como se dança? –perguntou juntando os copos vazios.

Dolores ouviu a voz quase sussurrada da loira e entendeu a pergunta.

-Aí gente, vamos embora daqui. Já é tarde. –disse ela se levantando.

-Espera Dolores. Agorinha a gente vai. -pediu Plates pegando na mão dela.

Dolores sentou-se novamente evitando olhar para alguém. A garçonete Luana continuava em pé ao redor da mesa, parecia não perceber que sua presença estava desagradando. Ou ela era uma “songa monga” ou era uma tremenda provocadeira de êxtase e confusão. A segunda opção seria mais cabível á ela.

Tarcísio olhou para Luana.

-Tem cliente lá no balcão. –avisou.

-Ah... –se ligou. –Tchau!

Plates cruzou os braços e manteve-se ereto sobre a cadeira. Dolores ainda estava tensa, seus calcanhares não tocavam o piso, suas pernas tremiam. Sua mão direita servia de apoio para o cotovelo esquerdo. A mão esquerda deslizava por toda parte de seu rosto. Ela estava nervosa.

Plates resolveu agir por impulso

-Vamos dançar Dolores.

-Não. –secamente não, foi o que ela disse. –Eu não quero dançar com você. Definitivamente não.

Plates se levantou e saiu sem dizer nada á ela e nem á ninguém.

Otero, Norato e Ferreira foram atrás dele.

-O que foi Dolores?

-Iolanda, chega. Eu quero ir embora.

-Ah Dolores, a festa está tão boa.

-Senhora Doralice, a festa está uma droga. Tudo aqui está uma droga.

A noite ainda era uma criança. A festa estava lotada de gente dançando a primeira seleção de música romântica.

Plates, Otero, Norato e Ferreira, ficaram encostados no carro. Plates observava em silêncio o vai e vem das pessoas. Entre as que passavam, havia muitas garotas bonitas e outras nem tanto. Ao pensar no fora que ele levou de Dolores, desejou ser como José que não escolhia as garotas para abordá-las e conquistá-las, por achar que todas as meninas eram lindas, sem exceções.

Talvez ele pudesse também ser igual a Tarcísio, o bom de lábia que não levaria mais que dez minutos para conquistar uma garota e ainda se dava ao trabalho ou ao luxo de avaliar se o comportamento dela era compatível ao dele, liberal e não procurava relacionamento sério.

Ele não ia pedir desculpas para Dolores e assumir que estava errado, afinal de contas, ele nem fazia ideia de onde foi que errou. Se tratando de garotas e paqueras, ele não tinha malicia suficiente ou quase nenhuma para compreender se havia feito algo de errado e que fosse tão grave assim para Dolores ter lhe dito não daquele jeito.

-O que foi Plates? –Otero perguntou preocupado.

-Não se preocupem comigo. É besteira. A festa ainda não acabou. Vamos aproveitar a noite.

-A senhorita Dolores está vindo para cá. –Norato o avisou.

-Rivera. –Dolores falou chegando á ele. –Me perdoe, eu jamais direi não á você.

Os três amigos de Plates resolveram deixá-los á sós, e voltaram para o baile.

-Dolores, eu vou te falar algo e quero que você me acredite...

Ela interrompeu a fala dele e o beijou.

Uma noite de festa, a qual tinha tudo para ser uma noite comum para Rivera, que não se sentia nem um pouco ansioso para dançar pela primeira vez, pegar na mão de uma garota pela primeira vez, ganhar três beijos no rosto da garçonete mais bonita que ele viu na vida, e beijar a boca de Iolanda com sabor de chiclete. E tudo isso em uma noite apenas. Seria o suficiente para fazer qualquer iniciante na arte das conquistas, ficar satisfeito e não querer nada mais. Mas Rivera queria mais. Se fosse possível, ele trocaria todas as conquistas daquela noite por aqueles breves instantes, que ele tinha Dolores em seus braços. Os lábios e a boca de Dolores não tinham sabor nem cheiro de menta, como a de Iolanda. Ele não sabia ao certo qual era o sabor, mas sua boca se movia para um lado e outro, procurando o encaixe perfeito na boca de Dolores que estava sendo beijada por um rapaz encantador e muito interessante.

Por alguns segundos, todo o pescoço de Cândido se achou envolto nos braços de Dolores. Ele a abraçou, não do modo que abraçara Iolanda. Seus braços pressionavam o corpo de Dolores, fazendo-o unir mais ao seu. Suas mãos deslizavam nas costas dela em movimento suaves e às vezes de modo a deixar as marcas dos dedos na camiseta branca que ela vestia. A emoção do momento fazia com que os dois desejassem nunca ter fim aquele abraço.

Terminando o beijo, Dolores confidenciaria algo á ele.

-Não se culpe por isso.

-Dolores, vamos menina!– Antônia a chamou. Vem com a gente, Rivera!

-Ficarei um pouco mais. Tchau senhora Antônia.  – disse Rivera acenando com a mão.

-Já vou. –disse Dolores, e foi.

Passado alguns segundos Galdino chegou á Rivera.

-Rivera, não deixe que Iolanda vá de carona naquele carro sem você. A trava da porta do lado dela não funciona.

Rivera chamou Iolanda que estava sentada no banco traseiro do automóvel. Ela o escutou e voltou até á ele.

-Fique mais no baile. Eu te deixarei em sua casa.

-Mas, as senhoras estão me esperando, e...

-Iolanda, você não vem com a gente, mocinha?

-Ela ficará comigo só mais um pouquinho, senhora Matilde.

-Então tchau para vocês.

-Que bom. – disse Iolanda muito feliz, e o abraçou.

Dolores voltou aos dois.

-Oi Iolanda! – disse ela enxugando as mãos suadas em seu vestido.

-Oi Dolores, é você.

Iolanda deu um beijo no rosto de Rivera e colocou um bilhete no bolso dele.

-Tchau Rivera.

Dolores ficou de braços cruzados, olhando para ele, com cara de quem não gostou do que viu.

-Rivera, me desculpa. – ela pediu abraçando-o. –Nós dois não podemos namorar. Você pode namorar a Iolanda. Eu conversei com ela e estou ciente do que terei que fazer por mim, por você, por ela e... só Deus sabe por quem mais.

-As senhoritas Matilde, Doralice, uma delas é a mãe de vocês duas?

-Não. Elas são nossas vizinhas. Agora eu tenho que ir. Rivera, eu sempre amarei você.  –Dolores confessou e o beijou, de lábios nos lábios.

Quando ela se foi, ele leu o bilhete que Iolanda havia colocado no bolso da camisa dele. “Rivera, eu estou grávida e...”

Então ele viu Antônia, Doralice e Matilde entrando no carro para irem embora também.

Naquela noite, num trecho da estrada, as três senhoras casadas, bem novas, mães de filhos pequenos, todas elas morriam, vítimas do acidente com o carro que Matilde dirigia. Os esposos das três mulheres eram sócios de Monsenhor Olavo. De modo misterioso, Jerônimo, Sebastião e Anastácio, os esposos das respectivas mulheres, também foram encontrados mortos apunhalados em um canavial.

Numa noite de festa, seis pessoas, sendo três casais, tiveram suas vidas ceifadas de modo trágico e misterioso.



                                                                               03


Outubro do ano 1965

Monsenhor Olavo já gordo, surrado pelo tempo, e sanguíneo desde a pele enrugada aos olhos afogueados, em seu escritório, sentado detrás de sua velha, porém conservada mesa, recordava dos inúmeros assassinatos que ocorreram para que ele pudesse tomar posse do que pertenciam aos mortos, mas, ele nunca assumiu a autoria dos crimes. Ele não se abastava de dinheiro e, toda a herança herdada de seu pai, ele não queria que fosse dividida com Galdino, o mais velho dos seus quatro filhos.  Ele nutria grande admiração por Cândido Plates Rivera. No baile realizado anos atrás em sua residência, ele pretendia estabelecer um vínculo de amizade entre ele e Cândido Plates Rivera que estava no baile se entretendo com as mocinhas solteiras que por ali estavam também. Mas, Monsenhor Olavo perdera a oportunidade de conhecer Cândido pessoalmente, e de ter uma conversa com ele, por uma mera displicência da parte dele.

Monsenhor deu ordens ao gerente, de não comprar matéria prima ou qualquer outro produto fornecido por Plates Rivera. Dessa forma ele asseguraria sucesso com a proposta que ele faria ao grande empreendedor.  Com estratégia elaborada, determinado á conseguir descobrir o segredo da prosperidade que o levaria ao mais alto patamar de riqueza, convocou os três de sócios em negócios escusos, que conheciam o caminho para se chegar ao possuidor da sabedoria inesgotável. E juntos, eles foram ter com Plates Rivera onde ele habitava em uma de suas propriedades na zona rural da cidade, dalém de vales e regiões rochosas.

Pelos caminhos íngremes e acidentados, quatro homens seguiam viagem traçando planos para arrancar de Plates Rivera o segredo da prosperidade que estaria com ele guardado á setes chaves.

-Se ele não quiser nos revelar o segredo, nós teremos que arrancar dele á força. –Fulgêncio garantiu.

Risadas debochadas se propagaram dentro da mata fechada.

-Ele tem um herdeiro que se chama Augusto e é casado com a filha de meu filho Galdino.

-A sua esposa Gorete é bela, Olavo, mas, de nós quatro, só você tem herdeiros homens. –Amâncio o fez lembrar.

É uma rabugenta imprestável. Monsenhor pensava assim.

-Deixem de muita conversa. Levem-me até á ele, e eu incluirei todos vocês no negócio. – Monsenhor Olavo ofertou.

Depois de superarem muitos obstáculos, eles se depararam em terra coberta por vegetações verdes, árvores frondosas e de frutos saudáveis. Os quatro constataram tais riquezas de solo no final da travessia de uma ponte de madeira sobre um rio de água caudalosa circundando as férteis terras daquela região.

Cavalgando com facilidade mais alguns equitares de campo aberto e sem obstáculos naturais, os quatro admirados negociadores apearam dos animais e amarraram suas rédeas em um tronco aforquilhado transversalmente, próximo á um gigantesco barracão de madeira laminada, ao lado de uma humilde casinha também de madeira coberta de palha.

Cândido Plates Rivera era já um homem maduro, bem conservado em idade, aparentemente inofensivo. Ele estava no último degrau de uma escada sobre a plataforma de madeira que sustentava o monumento piramidal. Ele batia o martelo numa hélice de um moinho de vento. Ao ver chegando os homens bem agasalhados por compridos casacos pretos e botas de canos longos, Plates Rivera questionou a si mesmo o porquê de os estranhos estarem usando roupas de frio, num meio de tarde, quando ainda se podia sentir o calor do sol á aquecer seus corpos.

-Solte os animais cansados, sedentos e famintos, para que eles bebam água, comam e descansam. –disse Rivera já de pés sobre o tablado.

Os homens se entreolharam meio que abismados pela observação.

-As terras, águas e pastos por onde passamos não nos pertencem, e por isso nós não o fizemos. –Monsenhor anunciou.

-Ora. –disse ele pulando ao chão. –O que os senhores viram por onde passaram, e o que vêem agora, pertence á mim.

Surpreendidos, os quatro visitantes giraram em si mesmos para enxergarem toda a vastidão da planície circundando a pequena casa com chaminé e as acomodações para os animais e barracões, – talvez, para maquinários agrícolas, todos eles concluíram assim.

-Eu vim tratar de negócios com você. –adiantou Monsenhor.

-Vejo que montaram um consórcio, mas você fala por si só.

Monsenhor fez soar a garganta e cofiou o queixo. Os três homens cuidaram de soltar seus cavalos. Plates Rivera juntou o martelo, torquês, prumo e o esquadro no canto do tablado e se posicionou ereto na frente dos quatro homens. A postura imponente dele, com sua pele clara, porém amorenada pelo sol, e cabelos dourados, esvoaçantes ao vento, diante de quatro figurões robustos e temidos pelos moradores da cidade, os deixava incomodados, pois, Rivera não demonstrava estar com medo, mas, também não parecia tê-los como possíveis negociadores honestos.

-Digam o que querem de mim.

-Falar sobre sua técnica de empreendedorismo. Soubemos que você é um grande empresário, e, é sogro de minha neta, apesar de você ser novo ainda. –disse Monsenhor.

Plates Rivera olhou para o horizonte azul e em seguida fechou os olhos permanecendo em silêncio por uma curta fração de segundos. Quando seus olhos foram abertos novamente, ele via três pares de olhos a olhá-lo com admiração. Os olhos de Monsenhor transmitiam ódio misturado á pura inveja e espírito traiçoeiro. Cândido conhecia o mau caratismo e o espírito cruel de Monsenhor Olavo revelado á ele através de um simples toque de dança que Olavo e a senhora Matilde dançavam á 21 anos idos.

-Os seres humanos têm a natureza das coisas á seu dispor. Basta á eles saberem administrar os elementos. Vejam, sintam o ar que nos envolve. A terra que nós a pisamos. A água que corre no rio.  Pensem no fogo nas lareiras que aquece seus corpos em tempo de frio. –finalizou de braços abertos e olhando para o céu infinito.

Três dos ouvintes o seguiram com os olhares. Monsenhor se pôs de cabeça baixa á refletir. Para Monsenhor Olavo, o tempo seria mais que uma mera fração de horas, dias, meses e anos. Às vezes, dizia ele, o tempo sem dúvida seria a força criadora e aniquiladora; deus. Pois o tempo fere e também cura á ferida. Ele mata e dá a vida. É invencível e imortal. O tempo nunca envelhece e nem passa. Na verdade, tudo passa por ele, mas o tempo permanece para sempre. –Monsenhor concebia assim. “No princípio o tempo criou o vento. Do vento formou-se a água e ao espalhá-la surgiu a terra, e da terra o fogo se fez brotar. É isso, ele sabe o segredo.”

-Ensina-nos á administrar o tempo e os elementos. –Monsenhor pediu.

-Ora, senhores, será preciso dedicar suas vidas e se sacrificarem ao máximo para obterem os resultados almejados.

Monsenhor cuspiu no chão e montou no cavalo.


***


Com os cavalos reabastecidos os homens cavalgavam de volta á cidade, mas dessa vez por um caminho com precipitações e grotas capazes de engolir um eqüino e o montador. Monsenhor era o último da fila de cavaleiros. Alguém enfiou o ferrão na anca do animal á frente. O cavalo ferido empinou a dianteira, e, Genésio não conseguiu se segurar indo á cair em uma cratera. Foi o primeiro á ser descartado.

O caminho era longo, e, mais adiante, Fulgêncio sentiu sede, mas nenhum deles havia se provido de água. Na beira do rio ele se agachou para beber água. Bastou que alguém o empurrasse para que a água do rio caudaloso o levasse.

Era já noite quando Olavo e Amâncio embrenharam no escuro da campina e houve a necessidade de acender o lampião. Amâncio procurava o fósforo na bruaca, quando então ele sentiu uma pancada na cabeça dele, deixando-o desacordado. Querosene fora derramado em seu corpo e o fogo e transformou-o em uma tocha humana.


Ao chegar a sua casa bem cedo do dia, o gerente veio informar á Monsenhor Olavo, que os operários não foram trabalhar no dia anterior e nem compareceram ao trabalho pelo segundo dia.

-Eu irei á morada dele novamente e apossar-me-ei do segredo que com certeza está mofando dentro de um baú.

Depois de pronunciar palavras de maldição ele montou em seu cavalo e foi outra vez ao encontro de Plates Rivera e o encontrou ainda consertando o moinho de vento.

-Os meus funcionários se amotinaram contra mim, e a culpa é sua. –acusou, ainda sobre o lombo do animal.

Rivera, no topo da escada apertava um parafuso da hélice e dali mesmo ele daria o parecer dele.

-Tudo que eu aprendi eu ensinei á pessoas de boa conduta e sã consciência. Você e os homens que vieram com você ontem compravam produtos dos meus associados. Eu sobrevivo do pouco que cada um deles me repassa. Não preciso mais do que isso.

-Basta de enganação, Rivera. Tudo que me era fornecido era extraído de suas terras. E, eu não vejo depósitos, fábrica, tampouco uma carroça para o transporte.

-Veja o rio e as grandes árvores. –apontou com a torquês para o horizonte.

Torcendo o corpo sobre a cela do cavalo, Monsenhor olhou para a direção indicada.

-O que isso importa? Eu quero o segredo.

-Não existe segredo. Eu corto as árvores e ás jogo na água do rio que as conduzem as madeireiras. O que me sobra são as lascas das árvores que eu ás envio ás carvoarias. Abri canais na terra formando braços do rio para abastecer os reservatórios de água na cidade.

-O que isso tem á ver com o abandono de serviços, dos meus funcionários?

Rivera desceu da escada para a plataforma de sustentação do monumento. Com paciência ele tirou o avental que ele usava para guardar pregos e parafusos, o dobrou em quatro dobras e o colocou sobre o tablado.

-Vamos, responda. Por que eles não foram trabalhar?

-Ao cancelar as compras, você impediu que os fornecedores produzissem os produtos que os seus funcionários processam em suas indústrias. Rivera não é apenas um sobrenome, mas sim, uma sociedade de homens de boa vontade. Você não merece unir–se a nós. Á 21 anos atrás você provocou as mortes de três casais de pessoas boas, para se apropriar do que pertenciam á eles.

-As vidas dos meus companheiros foram sacrificadas, para agora você me dizer que eu não me dediquei ao máximo. E, você usou os elementos para o mal. A terra você a fez de cova para engolir Genésio. Na água você provocou o afogamento de Fulgêncio. E com o fogo ceifou a vida de Amâncio. Reservar-te o vento para quem?

-Enganas-te em tudo que falas e acreditas.

A ira se acendeu em Monsenhor Olavo, e enfurecido ele desceu do cavalo empunhando um punhal e, completamente enlouquecido avançou contra Rivera. Rivera, esguio e ágil feito leopardo, subiu novamente ao tablado.

Monsenhor montou no cavalo, acendeu uma tocha e botou fogo na paioça de Plates Rivera. Havendo feito o fogaréu ele intentou deixar o local, mas foi tarde demais. Ventos fortes vindos de todas as direções formaram um redemoinho no chão. O cata-vento girou em alta rotação, uma das hélices escapuliu e num vôo rasante e veloz foi de encontro ao pescoço do cavaleiro em fuga, decepando lhe a cabeça. A cabeça de Monsenhor foi cair dentro uma vala onde Rivera arrancara uma árvore com raiz para fazer uma única coluna do tampo de uma mesa redonda. O cavalo disparou na invernada levando sobre seu lombo o corpo de Monsenhor pegando fogo. Sobre a ponte o animal deu um espalho, e o acéfalo Olavo caiu dentro do rio. Sua busca por mais bens perecíveis o levou á morte, ficando á seus filhos todo o resultado de suas crueldades ininterruptas de exploração de trabalho de seus funcionários em sua indústria e assassinatos de seus sócios.

-Seu deus era o tempo. E sua personalidade era vento. De todos os elementos, o vento é o mais temível. É ele que descontrola a chuva e provoca as tempestades. É ele que, assoprando o fogo causa destruição. Quando o vento penetra na terra, desastres ditos naturais causam assolações.  Pobre homem rico.  Não sabias tu, que não tinhas o domínio sobre o tempo, que o tempo nada faz, mas que tudo se faz á seu tempo

Cobriu com terra a cabeça do ambicioso e sanguinário Monsenhor Olavo e foi ao celeiro.

-Como estão vocês? –perguntou aos três homens feridos, deitados em colchões de capim.

-Nos recuperando, graças aos seus cuidados. –Amâncio falou. –Agora que nós estamos nos recuperando, você poderia nos dizer com foi que você soube que eu estava me queimando?

-Ora. –O fogo clamou por ti meu amigo. –disse Rivera passando ungüento de ervas nas queimaduras no rosto do homem. –Agora descanse. –recomendou e foi ao segundo enfermo.

-Obrigado por ter me resgatado do rio. –Fulgêncio quis saber.

-A água te trouxe á mim. Não se esforce tanto. Seus pulmões precisam se esvaziar por completo. –disse aumentando o volume do sisal debaixo da cabeça do paciente.

Para Genésio, o terceiro homem, Rivera preparou uma porção de mastruz e untou todo o pescoço deslocado e o enfaixou com folhas de bananeiras. Ele não poderia agradecer pelos tratos que Rivera dispensava á todos eles, mas na expressão de seus olhos podia-se notar todo o sentimento de gratidão pela hombridade e nobreza de espírito de Cândido Plates Rivera.

-Rivera. –disse Amâncio, do estrado. –Éramos sócios de Monsenhor Olavo. As nossas esposas são bem novas ainda e também serão ludibriadas pelos filhos dele. Se tivermos que deixar a cidade para não sermos acusados de termos matado Monsenhor Olavo, quem cuidará delas?

-Vocês não têm filhos homens para cuidarem de suas famílias e herdarem suas riquezas?

Menearam fracamente as cabeças indicando que não.

-Conhecem a tradição?

Os três concordaram.

-Elas estavam na casa do Monsenhor esperando o nosso regresso. Tenho medo que Gorete e seus filhos planejam sabotar o carro que elas estão. –disse Amâncio.

-Tentarei encontrar as suas esposas. Agora, descansem. –disse Cândido recolhendo as sobras dos ungüentos.


***


Cândido montou no cavalo e saiu em disparada, atrás do carro que conduzia as mulheres, tão rápido quanto os flashes lampejando em sua mente as cenas de pessoas que morreriam. O carro estava superando um longo aclive e não andava tão rápido. Ele acenou para que a motorista parasse o carro. A motorista tentou frear, mas o pedal não a obedecia.

-Pare de acelerar. –ele gritou da lateral do automóvel.

Ela o obedeceu. Por falta de aceleração o carro começou á voltar para trás. Ele sacrificaria o animal fazendo-o se deitar na estrada de terra atrás do carro como á um calço. Funcionou.

-Desçam todas vocês.

Assustadas e sem nada entenderem, as mulheres bem novas desceram do carro e assistiram á Cândido esterçando o volante ao máximo. Jogou querosene no estofamento do carro e lançou dentro dele um pavio de algodão, aceso. Em seguida ele assoviou. O cavalo se levantou da posição de calço. O carro foi ganhando velocidade andando de ré, e, com as rodas esterçadas foi cair no despenhadeiro.

Com as três mulheres, a pés, Plates Rivera embrenhou na mata fechada. Ao Amanhecer o dia, chegaram a casa dele no vale Plates Rivera.

Depois de preparar um chá de ervas para as mulheres beberem, Cândido ás viu dormindo, releu o bilhete entregue á ele por Iolanda e foi ao celeiro reencontrar com os seus pacientes. Mas, eles já não necessitavam de serem medicados por ele.(  )

Voltando à casa ele encontrou as mulheres já despertas do sono, e vômitos esparramados pelo piso.

-Onde estamos. –uma das mulheres perguntou estranhando tudo á sua volta.

-Estão seguras. Eu preciso fazer algumas perguntas á vocês. –disse Cândido se sentando numa cadeira, tendo as três mulheres á observá-lo. –Vocês são casadas?

Elas não sabiam o que responder. Olharam para os copos vazios sobre a mesa tentando rebuscar as recordações anteriores á chegada delas ali. Mas, foi em vão. Ficara apenas o sabor amargo do chá de ervas que elas supunham acertadamente, terem bebido e o lançado fora em seguida. Suas lembranças teriam sido apagadas.

-O que nós estamos fazendo aqui, e quem é você? –outra delas quis saber.

-Os seus noivos estavam esperando vocês, mas o carro que conduzia vocês á igreja deu uma pane no sistema elétrico e não poderia chegar na hora marcada. Vocês tentaram ir á pés, mas o cansaço causado pela longa caminhada ás venceu e vocês dormiram na mata. Eu ás encontrei e ás trouxe para essa humilde casa. Os seus esposos já foram avisados e virão buscar vocês. -Eu acho que estamos recebendo visita. –falou á elas e foi receber os visitantes.

Ele encontrou um visitante.

-O tempo nos reservou algumas surpresas, Galdino. Três homens ricos mortos. Três viúvas bem novas. Faltam filhos homens para herdarem as fortunas deixadas pelos pais falecidos.

-O que você sugere?

-Nós dois não faremos nada. Apenas garanta a segurança das mulheres. Otero, Norato e Ferreira são seus irmãos?

-Sim.

-Você tem voz de comando sobre eles, como tem sobre a sua filha?

Galdino assentiu.

-Não me leve á mal, Cândido, mas, eu não acho certo envolver-me neste seu negócio.

-Entendido. Talvez os seus irmãos aceite a minha proposta.

-Eles estão chegando. Trate desse negócio com eles, mas me deixe fora disso.

Chegavam ali três homens em seus cavalos de pelos afogueados, bem selados.  Apenas Otero apeou do cavalo e foi ter com seu irmão Galdino e Cândido. Tirou o chapéu em saudação á Cândido. Quanto á Galdino, ele o ignorou por não gostar do irmão mais velho, assim como os outros dois irmãos e Monsenhor Olavo também não o considerava como á um membro da família.

-Vão ter com as viúvas, e, cada um de vocês escolha uma delas para ser a esposa de cada um de vocês. –Cândido deu a ordem.

Os três obedeceram.

Quando Otero, Norato e Ferreira rumaram para a cidade, Galdino dirigiu a palavra á Plates Rivera.

-Imagino que você queira que o Augusto engravide as viúvas.

-Ele fará apenas o que precisa ser feito. Lembre-se de que ainda temos que conseguir os herdeiros. Nós teremos que nos ausentar dessa cidade por algum tempo. Augusto ficará na cidade. –disse Cândido.


No dia seguinte surgiu na cidade um homem de barba farta, de boa envergadura corporal, vestido em roupas típicas dos antigos profetas e portando um cajado na mão, com eloqüência no modo de falar, ele obteve a atenção de todos que assistiam os enterros naquela hora, para ouvi-lo afirmando ser um enviado de Deus para restaurar a religiosidade cristã, a qual, em sua própria concepção, havia sido deturpada pela influência do maligno, e que ele era o messias ressuscitado que ao alcançar sublimidade divina, irou-se com os judeus e se teleportou para São Paulo com o intuito de arrebanhar 666 ovelhas obedientes aos seus mandamentos e levá-las para as pastagens celestiais. Sobre o pretexto de ele ser aquele que recebera diretamente de Deus a incumbência de estabelecer uma nova ordem religiosa, ele incutiu aos seus ouvintes suas ideias, das quais, uma delas era a esperança de um porvir não muito distante, em que os adeptos de sua religião morreriam á cada ciclo de 666 luas novas, mas em fração de seis minutos e seis segundos ressuscitariam em plenos vigores físico e cheio de experiências adquiridas por terem passados os ínfimos trezentos e sessenta e seis segundos ao lado de Deus.

Apesar de o profeta ter sido criticado por alguns ali, de que o tal número representava a pessoa do iníquo, ele os persuadia á aceitar que foram os copistas que adulteraram as escrituras, demonizou tudo aquilo que era santo e transformou o sagrado no profano. Então ele profetizou á seus ressabiados expectadores, que havia um iluminado que conhecia os segredos para uma vida próspera e duradoura. E assegurou que os iluminados seriam de origem desconhecida, que todos os seus descendentes seriam contemplados com o dom da sabedoria, poder e riqueza. Indo mais além, ele garantiu que, no dia 06-06-1966 nasceria o terceiro e último iluminado, filho do segundo que já estaria entre os moradores daquela cidade, neto do primeiro. E, quem ainda vivesse até o ano 1984 conheceria o último Rivera.

Então, o profeta desapareceu das cercanias da cidade.


                                                              O último Rivera. Parte II



Logo que Otero, Norato e Ferreira tomaram para eles as três mulheres que perderam seus verdadeiros esposos, Galdino os convidou para uma reunião familiar. Em volta de uma mesa de madeira tosca quatro figuras conversavam sobre uma pessoa que para eles seria a peça chave em seus planos maquiavélicos.

-Vocês fazem ideia de quem é Cândido Plates Rivera? – Galdino perguntou com o copo de conhaque próximo á boca.

Ferreira permanecia calado de braço sobre a o tampo da mesa com forro roxo, girando o copo vazio. Ele já sabia de quem se tratava. Foi ele quem investigou o personagem.

-É um homem rico que vive no campo. – Otero respondeu.

-Você está mal informado á respeito dele. –falou e secou o copo. –Cândido resolveu virar invisível depois da morte de nosso pai e dos três idiotas que o acompanhou ao encontro dele.

-Eu vou até ao banheiro. –Norato avisou e saiu.

-O que foi com ele Otero. –Ferreira quis saber olhando-o sair.

-Deixe-o. –Galdino ordenou. -O que eu quero te fazer saber é muito mais importante.

Ferreira foi atrás de Norato, deixando Otero e Galdino á conversar á sós.

-Então vamos logo com isso porque hoje eu quero sair pra me distrair. –disse Otero reabastecendo o copo com o Conhaque da garrafa, enquanto Galdino preparava o monólogo sobre Cândido.

-Cândido é um homem muito importante. Profundo conhecedor de todas as artes reais que todos conhecem apenas na teoria. Através da arte musical ele consegue influenciar pessoas e, ás faz lutar contra o regime autoritário do governo. Suas letras e poesias contêm mensagens subliminares que induzem os ouvintes á se tornarem revolucionários, mesmo sem causas para defenderem. Muitos cantores gravaram suas músicas, mas á maioria ou, talvez todos eles, tiveram suas canções censuradas e proibidas de serem tocadas nas rádios Brasileiras. Quando o governo soube de quem era as inspirações que punha em risco a estabilidade do sistema governamental, por fazer com que a multidão fosse às ruas protestando e entoando as músicas composta por Cândido, eles se viram na obrigação de manter Cândido em seu seus domínios. Mas ele faz parte de uma ordem filosófica que o protege de tudo e de todos. Sabe por quê?

Ao ser interrogado, Otero recostou-se no encosto da cadeira e se deu conta de que Cândido não seria apenas um homem qualquer.

-Não sei. –respondeu, correndo as mãos nas coxas.

-Porque ele é o grande idealizador e formador de conceitos sobre o desenvolvimento intelectual. Isso faz dele, o intocável. Através do seu conhecimento sobre psicologia humana ele pode conhecer suas intenções mais ocultas até mesmo pelo seu modo de andar ou ficar parado. O homem é mesmo um manipulador e controlador de mentes humanas. Na música ele decodifica sinais gráficos da escrita musical, e usa desse talento apenas como pano de fundo para educar aqueles que ele capta honradez em seu caráter.

-Esse negócio de pano de fundo pra ensinar seus...

-Você não entendeu. –cortou, bebendo outro gole. –Ele ensina á arte da vida e como decifrar pessoas. 

-Muito enigmático aquele figurão. –Otero reconheceu, virando o copo de boca para baixo.

-Para fugir da polícia e não ser preso por ter sido causador das mortes do nosso pai e dos maridos de suas agora esposas, ele evaporou.

-Mas o que tem á ver todo esse privilégio do homem com essa minha vinda aqui á essa hora? –Otero quis saber, reutilizando o copo.

Galdino encheu o copo do irmão e também o dele.

-Você se lembra do nome e sobrenome dele?

-Cândido Plates Rivera.

-Esse mesmo. –confirmou e só molhou os lábios. –Surgiu na cidade um rapaz chamado Augusto Plates Rivera. Deve ser filho dele.

-Quem te disse isso?

-Augusto Plates Rivera é o único morador dessa cidade a possuir o sobrenome Plates Rivera.

-Então o que nós devemos fazer?

-Bebe o conhaque. –disse Galdino com ar maquiavélico. –Suas esposas são mulheres muito bonitas e respeitadas. Homens fazem coisas terríveis por uma mulher com essas qualidades. -com uma mão ele levou o copo á boca, com a outra ele dedilhava a mesa, e observava o rosto de Otero corar de raiva.

-O que você está querendo sugerir?

-Por crimes passionais o júri é bem benevolente com o acusado, ainda mais se o traído tiver provas factuais. E quando um rapaz do nível deste Augusto perde a honra, ele perde tudo. Mas tem que ter provas irrefutáveis. Não façam sexo com suas mulheres. Devemos fazer com que Augusto seja o amante delas e as engravide. Mataremos muitos coelhos com uma cajadada apenas.

-Como faremos isso, sendo que elas foram entregues à nós por Cândido?

-Imbecil. –disse Galdino, sacando do bolso da calça um frasquinho de remédio. -Mantenham-nas sempre próximas à Augusto e sob efeito desse remedinho. – entregou à Otero. –Se o Augusto fizer filhos nelas, Cândido será o avô. Então, nós nos livramos dos dois, e adotaremos as crianças. Assim teremos direito à fortuna de Cândido.

-Entendi. Mama Gorete está chegando. Eu estou indo. – bebeu o último gole, pegou o frasco da droga e foi saindo.

-Que pressa é essa, Otero. –quis saber Gorete.

-A noite é uma criança. –disse, jogando o frasco para cima, o aparando e o embolsando em seguida.

Galdino fez sinal para que Gorete o acompanhasse até ao quarto.

Chegando ao quarto, Gorete deu um giro tirando a roupa e as estendeu na cabeceira da cama.

-Eu vi um aviso de precisa-se de empregada no portão da casa do filho e nora do Cândido Rivera. –ela informou.

-Eu acho que você não poderá trabalhar para o casal. –falou á ela. –Valquíria será a empregada perfeita.

Gorete avaliou a sugestão, tragou forte o cigarro e jogou a guimba no canto do barraco. Valquíria estava em abstinências sexuais, porque Galdino exigiu que ela encontrasse homens ricos para com eles, vulgarmente falando, copular e dar á elas filhos que, após tirá-los da miséria, seriam sacrificados juntamente com seus pais.

-Dê sua vaga á Valquíria. Ela saberá cuidar da patroa e do patrão.

-Por que ela tomará o meu lugar? –perguntou se sentando na cama.

-Relaxe. Eu só estou evitando que o Cândido saiba que você seja a empregada de Fátima e Augusto. Valquíria mudou muito depois que eu á expulsei da minha casa. Mas, agora ela servirá aos meus propósitos. Deite-se e relaxe minha Mama querida.

Ela se deitou abrindo pernas e braços para que Galdino começasse com as carícias. Ele deslizou as mãos nos seios e barriga dela com tato e suavidade não costumeira. Em seguida, com calma iniciou os preliminares fazendo sexo oral nela. De olhos fechados, sentindo a língua esponjosa de Galdino lubrificando os lábios de sua vagina, ela não pôde perceber que ele levava a mão direita debaixo do colchão.

-Rivera, Rivera, Rivera. – ela gritava antes de Galdino cravar-lhe o punhal no coração. –Urgh. –foi seu último gemido, não de prazer, mas de dor imensurável.

Apertando o cinto na cintura da calça, Galdino olhava o corpo sem vida estirado na cama. O sangue fresco escorria encharcando os lençóis. Gorete o chamava de Rivera nos primeiros minutos de núpcias entre ele e ela, os quais não se respeitavam como á mãe e filho. E morreu desejando estar sendo possuída por Cândido Plates Rivera e por ele sendo levada ao seu último orgasmo. 

Galdino lavou o corpo de Gorete com água e sabão, o enxugou com uma toalha encardida e a enterrou numa cova rasa no fundo do quintal de terra para que o cão vira-lata faminto a encontrasse e a comesse. Não havia remorso no espírito de Galdino. Apenas a sensação de ter feito o que ele devia ter feito desde a noite que ele contraiu sua própria mãe como sua mulher.



                                                                             06


Valquíria era faxineira diarista. Mulher que não conhecia as dificuldades da vida. Foi possuidora de muitas posses, mas ao se envolver com os irmãos do seu pai, foi deserdada e escorraçada de casa, vivendo insatisfeita com a sua situação de pobreza. Passara a dividir um barracão decrépito de três cômodos no bairro do Braz com seus três tios.

Ao se levantar bem cedo naquela manhã, ela fez sua reza matutina e saiu para procurar trabalho, na certeza de que o encontraria por ter tido um direcionamento fornecido pelo seu guia espiritual enquanto rezava.  Deparou com um sobrado com grades de ferros torcidos. Para chegar á porta de entrada, uma passarela de degraus de um metro por um de largura e comprimento, com superfície de granito em acabamento rústico que acessava as pessoas até á varanda com espaço suficiente para acomodar os dois carros novos e mais um, caso o proprietário quisesse adquirir outro.

“Precisa-se de empregada.” Pagamos bem. – leu a placa no portão. “São podres de ricos.” – pensou. Ao tocar a campainha, uma voz feminina á atendeu no interfone.

-Eu procuro emprego. Será que você poderia me arranjar trabalho ao menos por uma diária?

-Sim. Você chegou numa boa hora. –disse a mulher. –Eu vou destravar o portão, e você, entre, por favor.

Ultrapassando o portão, Valquíria se ateve olhando a beleza da grande residência. As janelas do andar de cima do sobrado eram de esquadrias de alumínio na parte externa e vidros coloridos. Uma porta com largura de 1 metro e meio padronizando com o mesmo material das janelas, dando acesso á sacada descoberta para receber á luz do sol da manhã. Entre o sobrado e o muro lateral do lado direito da residência, sobrava um espaço de oito metros de largura por quinze de comprimento, indo do portão de entrada até ao portão de acesso ao fundo do quintal. Quisera ela morar em uma casa como aquela. Sua pobreza extrema a impedia de desfrutar de tal beleza arquitetônica.

Uma mulher jovem e com um sorriso amigável veio atendê-la na entrada da varanda.

-Olá, bom dia. –disse de braços abertos.

Valquíria ensaiou um sorriso, mas se conteve.

-Bom dia.

-Eu sou Fátima. E você, como se chama?

-Valquíria.

-Valquíria, foi Deus que te mandou aqui.

-Foi a minha necessidade, senhora.

-Tudo bem. De qualquer forma, eu estava mesmo precisando de uma funcionária para me auxiliar com os afazeres domésticos. Vamos entrar.

Da varanda, na parede do lado esquerdo Valquíria via através da janela de pequena largura, porém, de altura exagerada, um piano e um violino.

-Você ou o seu esposo toca algum instrumento daqueles ali? –perguntou.

-Ninguém. É que o Augusto mandou fazer essa sala de musica. Ele adora música, mas não toca instrumento algum. –Fátima respondeu abrindo a porta de entrada.

Essa sala é maior que o meu barraco. Pensou Valquíria, admirada ao acessar primeiro o living de jantar da residência.

-Essa aqui é a sala onde nós comemos as nossas refeições.  Vamos á cozinha.

Fátima á conduziu até á cozinha passando por um hall de acesso entre o living e a cozinha. O brilho do lustre de cristal á cima da mesa de oito cadeiras em madeira almofadadas, contrastou com o embaçamento nos olhos de Valquíria.

-Aqui é a cozinha.

Valquíria reparou a pia enorme, com balcões de granitos e armários, embutidos nas paredes. Ela não dizia nada, apenas comparava o luxo e o conforto da mansão com as más acomodações no barraco onde ela morava.

Depois de ter mostrado á Valquíria a parte interna do primeiro piso, Fátima, radiante de alegria por ter sido procurada por uma doméstica em sua casa, seguiu com Valquíria até as partes do fundo do seu imenso quintal que contava com uma piscina, o quarto da empregada anexo á lavanderia e churrasqueira de tijolinhos envernizados. Para Valquíria, era tudo muito sofisticado e condizente ao padrão de vida luxuoso de uma mulher chique, bonita e, sobretudo, bem afável.

-Nós duas vamos nos dar muito bem, por isso eu quero que você more aqui.

-Eu preciso saber quais serão as minhas obrigações.

-Então me siga de volta á sala de música.

Chegando à sala de música, Valquíria vislumbrou o que para ela era um sonho. Ao ver o piso quase todo carpetado com material sintético, uma mesinha ao centro do cômodo, com tampos de vidro transparente sobre a armação de aço inox. Encostadas as paredes laterais, havia sofás de madeiras com assentos e encostos estampados de flores, com um toque clássico.

-E os seus pais, seus sogros, eles moram com vocês? -Valquíria perguntou.

-Não. O meu sogro e a minha sogra eu não os conheço ainda, nem por fotografias. Os meus pais não ficaram contentes com o meu casamento. Mas, me fale de você. É religiosa, evangélica, católica?

Valquíria fez asco demonstrando total aversão ás duas linhagens religiosas. Praticante de um segmento religioso não conhecido pelas pessoas, suas práticas ritualísticas não condiziam com os costumes característicos dos adeptos do cristianismo.

-É espírita?

-Eu não tenho religião. Mas, respeito á todas. Eu fico muito agradecida á senhora...

-Pode me chamar de você apenas. Eu tenho pouco mais de vinte anos. Quanto á dinheiro, não se preocupe. Você será bem recompensada. Estamos combinadas?

-Tudo certo, mas eu tenho que ir a minha casa para dar a notícia aos meus... lá em minha casa.

-Vá, mas volte ainda hoje.

Valquíria pensou um pouco para então responder:

-Eu moro longe daqui. Só poderei voltar de tardezinha.

-Está combinado.


Quando a noite chegou Augusto estava sozinho em casa, a campainha tocou e ele imaginou que fosse Fátima que já estaria de volta, mas, quem chegava era Valquíria que, produzida para a ocasião, era outra mulher, jovem e de beleza incomum.

-Boa noite. Você é o Augusto? Você estava de saída? –perguntou como se ela lamentasse por viagem perdida.

-Boa noite. Agora entre porque aí fora está frio.

A surpresa em vê-la na porta o fez ensaiar um sorriso e passar a mão no cabelo jogando-os para o lado esquerdo da cabeça. Esse gesto fizera com que Valquíria o encarasse diretamente nos olhos e sentir que verdadeiramente ele tinha aparência bonita, charmosa, agradável e envolvente. Com a mão esquerda Augusto tocou o ombro dela, com a direita abriu espaço para ela entrar. Por sua vez, Valquíria adentrava a sala como se estivesse escolhendo aonde pôr os pés com cuidado para não pisar em brasa, pois, a libido dela já estava em chamas.

-Fique á vontade Valquíria. Eu vou deixar a porta aberta e as luzes acesas.

Ela o olhou e sorriu docemente, porém seus olhos verdes faiscavam de desejo por ele.

-Lá fora está frio. –disse ela esfregando os braços.

-Entre e se sente no sofá. Eu vou preparar um chá quente para nós dois.

-Augusto, espere. –pediu segurando no antebraço dele. –Você está sozinho aqui? –perguntou olhando no tórax largo dele. Já que os olhos são o espelho da alma, Valquíria queria que ele descobrisse o quanto ela estava segura de sua atitude. A pergunta que ela fez foi para ouvir uma resposta obvia, porque ela sabia que Augusto estava sozinho. Ela temia ouvir dele uma resposta bem simples: sim, estou. Volte outra hora.

-Estou, mas não ia dormir á essa hora. Eu estava passando algumas roupas. Lá para as nove horas eu resolveria o que fazer essa noite.

-Se eu te atrapalho, eu posso voltar amanhã para começar no trabalho. –voltou seu olhar para a porta, deu as costas á ele para voltar. Era duvidosa e insegura a expressão da voz e retirada dela Augusto pôde perceber desde a boa noite que ela deu.

Valquíria sentiu sua mente turvar-se, e daquele momento em diante seu comportamento seria outro.

-Ah Augusto! O que eu estou fazendo? –perguntou abraçando-o e pondo a cabeça no ombro dele. –Eu ainda tenho muitas dúvidas. Tudo que eu queria era me libertar do inferno matrimonial imposto pelo meu marido que me enclausura dentro de mim mesma, me fere e me machuca físico e emocional. Mas eu jamais pensei que me sentiria atraída por outro homem, e muito menos por você. –confessou apertando-o no abraço.

Augusto atonizou-se diante da confissão. O que ele teria á ver com a infelicidade dela? Ele iria se deixar levar pelas investidas dela. Talvez assim, ele se isentava da culpa.

-Eu tenho que terminar de passar algumas roupas. A Fátima teve que sair. O ferro de passar já deve estar pegando fogo. –falou se levantando e indo a tábua de passar.

Valquíria reparou tudo ao redor. Os móveis estavam limpos. O piso também. Realmente, estava tudo organizado. Fátima sabia cuidar de uma casa. Um pouco meio sem jeito ela seguiu em direção á ele engomando a camiseta branca.

-E dizem que os homens não sabem passar roupa. –ele comentou estendendo a camisa no ar. –Eu acho que quem diz isso está completamente certo. Eu sou péssimo para...

-Eu posso te ensinar. –falou pondo o copo sobre a plataforma de passar roupas. Deixe-me pegar o ferro. –pediu se pondo na frente dele. –Agora segura em minha mão.

Augusto a obedeceu e colou a parte frontal do corpo dele ás costas dela, e segurou na mão dela sobre o cabo do ferro. O rosto dele ficou lateralmente colado ao rosto dela.

-Agora é só você deslizar devagar. –foi sussurrado que ela disse. –Assim. Bem devagar. -lentamente ela ia roçando a parte traseira dela na dianteira dele. Seu pescoço ia procurando a boca dele como se estivesse querendo que ele sentisse o cheiro do perfume e o sabor da pele amendoada dela.

-Você está aprendendo?

-Muito.

Valquíria fez com que ele a abraçasse com o braço que estava livre, e ela segurou a mão dele, fazendo-a deslizar por sua barriga.

-Então continue bem mansamente. Isso, assim, para frente e para trás!

-Senhorita.

-O quê. –com a voz sumindo aos poucos.

-Você está me deixando excitado.

-Eu também estou. –sussurrou virando-se de frente para ele. –Me beija.

O beijo aconteceu, demorado e frenético.

Ao ouvirem o barulho do carro chegando à garagem, os dois se apartaram, e Valquíria foi se sentar no sofá da sala, Augusto continuou passando a camisa.

Fátima achou que a nova empregada Valquíria era muito bonita e apresentável, com tributos de beleza ideal para uma secretária de escritório. O Manequim, perfeito. A trança raiz de seus cabelos permitia que qualquer um notasse que o rosto dela, de traços refinados. A boca de lábio inferior salientemente mais grosso do que o superior, muito apreciável.

Inocente, ela não notou nenhuma reação de encantamento em Augusto no momento em que Valquíria foi reapresentada á ele por ela. Mas, sentiu um fisgar no peito quando Valquíria deu a mão á ele, seguido de um piscar cúmplice e umedecida de lábios extremamente provocante.

A noite chegou, Valquíria preparou o jantar, sobremesa de salada de frutas e suco de laranja. Comeram juntos, os três. Minutos depois da ceia, Fátima sentiu sono e foi se deitar.  Mas quem foi para a cama com Augusto foi a empregada.

-Vamos! Eu estou louca pra ser toda sua. –disse Valquíria puxando-o em direção á cama. De joelhos, tendo o tronco dele entre suas pernas, Valquíria a massageava o tórax de Augusto. Em seguida, seus peitos fartos se revezam na boca dele, fazendo-o saborear seus mamilos petrificados com sabor de óleo corporal de amêndoa. As mãos dele deslizavam ás costas dela, e ele a beijava na boca com suavidade. Augusto foi se entregando aos poucos á ela que tirou toda a roupa dele, se despiu por inteira. Deitado nu, com as mãos cruzadas á nuca, ele contemplava um estonteante corpo de mulher que escalava o corpo dele, molhando-o da cabeça ao umbigo. Com gula, ela abocanhou o ponto diferenciador entre o sexo masculino dele e o feminino dela.  Ele dava urros abafados á cada golpe de sucção aplicado pela boca dela em seu órgão genital. Ao terminar a salivação, Valquíria levou a mão no falo dele ereto ao máximo. Ela gemeu prazerosa no momento em que os lábios genitais dela tocaram o mastro dele.

-Ah! Eu estava doida pra conhecer você. Ai que gostoso! –ela exclamava no início da penetração. -Unh, ai, que delícia! –balbuciava pressionando o tórax dele com as mãos ao sentir quase inteiro o membro dentro de sua vagina. Augusto seguia quase que comendo os seios delas. Valquíria se contorcia toda.

Por uma fração curta de tempo, ele viu que ela fechou os olhos, e mordia o lábio inferior.

-Você está gostando, hem? Diz que eu sou gostosa, diz, diz. Oh, eu estou gozando. –e desabou sobre ele, sufocando-o com seus cabelos cobrindo o rosto dele, e se movimentando como se estivesse troteando no lombo de um manga-larga, e então... - Ah, ahh, ahhh. Oh, Oh, Ahhhhhhhhhhhhhhhhh! - rápido intensamente.

Depois de beijar a boca de Augusto por alguns segundos, Valquíria juntou os cabelos num molho só e os jogou ás costas.

-Eu quero mais. E você, quer mais também?

Augusto não respondeu. Simplesmente a colocou de joelho sobre a cama e se posicionou ás costas dela. Ela encostou sua parte traseira na dianteira dele e levou as mãos aos seus cabelos. Ele deslizava as mãos em toda a zona frontal dela.

-A noite é só nossa. Faça o que você quiser comigo, e como você quiser. –ela sussurrou com o rosto colado ao rosto dele. –Você quer assim? –perguntou inclinando-se para frente. –Eu te quero todo dentro de mim agora. –disse ela apoiando as mãos na cabeceira espelhada da cama, e se preparando para ser possuída em posição canina. –Vai, me faça de sua potranca, me come gostoso! Aiiiiii! Chame-me de xoxota gulosa!

Segurando no quadril dela ele a penetrava. No início ela gemeu prazerosamente. Ao meio, Augusto via através do espelho, que ela fechou os olhos e espremeu os lábios.

-Ai, que delícia! Mais, mais. Põe sem piedade. Eu o quero                                                                                                                                                                                                             inteiro. Urgh! Gostoso, gostoso! –ela grunhia remexendo feito uma desesperada.

Ao fim da penetração, ela grasnava roçando o rosto de um lado e outro no lençol, se movimentando pra frente e pra trás num ritmo acelerado.

Vai e vêm frenéticos, gritos roucos, gemidos lancinantes.

-Ah, ah, ah! Gostoso, gostoso, gostoso! Me come, come, come! Aiiiiii, delícia. Goza comigo. Ahhhhhhhh! -e orgasmo dela acontecia de modo á fazê-la espalhar-se sobre a cama.

-Você está cansada? –Augusto perguntou beijando a nuca dela.

-Um pouco, mas eu quero mais. Você é maravilhoso.

Toda relaxada, ela se deitou de barriga para cima para que ele a possuísse numa posição mais confortável para ela. Augusto agasalhou o travesseiro debaixo das nádegas dela e penetrou-a.

-Mexe gostoso. Isso. Ai! Morda-me, me come toda. Vai, chame-me de saborosa, gostosa e deliciosa me faz gozar outra vez.

-Ah, ah, aaaah...

- Unhnnn! -Isso Vai, vai, derrame tudo dentro de mim.

-Ahhhhhh, deliciosa. -e refestelou-se exausto e saciado.

Augusto vestiu a calça e sentou-se na cama após o ritual de sexo avassalador com Valquíria.

-Foi demais. Eu gozei rios. –disse ela se sentando atrás dele, e o abraçou.











                                                                    DARLENE


No trabalho, Darlene afundaria a cabeça de vez para esquecer o sufoco que era viver com Otero acusando-a, todos os dias e noites, de tê-lo traído com um homem o qual, ela não tinha nem lembranças de quem ele pudesse ter sido ou significado para ela.

Ela considerava que eram dias de casamento conturbado por razão da desconfiança e do ciúme exagerado de um marido inconsequente, infiel e incorrigível. Foi quando Augusto chegou acompanhado por Fátima.

-Então tudo bem. –disse Fátima. –Agora, eu vou contratar o pessoal para fazerem a reforma. Quanto á você Augusto Rivera, cuide de voltar para o trabalho, e vê se não incomoda a corretora. -ela deu um beijo no rosto dele e o deixou no escritório.

-Eu aprecio muito as residências com aspectos grotescos. –disse ele demonstrando entusiasmo contagiante. Qual é o seu nome?

-Darlene...

-Pode me chamar de Augusto. Você não deve ser casada. Se for, o seu marido não se importa de ver você exibindo essa beleza toda? Seria impossível não sentir ciúmes de uma mulher linda como você.

Darlene sentiu-se apreciada, e isso á deixou lisonjeada por receber tais elogios. Com toda sua beleza ela jamais fora elogiada pelo marido dela. Tudo que ela queria era se vê livre do Otero. Mas por obrigação, talvez, ou para não perder o status de mulher casada e honesta, ela ainda se deitava, com ele sem querer e não deixando que ele á tocasse, pois, para ela, fazer sexo com Otero estava fora de cogitação.

-Você está me assustando. –disse ela mordendo o lábio inferior.

-Se não estiver gostando eu posso parar de te chatear. Mas, se, atenção e amor te fazem falta, eu posso lhe proporcionar sem nenhum embaraço.

–Meu Deus! –ela exclamou baixinho. –Você é louco, eu... – pensou em não dar resposta alguma. –Você é muito corajoso. –e continuou pensativa batendo a ponta da caneta na folha em branco. –Eu terei que me acertar de que não haja nenhum embargo jurídico á respeito da residência. Parece–me que há uma parte requerente dos direitos sobre a casa.

-Eu conto com o seu profissionalismo. Assim que estiver tudo certo com a papelada, a construtora iniciará as reformas.

-Vou ver o que posso fazer.

Augusto pegou uma caneta para escrever alguma coisa em uma folha de papel sem pauta que estava sobre a mesa dela.

-Pegue e leia. Se você não gostou do meu jeito, rasgue, queime ou jogue fora. Ao contrário me responda pessoalmente, quando você tiver decidido. –se levantou. –Estou indo.

-Não precisa esperar que eu o responda.

-Você ainda não leu. –Eu já vou indo. –disse ele dando de costas á ela.

Ajeitou alguns papéis, caneta e grampeador num lado da mesa e em seguida recostou–se na cadeira e pegou o bilhete que Augusto escrevera, e finalmente o leu em silêncio.  No começo da leitura, ela deslizava a mão em seus cabelos. No segundo parágrafo, a mesma mão acaricia o seu próprio rosto. Na parte final, Darlene deu um sorriso e tirou o pequeno estojo de maquiagem da bolsa. Olhando no espelhinho do estojo de maquiagem, ela umedecia os lábios com a ponta de sua língua enquanto corria o dedo nas sobrancelhas. Ao terminar de conferir sua beleza nórdica, foi ao arquivo de notas e abriu a gaveta. Antes de pegar a pasta arquivo, ela respirou profundamente, abriu então a gaveta e a fechou novamente sem tirar dela nenhum documento, e voltou á sua mesa.

“Quer jantar comigo, qualquer noite dessas suas noites de sufoco?”

Augusto, quem é você? – se sentando, perguntou a si mesma. E, se o jogo virar Otero, você encarará a situação com naturalidade? - ela pensou. E decidiu ir ao restaurante.

Ela estava encantadoramente linda em seu vestido justo de linho pérola, sem decotes, com alças um pouco mais largas do que as alças longas de sua bolsa de tamanho reduzido. Os cabelos com frises dourados fixados por gel spray conferia-lhe uma beleza sem muito deslumbre, porém sem nenhuma tendência a vulgaridade.

-Olá. Demorei? –perguntou.

-Uma eternidade. –disse Augusto beijando–lhe a o rosto para em seguida ajeitar a cadeira para ela sentar–se.

-Obrigada. –agradeceu tirando a bolsinha e á colocando sobre a mesa redonda, forrada com seda vermelha.

Augusto também se sentou ao redor da mesa num ponto que o permitia ficar de frente á ela.

-Faz tempo que você está aqui?

-Há alguns minutos.

-Eu não quero me arrepender de ter vindo ao seu encontro. –disse ela se ajeitando na cadeira.

Que tal eu começar dizendo que você está maravilhosa. Só não entendo como pode uma mulher linda como você não ter se casado ainda.

Para disfarçar que não ficou sem jeito com a afirmação errada que ele fez, Darlene passou a mão na gola do vestido e deu um sorriso maroto.

-Nem toda mulher bonita como você diz, tem que ter um marido. –ela observou.

Ele sorriu.

-E, viva a independência feminina. –falou com um brilho no olhar sério.

Eles se olharam por alguns segundos e, Augusto vislumbrava um rosto lindo da mulher com um aspecto de moça nova. Darlene por sua vez, se sentia á vontade na companhia dele, um belo rapaz, que se passaria muito bem por um casinho de uma mulher casada e um jovem atraente. Um amante perfeito. Mas para quê deixá-lo saber que ela era casada? Era o que passava na mente dela.

-Eu nunca quis ter um homem controlando a minha vida. Por isso, o altar não será o meu palco tão cedo.

-Eu só tenho a agradecer a minha sorte pela sua escolha.

-Eu te agrado tanto assim? –ela perguntou alisando o forro da mesa.

-Bom, eu sou um pouco difícil de ser agradado por uma mulher, mas eu pensei em você o dia inteiro.

-Você pensou em como faria para me agradar com as suas observações, ou em como faria para ter coragem de vir ao meu encontro?

-Pra ser sincero, eu tive um dia tão corrido hoje, que nem tive muito tempo para pensar em um bom diálogo. Mas, antes que você me critique, eu quero que você saiba que eu passei a tarde inteira procurando um bom restaurante que fosse digno da sua presença em minha companhia.

Sentindo a mão dele tocando a sua, Darlene o encarou e percebeu que ele se comportava com muita naturalidade em relação á ela e, isso a deixava ainda mais á vontade.

-Você me surpreendeu. Eu gostei.

O garçom chegou trazendo a carta de pedidos. Augusto indica sutilmente com um olhar que a honra do pedido é da acompanhante. O garçom obedeceu.

-Madame! –disse o garçom entregando a carta á Darlene.

-Senhorita. Por favor. –Augusto orientou.

-Perdoe–me senhor.

-Augusto, por favor. – Darlene orientou.

Dessa vez o garçom não disse nada, apenas fez um gesto com á mão, como quem dizia: “Pois não, senhorita”.

Ele pegou a carta de volta e retirou-se.

-Algum problema com a madame? – Darlene perguntou deslizando a mão suavemente no antebraço dele.

-Algum probl

ema com o “senhor”? –Augusto devolveu, segurando em sua mão.

Os dois fizeram alguns comentários sobre o modo que os garçons tratavam os clientes. Á educação e gentileza puramente comercial dos profissionais daquela categoria. Depois de um breve silêncio, Darlene desviou o olhar para o senhor e a mulher bem mais nova do que ele. O homem se parecia um pouco com o seu esposo, mas ela constatou que não era o Otero. Embora a aparência física do homem á fizesse se lembrar do seu indesejado marido, ela preferiu não se deixar levar por nenhum sentimento de culpa por uma provável infidelidade da parte dela. A noite estava agradável para ela que tinhas seus dias, noites e madrugadas completamente sufocantes por dividir a casa com um homem que não á satisfazia em nenhum aspecto marital. Quando ela voltou á olhar para Augusto, notou que ele estava escrevendo um bilhete. Em seguida ele chamou o garçom com um movimento de dedo.

Antes que o garçom chegasse, Darlene o interrogaria:

-Por que você não me falou pessoalmente tudo àquilo que você me escreveu?

-Só um momento. –disse ele esticando o braço para entregar o bilhete ao garçom. –Por favor, entregue ao pianista.

-Sim senhor, senhor Augusto.

Ao pegar o escrito, o garçom seguiu rumo ao músico.

-O que é que você quer saber? –ele perguntou cruzando as mãos sobre a mesa.

-Sobre o porquê de você não ter me dito aquelas coisas pessoalmente.

-É que eu tive medo de receber uma negativa sua assim de cara á cara. Mas, eu posso repetir agora, palavra por palavra.

Novamente Darlene levou suavemente as mãos em volta de seu pescoço.

-Repita.

Segurando as mãos dela, ele começou a declamar:

-A cada nascer do sol é um começo de um novo dia. A cada pôr do sol pode significar o início de uma noite feliz, ou de oportunidades perdidas. Se, do raiar do sol ao cair da noite, você não tiver se decidido em vir ao meu encontro, saiba que eu não deixei passar a oportunidade de lhe dizer o quanto você é linda. Porém, se você decidir vir me encontrar, então eu direi... –O pequeno intervalo na fala de Augusto, representando a reticência no final do bilhete foi o tempo que durou a pressionada que Darlene emocionada, deu nas mãos dele.

-Termine. Eu estou aqui. –com o rosto próximo ao dele, sussurrando ela pediu.

-Então eu direi o quanto essa noite está sendo maravilhosa para mim.

Sem hesitar um só segundo ela beijou os lábios dele com suavidade. Imóvel, Augusto apenas sentiu o sabor da boca dela.

-Eu estou te agradando? –Darlene perguntou depois do breve beijo.

-Muito.

Dessa vez, ela teve iniciativa de repetir o beijo um pouco mais demorado.

O garçom trouxe os pratos.

-A sua música será executada daqui á alguns minutos senhor Augusto. –o garçom avisou.

–Você não vai beber? –perguntou deslizando o dedo na borda da taça já quase vazia.

-Não... Eu estou evitando álcool.

-Importa–se se eu beber? É que eu adoro vinho.

Augusto fez um movimento com a mão como quem dizia “fique a vontade”, depois se ajeitou na cadeira de modo que seu corpo ficasse um pouco pendido para o lado esquerdo, e com o cotovelo sobre o braço da cadeira e a mão tocando o seu próprio queixo, á observava se esbaldando no vinho.

Depois de outro gole, Darlene ajeitou os cabelos que ela supunha estar sobre os olhos.

-Você fuma?

Ele entendeu que a pergunta foi um tanto quanto desconexa, pois ninguém fumaria em um restaurante como aquele. Ela já estava embriagando-se.

-Não, não fumo. –disse segurando a mão dela antes que ela alcançasse a garrafa e repetisse a dose. –Que tal você se sentar aqui do meu lado?

Darlene aceitou o convite, mas ao se levantar...

-Opa! – tropeçou nos seus próprios pés. –Eu odeio esses saltos.

Augusto percebeu que o culpado pelo tropeço não teria sido a sandália de salto não muito alto que ela estava usando. Então, ele a abraçou ternamente, assim, de lado. Ela encostou a cabeça no ombro dele, Augusto acarinhava o os cabelos dela.

-Você gostou do jantar? –ela quis saber.

-Sim. O jantar está sendo muito revelador.

-Revelador... –repetiu abandonando o ombro dele. –Como assim, revelador?

-Revela que você é encantadora, mesmo estando sobre o efeito de álcool. – respondeu e chamou o garçom fazendo sinal com a mão.

Darlene se sentiu descoberta e que ela teria que confessar á ele que ela é uma mulher mal casada. Porém, a resposta dele á fez prosseguir com o segredo mantido.

-Pois não, senhor Augusto.

-A conta, por favor.

-Como disse senhor?

O garçom não entendeu que ele havia pedido a conta, pois no momento da fala Augusto tentava evitar que Darlene tomasse mais um gole de vinho. Tentativa em vão.

-A conta e, por favor, leve a garrafa de vinho.

-Sim senhor Augusto.

-Senhor não... Augusto. –disse Darlene com uma voz que denunciava a sua embriaguez.

O garçom não disse nada e se retirou.

Augusto a abraçou mais para evitar que ela tropeçasse em seus próprios pés, do que para demonstrar carinho e afeto. Darlene o abraçou pela cintura de modo que fazia parecer que os dois fossem dançar a música pedida por ele. Abraçado a Darlene, Augusto notou os olhares de alguns clientes que pareciam condoer–se ao perceber a expressão de desapontamento dele com o estado de embriagues dela, e pela frustração daquele encontro que tinha tudo pra ser um jantar romântico.

O garçom trouxe a conta. Augusto pagou em dinheiro.

-Senhor Augusto... O troco.

-Apenas Augusto. – Darlene balbuciou ao garçom com a voz nitidamente grogue.

-O troco é seu. –Augusto apalpou o ombro do garçom e segue com ela cambaleante segurando sua mão.

-Obrigado senhor.

-Augusto. –disse Darlene corrigindo o garçom novamente.

Augusto quis abraçá-la. Mas, sentindo uma desagradável sensação de embrulhamento no estômago, ela foi às pressas para a toalete.








                                                    07


No momento em que Fátima estava sozinha em seu quarto, ela se via na liberdade de se olhar no espelho, vestida apenas de roupa intima, por ter acabado de tomar banho.  A imagem refletida era de uma mulher de beleza notável.

“Eu acho que vou cortar os cabelos.” – pensava enquanto os escovava.

-Fátima. –disse Augusto ao entrar no quarto. –Você vai á algum lugar?

-Não Augusto. Eu não tenho para onde ir sem você ir comigo. –respondeu indo ao closet. –E você, veio para o jantar?

Ele não respondeu a pergunta que ela fez e continuou dobrando as mangas da camisa. Fátima por sua vez percebeu que ela não significava para ele o mesmo de antes. E se ele estava em casa, quando deveria estar em Limeira, não seria por causa dela.

-Sente aqui, que eu tenho uma notícia para te dar.

-Eu só vou me vestir.

-Então me escute daí mesmo.

-Pode falar. –disse ela escolhendo uma peça de roupa.

-Eu hipotequei a nossa casa.

A notícia fez com que ela escolhesse rapidamente uma simples camiseta de algodão e uma calça de cotton. Ela não se conformava em saber que a casa fora hipotecada.

-Eu não acredito no que você está me dizendo, Augusto. –falou se vestindo.

-Querida, eu á penhorei para o nosso próprio bem.

-Como para o nosso próprio bem, Augusto? –perguntou brandamente.

-Olha, minha querida, o meu ramo de trabalho está indo mal. – disse ele se sentando na cama.

-Amor, você não devia ter feito assim. Eu podia falar com o meu pai, e ele resolveria essa situação.

Augusto se levantou lentamente apoiando as mãos nas próprias pernas, e com jeito de quem estava profundamente magoado com o que acabara de ouvir, começou á jogar na cara da esposa todas as suas boas intenções e desconfianças.

-Eu só fiz pensando em nós. Nós precisamos de um futuro garantido.

Fátima permanecia desnorteada sobre a cama.

-E você preocupado com o futuro resolveu vender a casa. Não precisava meu amor. –contrariada, mas não querendo feri-lo com palavras negativas, ela tentou deixar o quarto.

-Fátima eu queria que fosse surpresa, mas um bom marido não deve guardar segredos da esposa.

-Não se considere um bom marido por ter agido dessa maneira. – disse com brandura. –Você só precisa se livrar desse orgulho e deixar que eu o ajude com as finanças. O meu pai é um muito rico. De onde ele vive ele pode me mandar o que for preciso...

-Olha aqui, mulher, o Amaro é seu pai, mas não meu padrasto. –disse ele pegando no braço dela. –Você sempre se considerou a especial, e por causa do seu jeito orgulhoso, o nosso casamento acabou...

-Nosso casamento não acabou, mas eu acho que você já não me ama mais.

Ferido ele baixou o tom da voz para fazê-la sentar-se ao seu lado.

-Eu investi em planos de seguros de vida para toda nossa família, incluindo um filho que nós o teremos um dia. –revelou olhando-a de lado.

-Seus investimentos sempre deram em prejuízos.

Tapando as orelhas com as mãos, Augusto fez cara de arrependido.

-Eu arrisquei e perdi, mas agora eu estou seguro de que tudo vai dar certo.

-Eu espero que dê mesmo, dessa vez.

Augusto iniciou á tirar a roupa, Fátima percebeu qual seria a intenção dele ao vê-lo olhando para ela com malícia, mas, ela não queria ser tratada por ele como a um objeto de prazer.

-Eu não vou fazer amor com você.

Augusto zangado vestiu-se e calçou os sapatos.

-Aonde você vai? –ele quis saber segurando-a pelo braço.

-Eu vou-me embora dessa casa.

-Senta aí. –disse ele jogando ela de volta na cama.

-Olha aqui, seu estúpido. –disse nervosa, se levantando. –Você acha que eu sou uma rapariga de ponta de rua que você compra com dez cruzeiros? Pois você está muito enganado. Eu sou sua esposa e mereço respeito. -vestindo as roupas ás pressas, ameaçou deixar o quarto.

-Eu vou sair e não volto para casa hoje. Você fica em casa.

-Só porque nós não conseguimos ter um filho você me trata desse jeito. Outros casais também não conseguem porque as esposas não podem, mas os esposos delas não ás maltratam como você faz comigo.

-Você é que não consegue gerar... pelo menos, um filho meu. Mas com outro homem você conseguiria. Não é isso que você está tentando dizer? –a fala dele foi seguida de uma explosão de nervos e, ele esmurrou a cabeceira da cama com muita raiva. –Droga, você está me traindo.

-Não Augusto, eu nunca te traí, mesmo sabendo que você tem um caso com a Maria. Por isso ela não veio trabalhar para nós.  –disse enxugando os olhos, indo para de joelhos aos pés dele. –Vamos tentar de novo. O que está acontecendo com a nossa vida? Eu te amo...

-Veste logo uma roupa. –ordenou jogando nela as roupas para cobrir-lhe o corpo.

-O que está havendo entre nós não é normal. –disse ela assanhando os cabelos tentando não se estafar ainda mais. Quando ela bateu a porta, Augusto abriu e a alcançou.

-Venha cá. –disse ele avançando no braço dela, e puxou-a para a cama.

-Me solte Augusto. –ela se desvencilhou dele e foi descendo escada abaixo.

Ele conseguiu detê-la no patamar central.

-Se você tivesse me dado filhos nós não estaríamos nessa situação.

-Eu tentei e não tenho culpa por tê-lo perdido.

-Não. Você é a culpada sim.

Aos prantos, Fátima deslizou as costas á parede e sentou-se no largo degrau. O lindo rosto dela ganhou um aspecto sofrível e, as lágrimas escorriam dos seus olhos aos cantos de sua boca com os lábios retraídos por força da dor que dilacerava seu coração naquele momento.

-Eu vou sair. –Augusto avisou e a deixou chorando, e descia a escada abotoando a camisa, visivelmente contrariado.

Valquíria viu a patroa chorando no meio da escada. Ela foi até á ela. Ainda na escada ela encontrou com Augusto descendo ás pressas. No patamar central os dois se esbarraram, ela maliciosamente passou a mão no roso dele.

-Vá para a sua casa que não tem morador. Agorinha eu te encontro lá. -indicou com o braço esticado dedilhando os lábios trêmulos dele. E, subiu ligeiro para ir ter com Fátima.

-Patroa. –disse Valquíria curvando o corpo para segurar nos ombros de Fátima e levantá-la do piso. –Ah meu Deus! A senhora está queimando em febre. Engula alguns analgésicos sem água mesmo. Eu estava apavorada e vim correndo sem poder trazer...

Fátima descontrolada avançou no frasco e engoliu uma dosagem extra do remédio e deixou o frasco cair e rolar escada abaixo. O medicamente seria para fertilidade feminina misturada á remédio para dormir. Valquíria a levantou para conduzi-la ao quarto, onde ela á pôs sentada na cama.

-Não chore patroa. Ele só está um pouco preocupado com o trabalho dele.

-Não, não, enquanto eu não conseguir engravidar será sempre assim.

-Tente se acalmar.

-Obrigada, Valquíria.

-Agora deite e fique quietinha.

Ao beber os remédios, Fátima foi aos poucos se relaxando e ficando sonolenta. Valquíria cuidou de tirar-lhe toda a roupa. Em alguns segundos, o corpo nu de Fátima caiu mole, sobre a cama já dormindo um sono profundo.

-Assim... durma.

Valquíria foi ter com Augusto.

-Oi Patrão, não vá falar com ela agora. A patroa está muito nervosa com você. O Senhor Otero saberá cuidar dela.

-Eu sempre pensei que ela pudesse me dar filhos.

-Ah, você só está um pouco contrariado também. –disse ela indo á geladeira.

Augusto, atormentado esperou que ele trouxesse o calmante.

-Tome. Beba de uma vez.

Ele pegou o copo cheio e foi se sentar em uma das cadeiras no living de jantar, enquanto Valquíria terminava de lavar as louças do jantar.

Quando ela chegou á mesa, Augusto estava menos tenso e com um ar agradável no semblante.

-A Fátima é muito bonita. Mulheres como á ela não querem ter filhos, tão novas. Se eu pudesse daria á você esse filho que você tanto quer. Pena que eu não seja bonita como a patroa. Mas, se você quiser, nós podemos tentar ter um filho nosso.

Augusto deu um tempinho para reparar, assim, meio de soslaio, o corpo dela coberto pelo longo vestido de seda preto. Ela era uma mulher muito atual e queria se sentir a esplendorosa e invejada na alta sociedade paulistana.

-Você vai á uma festa?

-Não. –ela respondeu abrindo mais o decote em V.

-Você nem se parece com uma empregada doméstica. –Augusto observou se levantando.

-O patrão me acha bonita? Se você quiser, a gente pode ir lá fora e, aí você poderia me avaliar com mais exatidão sem que a patroa nos interrompa.

-Vá andando na frente e me espere no deck da piscina.

-Estou indo. Não demore. - deu uma piscadinha, um leve sorriso e foi.

Ele olhou para a extensão da escada conferindo se Fátima não os tivesse visto e ouvido. –ela não poderia estar. –e, ele foi atrás da empregada.

No deck, Augusto e Valquíria entravam em choque elétrico. A coxa da perna direita dela já esfolava a calça do lado esquerdo da coxa dele. E a boca dela queria engolir a dele.

-Você é sempre assim com as mulheres? –Valquíria perguntou enquanto quase o descabelava.

-Só com as que me despertam interesse. –respondeu beijando o pescoço dela.

–Eu quero fazer amor com você em cima da cama da Fátima todas as noites.

-Eu gosto desse jeito.

-Ahhh!  -exclamou extasiada. –Eu sou todinha só sua.

-Eu tenho uma casa aqui perto, e ela está sem moradores, mas mobiliada. A gente pode ir morar lá.

Antes de dar a resposta, Valquíria fez com que Augusto baixasse a boca até a divisão dos seios dela.

-Ai que delícia, lamba-me toda!

Satisfazendo-a, ele fazia com que ela gemesse de prazer olhando para as estrelas daquela noite bem escura de lua minguante. Não se contendo mais de tanto desejo, Valquíria subiu o vestido e desceu a peça íntima guardadora da sua intimidade que estava sempre lubrificada e pronta para ser invadida.

-Me possua agora pra eu engravidar de você. Vamos para o seu quarto.

-Não. Aqui fora mesmo.

-Então vem. Preencha-me agora. –disse abrindo bem as pernas e encostando-se á coluna do deck.

Valquíria era assim. Suas fantasias sexuais a inebriava desde os seis anos idade, período em que ela era policiada pelos pais delas, que exigia com autoridade irrevogável a preservação de sua virgindade. Obediente ao pai e sua mãe, ela não ia para a cama com nenhum garoto do seu grupo de amigos, nem desconhecido. Porém, devassa desde sua idade infantil ela se satisfazia com legumes e lambidas de seu pequeno pônei de pelo malhado. Quando a senhora mãe dela flagrou-a cometendo tais obscenidades no celeiro, ela pediu segredo e á ameaçou prometendo matar a própria mãe quando ela estivesse dormindo. A mãe atemorizada contou ao esposo, que, por sua vez á escorraçou de casa juntamente com o pequeno animal. A avó a acolheu em sua casa. Anos depois, ela assistia á uma grotesca cena de sexo protagonizado por Valquíria e o pônei já adulto, no celeiro. A avó, horrorizada e temerosa, relatou tudo á Otero. O tio decidiu tirar proveito da natureza pervertida da menina. Otero iniciou relações sexuais com Valquíria ainda na fase de sua puberdade.

Augusto a tomou nos braços e a deitou no piso para satisfazer a tara dela por sexo a luz da lua.






                                                  DÉBORA


Era domingo, dia de culto em outubro de 1965. Detrás do último banco do grande e largo salão de culto, Augusto escutava atento toda a pregação do dirigente. Vez em quando, Débora ia até o local onde ele estava e dava-lhe um abraço e um beijo no rosto. –Eu estou tão feliz de te ver aqui tão bonito desse jeito. Essa camisa de manga longa branca e essa calça preta te fazem parecer um obreiro da obra do senhor. –depois ela voltava ao seu lugar de ordem.

-O Augusto é muito decente, não é irmã Carmem? –Débora perguntou enquanto batia palmas acompanhando um cântico de encerramento da ceia. Depois viria mais meia hora de pregação e mais uma oração sem hora para acabar.

-Ele é um amor. –respondeu olhando de lado para Augusto.

Alguns jovens e moças estavam também de pé dos lados de Augusto, mas a aglomeração se fiéis em volta dele não era suficiente para fazer que Débora não o conseguisse ver, pois ela sempre dava um jeito de acompanhar os movimentos dele.

-Ele está batendo palmas, mas será que ele está cantando corretamente? –ela observou. –Eu vou levar a harpa cristã para ele. Com licença Sara, Leandro, Renato, me deixem passar aqui entre vocês. Eu quero entregar uma harpa para o visitante. –disse Débora se contorcendo para chegar á Augusto.

-Olá Augusto! –disse ela.

-Vem se revestir com o sangue do senhor. Só ele te guarda do astuto tentador. –ele cantava batendo palmas, e não ouviu o que Débora lhe havia dito e nem a percebeu chegando.

Débora deu um sorriso a uma irmãzinha de pescoço um pouco avantajado que a olhou por cima e cutucou no braço do visitante.

-A irmã Débora está falando com você. –disse a jovem.

-Sim. O que foi que você falou? –ele teve que olhar para cima para ao menos distinguir o que a moça lhe falou. Ela era mais alto do que ele, pelo menos do começo do pescoço para o topo da cabeça.

Débora não quis esperar que a moça fizesse o favor de avisar ao animado visitante cantador, que ela queria a atenção dele. Era seu dever cuidar bem de todo visitante, e, ela cumpria bem o papel de cuidadora, mas algo especial foi brotando nela por ele, e era preciso que ela se controlasse para não botar os pés adiante das mãos.

-Augusto, eu vim te trazer a harpa para você seguir os cânticos. –falou mais alto.

-Tudo bem, eu consigo seguir os que cantam. Eu os decorei ouvindo você cantar lá em casa.

A aproximação da boca dela ao ouvido dela, a fez sentir um arrepio tomando o seu corpo, e, ela perdeu a postura e a coragem de também falar á ele ao pé do ouvido dele. Augusto percebeu.

-Por que você não vem mais aqui na igreja? É muito bom te ter conosco.

-Desculpe-me, mas eu não estou conseguindo te ouvir...

Novamente ela sentiu o corpo estremecer. Os pelos de sua pele se eriçaram fazendo-a se sentir como se o vestido branco de meia manga que ela usava, estivesse laceando em seu corpo. Talvez fosse o hálito puro e refrescante dele que ela sentia, ou podia ser que seria um aviso para que ela não se aproximasse tanto assim daquele jovem que atraiu a atenção de muitas moças ali, no momento em que ele chegou ao átrio da igreja e ficou em posição corporal ereta como um soldado na posição de sentido, fechando os olhos e aspirando o ar. –foi assim que fez antes de entrar nos domínios internos da casa de adoração.

-Mas no limiar de sua consciência, Débora tinha ciência de que ela sentiu a mesma sensação quando ele tocou a mão dela num cumprimento na casa dele e não quis soltá-la.

A cantoria continuava, e os cantantes seguiam cantando e batendo palmas. O Dirigente se fez de maestro sem batuta usando a bíblia como extensão das mãos para regência rítmica do cântico jubiloso.

O coração de Débora disparava á cada vez que ela, com a harpa cristã nas mãos, pensava em passá-la á Augusto, mas teria que se pôr mais próxima dele para que ele pudesse entender o que ela dissesse. Ela estava casada com o líder evangélico Norato. Em suas missões Débora sempre acompanhava o núcleo das irmãs, e sobre sua liderança, as religiosas eram sempre exortadas a não dar motivos e razões para as maledicências das pessoas permitindo que o povo as visse se misturando à homens, ainda que eles fossem seus irmãos em cristo.

-Eu quero beber água. Onde eu posso encontrar um bebedouro? –Augusto perguntou gesticulando.

-Me acompanhe que eu e levo até lá. O bebedouro fica próximo à entrada dos banheiros masculinos.

Ela devolveu a harpa à um rapaz vestido de calça social preta, camisa branca de manga abotoada até os pulsos, com gravata vermelha, e com Augusto saiu pela porta de entrada e foi com ele até ao fundo lateral da igreja. Andaram até alcançarem o bebedouro do lado dos homens. Seguindo na dianteira dele, Débora permitia que Augusto notasse toda região traseira dela. Não que ele a estivesse cobiçando, mas não tinha como deixar de reparar o corpo escultural dela. Seus olhos da cor de âmbar, e olhar profundo dava-lhe um semblante sereno e meigo em seu rosto de formato oval e traços delicados.

-Eu não sabia que sereias viessem à igreja. –Augusto alfinetou.

-O que você disse? –ela perguntou chegando ao bebedouro.

-Será que as sereias são convertidas à religião cristã, são morenas e de cabelos grandes desse jeito?

-Eu vou fingir que não ouvi o que você acabou de dizer.

-Se eu te ofendi me perdoe, mas você é muito apresentável.

-Por que você diz isso? -esperando pela resposta, ela ficou passando a mão na testa para enxugar as gotículas do suor que se formavam na pele dela naquela região. Estava quente naquela manhã e o calor do sol não era evitado pelas ralas folhas dos coqueiros plantados rente ao muro ao redor da igreja.

-Porque você não deixa de ser. –falou inclinando-se à torneira para beber água gelada do bebedouro.

-Eu só queria entender por quê. –disse ela, e entregou a ele um papel toalha.

-Pra quê isso?

-Pra você escrever o que você acha de mim, e depois me entregar quando acabar o culto.

-Eu gosto de dar elogios pessoalmente e frente a frente à elogiada.

-Aqui não. –disse ela olhando para a portaria da igreja.

-Lógico que não. O culto já está para terminar, e eu não gosto de esperar pelo fim.

-Aonde você quer se encontrar comigo? –ela perguntou olhando meio por baixo entre o vidro da janela basculante da igreja. Alguns jovens manifestavam as virtudes do alto.

-Está com medo de quem? -Augusto perguntou, enxugando os lábios.

Débora emudeceu por uns segundos.

-Do meu esposo.

-Estou indo embora. – disse Augusto, e foi-se.


Havia sinal de esgotamento na fala e na postura de Débora. Ela massageava os ouvidos com as pontas dos dedos e olhava para o teto em gesso da sala de sua casa e movia o pescoço como quem precisava se relaxar. O texto que ela acabara de ler em sua bíblia dizia justamente a respeito de que a mulher prudente edifica a casa. Isso ela fazia sempre e, da melhor maneira possível. Mas ainda assim, Norato a tratava às vezes com brandura e cuidado, mas não em todos os momentos, ocasiões e situações da vida a dois. Algumas mulheres, e até mesmo alguns homens, ao serem abordados por ela que os levava a mensagem do evangelho, já haviam tecido comentários do tipo: - Lá vai a esposa do pastor comilão, referindo à boatos de que ele não deixava escapar uma irmãzinha bonita e inocente que frequentasse sua igreja.

Muitas e muitas vezes Débora enxugou dos seus olhos suas lágrimas, usando os seus próprios cabelos longos após haver sido surrada por seu esposo ao chegar à sua casa depois de um comentário despretensioso de irmãs que diziam que o irmão Norato podia levantar as mãos para o céu e agradecer à Deus por ter uma esposa tão linda e preciosa.

Novamente ela entristeceu o espírito e se pôs a chorar em silêncio e recordar de quando Augusto Rivera surgiu na vida dela levando-a a ser acusado pelo marido de estar com ele cometendo o pecado do adultério. Não seria justo dizer que existisse igualdade de imoralidade entre Débora e Norato, pois, nunca ficou claro que ela tivesse tido um caso extraconjugal. Em suas missões ela sempre acompanhava o núcleo das irmãs, e, sobre sua liderança, as religiosas eram sempre exortadas a não darem motivos e razões às maledicências das pessoas ao permitir que as pessoas às vissem se misturando à homens, ainda que eles fossem seus irmãos em cristo. Quanto à Norato, havia muitas dúvidas sobre a procedência dele fora da igreja. Ela admitia a si mesma que estaria nutrindo um sentimento muito forte por Augusto Rivera, e a cada dia o sentimento de amor, estranho amor por ele, ia enraizando no coração dela, e sempre que Norato a deixava sozinha, ela o procurava.

Quando Débora chegou à casa de Augusto Rivera a porta estava totalmente aberta, ela entrou e o encontrou sozinho tomando um suco de laranja e lendo um livro próximo ao calor da lareira. Ela se via como á uma intrusa invadindo a privacidade de um rapaz de hábito requintado e de aparência confiável.

Sempre que Débora o via chegando à casa dele, ela dizia à Norato que ela tinha que ir falar com uma irmã para tratar de assuntou sobre a programação da igreja.  Mas, naquela noite, ela simplesmente ligou no trabalho de Norato e falou que iria a um encontro entre senhoras que se reuniria na casa de uma família para o trabalho de evangelização.

-Oi Débora, entre. –disse Augusto. – Você não quis ir ao culto agora á noite?

-Não. Agora á noite o culto será em outra cidade. Augusto, eu preciso falar com você.

-Outra hora a gente conversa. –tinha seriedade na voz dele.

-Então fique com Deus. –disse, e permaneceu no mesmo lugar. Dando um breve suspiro ela não chegou á ultrapassar a porta para voltar para casa.

Augusto balançou a cabeça consentindo.

-Decida o que você quer comigo...

-Eu tenho feito isso. –beijou o rosto dele, esperando qualquer reação diferente da parte dele. Ela não veio como o esperado.

A cor da pele morena dela era de tom único, dos pés á testa, e de textura hidratada. No rosto a suavidade das expressões a deixa com ar de mulher carente de carinho e atenção.

-Você está bem diferente hoje. –falou se sentando no outro assento. –Muito atraente.

-Você diz isso porque está me vendo de vestido curto. É estranho, não é?

-Não. Eu não acho. Depende muito do seu ponto de vista em relação ao que você pensa de algo diferente que você faz.

-É que eu me visto sempre de vestidos longos. Talvez você tenha me achado indecente. – passou os cabelos para as costas, e o movimento de sua cabeça fez seu busto avançar para frente. O gesto e mudança de posição a deixou com ar de quem já estaria decidida á ouvir todos os elogios que ele quisesse fazer á ela. Ela se recompôs baixando a barra do vestido até aos joelhos, junta os cabelos num molho só e os passa para frente do corpo. Seus olhos âmbar revelavam o grau de sua expectativa. -Você acha que sou muito oferecida?

-Não acho nada Débora, é que... eu estou te estranhando. Dias atrás, você me contou que desde a sua juventude você é crente, e que ainda era virgem. Mas você é casada.

-Sim Augusto, eu sou casada sim, com um homem que eu não o amo. Ainda hoje eu me pergunto se isso seria certo.

Augusto deu uma olhada pela sala conferindo se estava tudo em ordem. Faltava-lhe fazer a mesura de convidá-la á se sentar. Débora, não pensou duas vezes e se aconchegou no assento cruzando uma perna sobre a outra. Seu cabelo tornou-se como um cobertor cobrindo seu colo. Augusto observou que ela vestia um vestido simples de malha azul. Um pouco curto á ponto de deixar á mostra uns quatro centímetros á cima de seus joelhos com marcas de orações prolongadas, constantes. Débora percebeu a observada, mas não mudou de posição. Então ele passou as mãos nos cabelos, na calça e a convidou para se sentar do lado dele e uma cadeira de madeira envernizada, assento almofadado e com estampas florais. Débora deixou que ele pousasse o braço esquerdo sobre os ombros dela. Em seguida, o copo com o suco que ele bebia foi levado á boca dela. Ela bebeu.

O corpo dela pendeu para o lado do dele e, minutos depois, ela acordou na cama dele, sentindo que havia passado momento de prazer absoluto não experimentado com seu esposo Norato. Á partir de então, Débora passou á sentir os sintomas de sua gravidez.













                                                         08


Durante o tempo que a empregada trabalhava para Fátima e Augusto, com Fátima tudo acontecia nas noites em que Augusto não estava em casa, e, ela não fazia ideia de que um impostor se passava por seu marido.

Com a patroa sempre inconsciente, incapaz de poder dizer sim ou não, ela foi ao imenso guarda-roupa, escolheu um vestido e o estendeu na em direção á patroa.

-Nossa, que chuva-de-prata, lindo. Você me empresta ele patroa? Ah, mas é claro, você vai ficar linda usando-o.

Do closet, ela trouxe um calçado.

-E esse tamanco Luiz xv pérola? Eu posso usá-lo também?

Com todo deboche, ela nem percebeu que alguém estava de braços cruzados olhando-a, com um sorriso cínico nos olhos e lábios.

-Cheguei. –disse Otero surpreendendo-a.

-Ai, você me mata de susto.

Descorando do portal da porta para dar passagem á ela, Otero fez sinal para que ela o deixasse á sós com Fátima.

-Eu cuido dela.

-Vê lá o que você vai fazer com a minha patroa. –ela o alertou e saiu levando vestido e tamancos.

O tamanho da cama daria para acomodar Fátima e Otero, se não fosse a grandiosidade da ânsia voraz dele roubando-lhe a noção de espaço físico. Primeiro, ele queria sentir a textura da pele macia do rosto dela. Com jeito, ele a ajeitou colocando a cabeça dela sobre suas pernas, para em seguida lamber o rosto dela de modo á umedecê-lo degustando-a de maneira animalesca. Depois da salivação, Otero debruçou-a para passear as mãos por toda região lombar do corpo de pele firme e curvas sinuosas. A sensação de estar na cama com a mulher de Augusto, o seu segundo maior desafeto, causava-lhe gozo sem ejaculação. Ele a virou de lado, de costas para ele, e despido colou o membro ereto dele entre as nádegas dela. Os dedos da mão direita se revezavam na cavidade central do corpo dela. Tal posição e toques, o faziam dar gemidos extasiados e emoções ímpares, mas também fez com que Fátima desse sinal de estar se despertando. Otero pulou da cama e apagou a luz.

-Augusto, é você?

Ele não respondeu. Fátima não estava em suas condições normais para perceber que o homem que acariciava suas partes íntimas seria o marido dela ou não. A dor de cabeça havia passado, mas seus sentidos desajustados, e seu psicológico abalado. Apenas a fragrância do mesmo perfume que Augusto usava foi o suficiente para fazer que ela se entregasse ao impostor de seu esposo. Mesmo sem querer e poder, mais pela obrigação, talvez, ou para não perder a postura de mulher que amava e pensava na satisfação sexual do marido, ela se deitou assim inteiramente sem querer, permitindo que ele se satisfizesse, pois, para ela, fazer sexo com ele, - Augusto. - naquela situação não passava de uma obrigação. Tudo que Fátima queria era dar prazer a ele.

Os minutos que passavam eram sem dúvida, muito prazerosos para Otero doente por sexo á qualquer hora do dia e com qualquer mulher que suportasse praticá-lo com um homem que só queria se vingar de seu próprio irmão, dando um neto á ele para arrancar uma lasca na fortuna repassada ao rebento ao completar dezoito anos de idade. Se fosse netas ela ás sacrificaria sem nenhum peso na consciência. Otero se comportava como se Fátima fosse uma cadela no cio, louca para ser atracada por um cão virulento.

Ai Augusto, você está me machucando. – ela tentava dizer, mas a voz não saía por razão de o efeito do sedativo ainda estar agindo no cérebro dela e a deixando quase inconsciente.

Ah, você é uma mulher e tanto – Otero avaliava em pensamento.

Numa explosão de êxtase ele começou a urrar feito o animal que ele era, e, Fátima sentia o jorro torrencial inundando suas entranhas.

Querendo aproveitar mais daquele momento tão esperado e satisfatório, Otero a virou com indelicadeza, e pondo-a de joelho e cotovelos sobre o colchão, ele se posicionou às costas dela. A segunda posição seria para que ele conseguisse penetrá-la com mais facilidade e não deixar que ela se conscientizasse de que não era Augusto que a violava numa posição que, para ela era indecente.

Fátima não tinha experiência como mulher e desconhecia tais desdobramentos para a prática de sexo entre ela e Augusto na hora do amor. Ela movimentava para frente e para trás por ter as mãos fortes de Otero abarcando seu quadril, forçando o corpo dela á se movimentar para frente e para trás. Termine logo com isso meu bem. – era o que discorria na mente dela, enquanto que o monstro se movimentava freneticamente por trás dela na posição canina. Nós vamos conseguir, meu amor! – pensava ela, com o rosto e os seios indo e voltando riçando o lençol.

Me sinta todo dentro de você, mulher deliciosa. Ahhh! – ejaculou e deixou sua cabeça e peitoral cair cansado sobre as costas dela.

Felizmente, a pouca potência sexual do insistente, não permitiu que ela se amaldiçoasse por ser possuída por ele. A segunda ejaculação, somente dele, aconteceu de modo á ter que trocar os lençóis.  Otero estava satisfeito e saiu antes que Fátima acendesse a luz para enxergar quem sobrepujou o direito reservado apenas á seu marido Augusto. Quando ela finalmente pôde se ver claramente ela estava enojada por sentir o esperma dele escorrendo sobre as pernas dela. Até que finalmente conseguiu se livrar daquele líquido gosmento em suas coxas, ela se levantou e foi ao chuveiro para tomar banho.

Na manhã seguinte, tomando uma xícara de café, Fátima olhava pela vidraça da janela e viu que Augusto saía para o trabalho. Do portão ele acenou um tchau á ela.  Fátima correspondeu Imediatamente ao aceno com um beijo jogado e um gesto insinuando que aquele beijo devesse tocar o coração dele. Era da parte dela o gesto mais íntimo e indicador do sentimento de amor que ela guardava dentro do coração. Olhou para o fundo da xícara e sentiu que havia se esquecido de adicionar o açúcar. Só então veio a sua memória, que ela sentia um cheiro forte de perfume enquanto sobre os lençóis na noite anterior ela fazia amor com ele, com a luz do quarto, apagada... –Augusto. –dissera ela indo correndo ao portão. –ao chegar, não o avistou mais. Voltava para dentro de casa quando viu a sacola de pão e leite deixada pelo Otero no pé da coluna do portão gradeado da casa. Ao pegar o embrulho o abriu e então viu um bilhete. E nas linhas estava escrito: – ontem nós fizemos amor como sempre temos feito. Você estava deliciosa como nas noites passadas. Assinado: Eu.

Fátima leu, releu, e mesmo não sabendo como foram as noites de amor, mas jamais passaria por sua cabeça, que ela havia estado com um demônio que a enganou e a tragou com seus enganos e encantos demoníaco, a tratou com falsa ternura, á ouviu com brandura fingida e a tocou com delicadeza e carinho.  Para ela era o Augusto, pois, outro homem não a incomodaria em sua cama. Ela acreditava assim. No período da tarde de um dia no mês de novembro do ano 1965, ela foi buscar seus exames médicos. Voltou para casa e esperou pela chegada de Augusto. Quando o viu entrando na casa, ela o abraçou e Insinuou que queria passar a noite com ele novamente. Augusto alegou que precisava ficar sozinho no quarto para resolver alguns assuntos com o pai dele. Ela entregou á ele os resultados dos exames, deu-lhe um beijo de leve nos lábios e foi para a cozinha radiante de alegria. Augusto conferiu os resultados e foi á ela ao redor do fogão, a xingou, acusando-a de mulher traidora, safada, vagabunda e de outros adjetivos que a fez chorar muito naquela tarde do mês de novembro de 1965.

Ela havia conseguido engravidar e já estava na sexta semana de gestação.




                                                                                                


                                                        10



Quando Valquíria soube de sua gravidez, seria muito simples dizer á Augusto, que ela não fazia sexo com o marido dela, mas, ela não era uma mulher casada, e sim insaciável na arte do sexo. E por isso ela se submeteria á um exame para saber se ela estaria grávida. Então, ela foi à clínica especializada e exclusiva para as mulheres. Na parede de um corredor de acesso ás salas de exames, ela leu um cartaz de prevenção contra uma doença sexualmente transmissível. –previna-se, faça sexo seguro. Realmente as mulheres. –sérias-, estavam preocupadas com a possibilidade de contraírem doenças através do ato sexual com os seus esposos puladores de cercas. E essa doença maldita começava á se espelhar pela capital. E os médicos já alardeavam a população contra os riscos da infecção que afetava sistematicamente o sistema imunológico das pessoas, de maneira que as deixavam vulneráveis á qualquer outra enfermidade, e as levariam á morte sofrida. O perigo maior seria a proliferação da doença, pois a cura dela ainda era um grande desafio para a medicina da atualidade.

Exaustivas três horas depois, ela saiu de lá minuciosamente examinada.

Eu não acredito que o Augusto possa ter contraído doença sexualmente transmissiva. –ajeitou a alça da bolsa no ombro e saiu pisando firme em direção ao carro. Então, ela ligou o motor e saiu do estacionamento da clínica. Após alguns quarteirões superados na avenida, ela deparou com uma multidão em greve, -eram os metalúrgicos-. A manifestação na circular da praça á fez desviar para outra rua. Logo que manobrou o veículo para á esquerda, ela passava próxima á Confeitaria. Teve então que tirar os óculos de sol com lentes marrons para ter certeza de que era o Augusto quem estava andando com outra mulher. Maneirou a velocidade, e lentamente passou acompanhando os dois, sem que o casal a percebesse.

*Cafajeste.

Se sentindo traída pelo amante, ela estacionou e desceu do carro. Seu rosto estava vermelho de ódio. Olhou sua imagem no vidro lateral do automóvel, recolocou os óculos e entrou na loja de doces.

Alguns clientes estavam ali comendo bombas de chocolates e doces de morango e chantili. Augusto e a mulher estavam de costas para a porta de entrada. Não comiam nada, apenas bebiam refrigerantes. Valquíria não estava ali para deliciar-se com os doces. Então ela disfarçou a ira olhando e cumprimentando os fregueses com um olhar e um arquear de sobrancelha e seguindo até ao conquistador e sua acompanhante.

-Olá Augusto! –disse ela ignorando a mulher. –Eu estava te procurando. Que coincidência, a gente se encontrar aqui.

Sorrindo, ele se levantou.

-Oi Valquíria! –disse aproximando o rosto dele ao dela. –Eu estava falando de você.

-Por favor, não seja cínico. –falou baixo ao ouvido dele. –Eu não sou uma idiota.

-É claro que não. Você é a mulher mais bonita e elegante que eu já conheci. Sente-se. Essa é a Valquíria...

-Não seria a sua esposa também? –perguntou mostrando total á acompanhante dele.

-Nós estávamos falando sobre você...

-É! Eu imagino que sim. - ironizou. - O que ele te dizia sobre mim? Por acaso ele te disse que ele havia marcado um encontro comigo aqui?

-Valquíria...

-Tudo bem Augusto. Eu sei que eu fui uma...

-Valquíria Olha e veja onde você está. Se acalme. –fez sinal de baixa o tom. –Agora, sente do meu lado. Eu estou com saudade do seu abraço.

Agitada, mas se controlando para não explodir e dar um escândalo, ela levou as mãos trêmulas ao rosto e as deslizou ás orelhas e pescoço.

-Ai Augusto! O que você está fazendo comigo e com a minha vida? –sentou-se.

Vendo-a com as mãos no rosto corado de raiva, a outra resolveria ir embora.

-Eu vou ver o que eu posso fazer, mas você sabe que será muito complicado. Eu não consigo fazer nada sem antes ter o resultado dos exames. Ainda mais, se tratando de algo tão melindroso. –falou se levantando para sair. Com cara de contrariada e saiu sem dar um simples até mais aos dois.

Valquíria iria mesmo ao encontro dele para os dois poderem conversar sobre como estava sendo difícil para ela, ter que suportar a barra que á cada dia se tornava pior depois que ela passou á dar atenção e cuidado especial ao feto que ela trazia em seu ventre.

Quanto ao inusitado encontro era aquela típica situação a qual toda mulher alega não querer explicações, e diz contra a vontade: - eu não quero saber de suas desculpas. Dane-se você e essa vagabunda. - porém, ela se encontrava numa situação bem mais complicada. Qualquer cena de ciúme protagonizada por ela naquela hora seria uma demonstração clara de que Augusto a estava preterindo por outra mulher. Sentiu-se péssima por não ter avançado nos cabelos da outra e não tê-los arrancados com unhas e dentes. De qualquer forma, só lhe restava ouvir ás explicações de Augusto.

Ele foi até ao balcão e pediu duas mouses de maracujá. Sendo ele servido, ele voltou á mesa onde Valquíria ficara de perna direita cruzada sobre o joelho e balançando o pé de tanta ansiedade. Ele sentou-se de frente á ela.

-Eu entendo a sua desconfiança. –disse ele ao passar a guloseima á ela.

-Eu não quero comer. –disse ela afastando o pratinho. -Quem é ela? –perguntou ajeitando os cabelos detrás das orelhas.

-Uma mulher qualquer. –falou, mastigou e engoliu.

Valquíria não engoliu a desculpa, conhecia bem á Augusto, mas preferiu mudar de postura em relação á tudo.

-Eu só queria te dizer que os exames foram feitos. –puxou o pratinho para o seu lado e tascou o primeiro pedaço do rocambole.

Augusto á observava mastigando sem degustação.

-Mas, com certeza, eu estou grávida.

-Quando você for pegar os resultados dos seus exames, pegue os meus também. Eu estive no laboratório do lado da clínica, antes de você. Eu quero que você veja os resultados dos meus exames.

Valquíria afastou novamente o pratinho e o encarou nos olhos.

-Por que tudo isso Augusto?

-Não é por desconfiar de você.

-Então porque é?

-Coma primeiro. Depois a gente conversa sobre esse assunto.

-Eu estou evitando comer doces.

Tudo estava indigesto á ela. Não bastasse o fato de na madrugada ela ter feito sexo imaginário com uma legião de espíritos, ainda se segurar para não ter orgasmo sentindo o instrumento cilíndrico penetrando suas entranhas para colher o material para exames ginecológicos. E, tudo isso, para chegar ali e flagrá-lo com outra mulher.

-Tudo bem, então não coma. –pegou nas mãos dela e as cruzou ás dele sobre a mesa. –Eu tenho pensado muito em nós dois. Então eu quero que sejamos abertos um ao outro.

-Eu entendo você. –disse apertando as mãos dele. –Eu só me senti um pouco insegura. É difícil lidar com essas situações de gravidez.

-Eu sei, é sempre muito amedrontador passar por todo esse processo. Mas, você precisa ter certeza de que eu sou uma pessoa que não te oferece risco á sua saúde.

-Eu nunca desconfiei de você. Mas eu tive que fazer todos aqueles exames. Isso me deixou...

-Eu sei, eu sei. Não se preocupe com isso. Quando tudo ficar esclarecido, aí então nós teremos a oportunidade de nos entregar um ao outro, ou de sumirmos da vida um do outro.

-Assim você me deixa mais confusa em relação á nós dois. –disse soltando as mãos dele.

-Valquíria, você tem que entender que eu não quero que você pense que possa estar cometendo o maior erro da sua vida.

-Eu já pensei sobre tudo. Eu estou pronta para viver com você para o resto da vida. Se você quiser a gente pode mudar de cidade, ou eu posso mudar para a sua casa, se você não quiser ir para a minha. -ela abandonou o lugar dela e se sentou do lado dele. –Eu estou apaixonada por você e esperando um filho seu. E não me importo se outras mulheres poderão dar filhos á você também.

Augusto acarinhou os cabelos dela sobre o ombro e fez uma reflexão sobre tudo que estava acontecendo com ele.

-Val, eu preciso saber dos meus resultados de exames. Fátima, Darlene e Débora também terão filhos meus.

Como predito pelo profeto, na noite do dia 06/06/1966, mulheres enlouquecidas gritavam dentro nas dependências do sobrado que após aquela se chamaria A casa Maldita.



























                                  O último Rivera. Parte III. Ano 1976. Goiânia



                                                                      11


O clima estava frio, havia chovido na madrugada fazendo a manhã de segunda feira ficar embaçada e um leve vento frio fazia com que as pessoas usassem seus agasalhos. Na calçada da Avenida Goiás em Goiânia, entre uma multidão de pedestres que trafegavam num vai e vem constante, lá estava uma figura de corpo franzino, cabelos anelados cobrindo as orelhas, com uma caixa de graxa nas costas, andando veloz como quem não queria perder o ônibus. Era Ângelo apressado indo em direção à lanchonete para fazer o que ele mais sabia fazer: comer. Vivia a maior parte do tempo nas ruas engraxando sapatos, carregando sacolas de compras das mulheres aos apartamentos delas no centro da capital.

Quem eram seus pais, ele não podia responder. Sua própria existência era um mistério, o qual deixava as pessoas que o conheciam, um tanto quanto admiradas e ao mesmo tempo perplexas á tal fato. Alguns vizinhos comentavam entre eles o surgimento de um menino que de repente apareceu no bairro, sem a companhia de um adulto, um alguém que pudesse ser um parente próximo ou distante. Simplesmente surgiu, e, de onde viera ninguém saberia dizer.

Ângelo costumava dizer que apesar de ele não estudar em colégio convencional, - ainda que ele não soubesse o significado da palavra convencional, - fazia das ruas e avenidas suas salas de aulas, da vida, sua professora, e sobreviver, sua matéria mais importante.

–Ô seu Osvaldo, me dá um pão de quêjo e um café cum leite ai. –pediu, para depois se sentar num banquinho giratório sem encosto, fixado no piso por um cano cilíndrico de ferro, rente ao balcão.

–Frio ou quente Ângelo? –o atendente e sócio da lanchonete, perguntou terminando de lavar alguns copos, talheres e pratos na pia. –Frio ou quente? –repetiu enxugando as mãos numa flanela branca.

Ele não respondeu, pois estava de olho nos sapatos sujos de um cliente na mesa ao lado.

–Quer ingraxá ai freguês?

–Obrigado. –respondeu o cliente, e continuou lendo o jornal.

Ângelo girou sobre a banqueta, de volta ao balcão.

–Ô seu Osvaldo, me dá meu lanche ai. –pediu, erguendo as mãos.

–Agora, espera. –disse Osvaldo, que servia um café fumegante a outro cliente.

Ângelo ficou com os braços sobre o balcão.

–Pronto Ângelo. Quente ou frio?

–Quente.

O garçom o serviu.

Esfregou as mãos, tateou o copo conferindo a temperatura do misturado.

–Nossa! Esse trem esquenta memo!– exclamou enquanto ele olhava Osvaldo depositar as duas vasilhas de metal-inox dentro de um recipiente metálico cheio d’água fervente.

-Esquenta mesmo.

-Tanto faz seu Osvaldo. Cadê o meu pão de quêjo?

–Já vai, já vai. –respondeu preenchendo uma ficha-caixa para o freguês que pedira a conta. Recolheu copos, limpou o balcão com uma flanela cor de cenoura, e então serviu a quitanda á Ângelo.

–Correria hem seu Osvaldo!

–É, hoje eu estou só no atendimento... O bocão não veio.

–Deve tê pirdido o ôimbus.

–Ou então bebeu todas ontem, aquele lá bebe igual funil.

–Qué que eu ajudo o sinhô?

–Quero. Vai limpando o balcão e os tamboretes.

–Pera ai. –levantou, foi ate á calçada, encostou a caixa de graxas na parede e voltou para ajudar o bom atendente.

–Me dá um pano ai.

– Pega. –Osvaldo lançou á ele outra flanela umedecida.

Jenarinho, sócio de seu irmão Osvaldo, repunha balinhas, chicletes e cigarros nos expositores de vidro do caixa, vez e outra ele olhava para Ângelo limpando e ajeitando os assentos rentes ao balcão. E dizia consigo mesmo, se Ângelo fosse um pouco maior e mais velho, poderia lhe dar emprego na lanchonete. Gostava dele. Era um bom menino. Conhecera-o em um dia que ele estacionou seu carro na Avenida Goiás, e na pressa esqueceu o vidro aberto. Um elemento tentou roubar-lhe o toca-fitas. Ângelo o impedira dizendo que chamaria o dono do veículo. O malandro desistiu e Ângelo foi avisar ao descuidado dono: “Seu moço, o mala quiria roubar seu som, mas eu num deixei.” Jenarinho acreditou na conversa dele porque um transeunte confirmara a versão: “se não fosse esse engraxate, o seu toca-fitas já era.” Jenarinho perguntou á Ângelo sobre os pais dele, e Ângelo respondeu: “sei não. Eu vivo sozim nesse mundão de meu Deus.” Jenarinho farfalhou os cabelos dele e disse que ele era um bom menino. “Me dá um lanche, intão.” Desde então, Ângelo tornara seu apadrinhado, com direito de comer e beber sem pagar nada.

–Limpei tudo, agora mim dá a bassôra que eu vou barrê.

–Pega. –disse Osvaldo lançando a vassoura de cerdas macias.

Alguns minutos depois...

–Pronto. Cabei. Agora eu vô ingraxá.

–Poxa Ângelo, valeu pela força.

–Falô, seu Osvaldo. Tchau.

Com a caixa nas costas ele saiu oferecendo seus préstimos.


Ele já havia já ganhado alguns trocados, pois o dia estava frio, mas não chovia. Num dado momento ele cogitou ir ate o mercado livre da cidade, mas desistiu da ideia ao saber que já estava chegando ás 11h30min e ele precisava se ver livre daquela sensação de vazio no estômago. Passou por uma loja e ao ver um corpo de material plástico, estático, vestido com roupas de grifes famosas, ele deduziu que fosse ali que Irmão Robson comprava suas roupas e calçados. E recordou de Frangão dizer em volta da fogueira que ele não “garrava” nem manequim de loja.

“Então é isso” Já sei. Vô cumê lá na viela da Cademia Hugo Nakamura. Nossa! E a minina que o biloca cunvessô cum ela sábado? Será que ela luta lá mermo? Vô passá lá, é bão que eu fico sabeno. Ih... E os cheracola?

*Banca de revistas*

–Moço, conto que é o gibi?

–Qual deles?

–Esse aqui ó. –apontou para o gibi do Homem Aranha.

–5 cruzeiros.

–Me dá ele intão. -desamarrou o dinheiro que estava amarrado pela cordinha do calção, pegou cinco cruzeiros, pagou ao homem da banca e seguiu.

Encostou a caixa de graxa na parede debaixo da marquise de um estabelecimento comercial, se sentou sobre a caixa e põe-se á ler. Decidiu que daquele momento em diante ia aprender a ler, escrever e falar corretamente, sozinho. Dali em diante, ele descobriria o beneficio da leitura.


Da cerca de arame farpado que tinha um portão de madeira, Ângelo observava seu amigo ancião com um rodo na mão rapando a água da chuva que molhara o alpendre de sua pequena residência. Cândido Plates Rivera, um senhor de, cor clara, cabelos grisalhos lisos, olhos castanhos de olhar nostálgico, sua voz mansa e bem articulada transmitia sobriedade e um profundo conhecimento sobre os temas da vida. Ângelo gostava muito de escutar ele falar suas experiências vividas.

Cândido era um homem muito importante nos anos da ditadura militar. Profundo conhecedor de todas as artes reais que todos conhecem apenas na teoria. Através da arte musical ele conseguia influenciar pessoas e, ás fazia lutar contra o regime autoritário do governo. Suas letras e poesias continham mensagens subliminares que induziam os ouvintes á se tornarem revolucionários, mesmo sem causas para defenderem. Muitos cantores da época gravaram suas músicas, mas á maioria ou, talvez todos eles, tiveram suas canções censuradas e proibidas de serem tocadas nas rádios Brasileiras.

Quando o governo soube de quem era as inspirações que punha em risco a estabilidade do sistema governamental, por fazer com que a multidão fosse as ruas protestando e entoando as musicas composta por Cândido, eles se viram na obrigação de manter Cândido em seus domínios. Mas Cândido também fazia e, faz parte de uma ordem filosófica que o protege de tudo e de todos, porque ele ainda é o grande idealizador e formador de conceitos sobre o desenvolvimento intelectual. Tal prestígio o tornou intocável. Para fugir do assédio do governo, ele abandonou esposa e filho. Temendo pô-los sob ameaça, eles tiveram seus sobrenomes trocados.  Então ele deixou o estado de São Paulo e se mudou para Goiânia, e desde então, ele abriu mão de tudo que possuía para viver uma vida simples e discreta, mas ainda seria o nome de maior respeito no meio da sociedade de poderosos. Através de seu conhecimento sobre psicologia humana, ele conhece as intenções mais ocultas de um ser humano pelo seu modo de andar ou ficar parado. Na música ele decodifica sinais gráficos da escrita musical, e usava desse talento apenas como pano de fundo para educar aqueles que ele captasse honradez em seu caráter.

-Seu Cândido, cumé que tá o sinhô?

-Ângelo, vem pra cá.

Ele seguia lentamente em direção do velho amigo, olhando de um lado e do outro o quintal de 12 metros de largura por 30 metros de comprimento, que seu Cândido trazia sempre carpido e bem varrido.

-O sinhô tá bão?

-Melhor agora que você chegou. -respondeu estendendo a mão á Ângelo em forma de cumprimento. -Senta. -apontou para uma cadeira de fios tipo espaguete que fazia par com outra idêntica.

-Brigado.

-Vejo que você pretende jogar bola.

-Quiria, mas num vai dá não.

-É... o tempo não está para futebol.

-O campim tá só o barro. O sinhô jogava bola?

-Sim. Eu fui ponta canhota.

-Ponta canhota ou ponta esquerda?

-Canhota.

-Ah, tanto faz, é a mesma coisa.

-Não Ângelo. Esquerda é relativo á direção e lado.

-Cumassim?

-Bom, vamos lá. Deixe-me te explicar. Quando você quer direcionar alguém você diz vai para a esquerda, ou então para a direita, não é?

-Hã, hã.

-Então. Mas se você não é destro de pé ou mão então você é canhoto.

Ângelo fez cara de quem ficara ainda mais confuso.

-Quê que é destro?

-Por exemplo, com qual pé você chuta a bola?

-Cus dois.

-Não. Com os dois você cairia.

-Cum corqué um é do mermo jeito.

-Então você é ambidestro.

-Piorô. Agora cumplicô mais ainda. -disse Ângelo coçando a cabeça com as duas mãos.

-Destro é direito, ambidestro é canhoto e destro, entendeu agora amiguinho?

-Intindi.

Cândido pediu licença e foi guardar o rodo. Ângelo o acompanhou com os olhos e notou que acima do batente superior da porta que era via de acesso da sala para a cozinha havia na parede um retrato tamanho 30x40 com quatro personagens. Ele deduziu que eram Cândido, sua esposa e seu casal de filhos.

O velho voltou trazendo duas laranjas e uma pequena faca de cozinha.

-Quer que eu descasque para você?

-Pricisa não. Parte ela em quatro que eu como até o bagaço.

-Sem desperdício. Você é inteligente.

Cândido partiu as duas laranjas como Ângelo sugeriu. Cuidadosamente ele tirava as sementes das partes da laranja antes de levá-las á boca. Ângelo não se dava ao trabalho, abocanhava o gomo, prendia-o com os dentes, com a mão desprendia a casca e numa espécie de trituração seletiva ele engolia o bagaço e cuspia na terra as sementes. Tudo isso observado pelo velho que, com um mudo sorriso dizia: coisas de criança.

Depois de um breve silencio.

-Seu Cândido, por que o sinhô mora sozim?

-Porque eu moro sozinho? –pigarreou. Bem, amiguinho, eu deixei São Paulo em 66. Minha esposa e meus filhos ficaram lá.  Então eu vivo só. -Cândido relatou apoiando os cotovelos nos joelhos e com os dedos das mãos unidos formando uma espécie de pirâmide.

Ângelo notou no olhar distante de Cândido, que, aquela pergunta havia trazido á tona lembranças que o velhinho preferia não recordar.

-Que ruim néh!-Ângelo exclamou condoído.

Cândido permanecia imóvel olhando para o vazio do Horizonte.

-Seu Cândido, eu vô imbora. - avisou despertando-o de seu estado divagante.

-Sim... não Ângelo, fique mais.

-Eu tenho que i.

-Tudo bem, volte outro dia pra conversamos mais. Se você quiser aprender música, eu vou te ensinar.

-Tá bão.

Ângelo saiu novamente como saíra de casa, chutando uma bola imaginária.

Do terreiro, com uma mão sobre o portão e a outra na cintura, Cândido observava seu pequeno amigo se afastando, fazendo da rua enlameada seu campo de futebol imaginário.

-Vai amiguinho, fantasie o tempo de palhaço. Ria, se alegra, seja feliz o quanto pode porque o tempo na realidade é severo. -filosofou em silêncio.

“E você, que de tão burro que é, nem sabe falar direito” Ângelo recordou de todas as ofensas que ele e o coleguinha trocaram naquele dia e sentiu-se humilhado no momento em que o garoto o chamou de analfabeto.

Girou nos calcanhares.

-Seu Cândido, eu quero aprender musga.

-Então venha. Você tomou a decisão correta.

-Eu vô aprender á cunvessá direito?

-Sim, e muito mais.

Então, o pequeno Ângelo estava na casa de Cândido Plates Rivera para a sua primeira aula de música, quando naquela hora, de um Landau preto desceram duas pessoas, sendo um homem vestido em um terno preto, andando com o auxílio de uma bengala de madeira envernizada. Seu acompanhante era um menino loiro de olhos verdes. Ele andava lado á lado com o homem, em passos lentos, calculados.

Cândido os recebeu no alpendre.

-Mestre Cândido. – disse Amaro, com total respeito a autoridade de seu superior.

-Esteja livre de toda subserviência. Temos aqui igualdade de posições, camarada Amaro.

Amaro assentiu com um leve movimento de cabeça.

-Senhor Cândido, a sua bênção. – com a cabeça baixa o menino pediu.

-Que o grande e amável Deus universal o abençoe, Jorge. – respostou estendendo a mão em direção ao menino.

-Que assim seja, senhor Cândido.

-Entre e faça companhia ao coleguinha no círculo. – Cândido ordenou ao garotinho.

Jorge deixou transparecer em seus olhos toda alegria contida dentro de si, e foi depressa ao encontro de Ângelo.

Amaro viu-se surpreso com a notícia. Ele tinha que seu neto Jorge fosse o preferido e único aluno de Cândido. Todavia, ele não ousaria contestar nenhuma das determinações do líder-mor da Ordem Rivera.

Ângelo permanecia sentado no piso da sala, com as pernas cruzadas em x. Sua mente estava em estado imaginativo.

-Essa aula podia acabar logo, pra eu ir jogar bola no campim...

-Ei menino, eu conheço você.

De pé, Ângelo examinava o engomadinho

-Eu também te conheço.

-Quantos anos você tem?

-Quase dez.

-Toca aqui. – disse Jorge estendendo a mão.

Ângelo aceitou a proposta. Pegou na mão dele e abandonou o círculo. 0s dois meninos deram as mãos um ao outro e então teve início uma parceria que tinha tudo para dar errado. Jorge, garotinho bem afeiçoado, educado e rico. Ângelo nunca havia freqüentado uma sala de aula. Fazia das ruas a sua escola. Nas lições da vida nas ruas e avenidas da cidade ele aprendeu que devia defender seu território de possíveis intrusos, e, Jorge estava com seu jeito todo alinhado invadindo seu ponto de estudo musical.

-Vamos brincar. – disse Jorge com empolgação.

-Vambora... não. Com esse terno e essa gravata você não pode jogar bola.

-Quem disse?


Naquela hora da manhã o sol já aquecia a terra e os corpos dos descamisados, pois na falta de uniformes as equipes eram divididas em de camisas e sem camisas. O terno branco do garotinho Jorge ganhou uma cor vermelho terra. Ângelo aplicou dribles desconcertantes e marcou algumas dezenas de gols no campinho, com seu coleguinha Jorge sendo o goleiro do time dele.

Mas, a turma de meninos foi se dispersando aos poucos, até os dois fujões perceberem que já estava na hora de irem embora também. Jorge tinha quase a mesma idade de Ângelo, um pouco mais magro. A maior aventura dele era passar horas nadando na piscina em sua mansão, e, em alguns intervalos da aula de música, Cândido dava á ele o direito de subir no pé de abacates para colher alguns frutos. Numa tarde de domingo ele viu Ângelo que vinha do campinho de futebol, e passou na casa de Cândido para conversar um pouco com o velhinho. Jorge perdeu a oportunidade de fazer amizade com um menino de classe social diferente da dele. Desde então, o filhinho de papai percebeu que seus eram dias monótonos e chatos. Quando ele jogava videogame, ele desejava estar brincando com aquele menino pobre, todo sujo e feliz.

-Você viu que golaço que eu fiz lá do meio do campo, Jorge?

-Ah, que nada, você tentou foi lançar para aquele neguinho.

-Foi nada. Eu vi o goleiro adiantado, e só cobri com categoria.

-Nossa, ele é ruim demais, no gol, e levou cada frango.

-Né não. É porque o nosso time hoje estava bom. Eu, você, o Bigú e os outros lá que eu num sei os nomes, jogamos pra caramba. Mas, você viu o tanto que o Fernandinho é bom?

-Aonde é que ele mora? Ele parece o Zico. - Jorge comparou.

-Parece mesmo. Ele mora lá no Jardim Progresso. Vamos jogar no campo de lá?

-Eu não posso. O meu pai vai me dar um castigo por eu ter perdido a aula de hoje. Beleza. Agora nós dois somos amigos para sempre.

-Só o tempo dirá, como diz o senhor Cândido.

-Ângelo, você vai continuar estudando música com o Senhor Cândido?

-Claro que vou. E quero ser professor de muitos alunos.

-Boa sorte então.

Ângelo despediu-se de seu amigo Jorge e seguiu para sua casa.

-Bateu, chutô e... Goool! Golaço de Ânzico.  Camisa número 10.


Na casa de Cândido tudo já estava preparado para o início do aprendizado do menino. No piso havia um círculo desenhado á pó de giz branco. Dentro do círculo, quatro desenhos de seres humanos,  um copo cheio de água, um punhado de terra, uma tocha de fogo e uma biruta. O último desenho, Ângelo não conseguiu determinar o que seria.  Cândido pediu para que ele se sentasse no centro do círculo. Ele se sentou e começou a indagá-lo.

-Isso aqui é um coador, seu Cândido?

-Não, amiguinho. É que eu não sei desenhar o ar e nem o vento.

-O que isso tem a ver cum musga?

-Com música, tudo. A estrutura da música é o Som, nas seguintes vozes: Soprano, Contralto, Tenor e Baixo. Os e elementos físicos da estrutura do universo são: Terra, Água, Ar e Fogo. Numa representação simbológica do universo musical com o universo planetário, podemos correlacionar os elementos de um e de outro universo.

-Cumassim?– perguntou por não ter entendido nada.

Cândido sentou-se de frente a ele, mas fora do círculo.

-Veja a água. Ela representa o soprano porque ela é o elemento de maior volume no nosso planeta, assim como o Soprano é o som de maior consistência em uma música. O ar representa o Contralto porque assim como o ar penetra em todo orifício, brecha e aberturas, o contralto tem a função de preencher as lacunas deixadas pelas outras vozes em uma música em execução. O Fogo significa o Tenor. Estes elementos são encontrados, tanto no planeta, como também na música. Há de se tomar cuidado com a maneira de soprar um instrumento. O ar empregado não pode ser mal dosado.

-Eu sei que o vento forte estraga tudo e faz uma disgrameira danada. - disse, com as unhas riscando o couro cabeludo. – E esse montim de terra aqui?

O velho riu achando engraçado.

-Sim, a terra. Bem, amiguinho, a terra simboliza o Baixo, pois, a terra é que dá sustentação aos outros elementos na estrutura terrestre. E, é o baixo que dá base para as outras vozes. Por exemplo: sem a terra, a água não segue seu curso ordenadamente. O fogo não tem base sólida para sustentar sua chama. O Ar se torna rarefeito. Tal como, sem o Baixo, o Soprano fica sem a marcação pulsativa. O Contralto não pode se espalhar de modo a reparar e oxigenar lacunas entre os outros elementos. O Tenor fica sem base para a propagação de sua expressividade sonora.

-Beleza, eu aprendi.

Daquele dia em diante, Ângelo tornou-se aprendiz direto do Cândido Plates Rivera que o disciplinaria usando seus manuscritos como manual de moral e conduta.












                                                         *


                                                      1984


Para Ângelo, o simples manuscrito seria mais um conto inspirado e escrito por algum desocupado que não teria nada de melhor á fazer do que compor uma “estória” de amor transcendente entre um rapaz e uma moça que não podiam se coabitar formalmente numa união conjugal. No entanto, as mortes de três casais, no ano 1945, o surgimento de um profeta afirmando a existência de um iluminado entre os moradores da cidade, profetizando os nascimentos de mais dois iluminados de segunda e terceira geração oriundas do primeiro, para ele não teria sido apenas uma introjeção de personagens fictícios para incorporar ao conto uma expectação de mistério ao entendimento de quem o lesse, afinal de contas, os únicos á possuírem os manuscritos eram Ângelo e Jorge Guilher Vidigal. Alguns pontos cruciais contidos nos dois manuscritos a respeito dos ditos iluminados, o que Ângelo pôde constatar, era que o profeta não fora assertivo em ralação ao caráter pessoal, moral e espiritual do segundo membro da filiação dos iluminados. Cada cabeça é seu guia, e os atos de cada indivíduo estão sujeitos as suas vontades e desejos. Quanto ao terceiro, talvez ele fosse a prova cabal de que o profeta teria mesmo feito profecias á revelias.

A partir do dia em que ele fora adotado por Cândido, ele teve que ler e procurar entender o que lhe estaria sendo passado através do manuscrito que contava um pouco do tempo em que Cândido era ainda jovem e se apaixonara por uma moça chamada Dolores, mas que, por vias do destino, a união entre os dois não pôde se consolidar.

Numa noite chuvosa de inverno do ano 1980, Ângelo estava no círculo ao centro do cômodo onde ele meditava de olhos fechados sobre as ilusões humanas. Depois de uma hora e meia de meditação sobre o sentimento Paixão, ele formalizou uma dissertação á ser apresentada á Cândido Plates Rivera. Em poucas palavras ele disse que Paixão seria a cegueira aos olhos sadios, a surdez aos ouvidos saudáveis, a insipidez ao paladar perfeito, a insensibilidade ao tato sensível, a inolência ao olfato funcional, em síntese, a inoperância dos sentidos.

“Bravo” -disse o auditor satisfeito com o desenvolvimento filosófico do pequeno aprendiz.

Ângelo  indagou o que Cândido queria passar a ele. O velho revelou que por ele estar apaixonado por Dolores, seus sentidos foram estorvados de compreenderem a iminência de uma tragédia anunciada. Ângelo observou: “Mas, o senhor ouviu o aviso do senhor Amaro que o alertou sobre o defeito no cinto de segurança.”

Pegando de volta o manuscrito, ele disse: “Sim. Ele me avisou a respeito do cinto. Amaro me alertou sobre o defeito com o cinto de segurança.” – repetiu de modo emblemático.

Ângelo voltou a meditar. – “O defeito no cinto” - balbuciou.

Cândido franziu o cenho e entregou á ele outro manuscrito. Parecia ser relatos que contava um pouco da juventude de outro jovem, mas continha também participação de terceiros e aspectos de sentimentos das demais pessoas envolvidas no que pareceia ser a narrativa de outro drama familiar.





















                                                        *





Ele estava com a consciência limpa quanto ao que ele faria e com quem faria algo para descobrir sobre si mesmo, mas profundamente estarrecido pelo que lhe foi apresentado pelo amigo Jorge, teria ele que levar á sério o que ele julgava ser apenas um manuscrito de contos de amores e horrores.

O corredor do hospital estava repleto de pessoas querendo ver um parente enfermo. Algumas pessoas choravam por saber que a morte rondava seu ente querido. Entre os visitantes, estava Ângelo esperando chegar o momento de encontrar seu velho amigo Cândido, e dessa vez gozando um pouco mais de saúde, embora a palavra saúde não combine nada com um leito de hospital, mas a esperança era de que ele estivesse melhor.

-Oi, bom dia! –disse ele ao funcionário da recepção. –Eu vim visitar o senhor Cândido Plates Rivera.

Antes que o funcionário lhe respondesse, um médico se aproximou.

-Bom dia, meu rapaz! De onde vens?

-Bom dia! Venho de não muito longe.

-O que trazes contigo?

-Esperança. –Ângelo concluiu.

Eles se cumprimentaram com abraço e apertos de mãos, e seguiram para a unidade de tratamento intensivo.

-Ele está melhor hoje doutor?

-Sim. Vem tendo melhoras á cada dia, desde a sua ultima visita, mas é melhor que você mesmo veja. –o médico abriu a porta.

Ângelo caminhou rápido em direção ao leito.

-Seu Cândido! –quase gritou ao vê-lo sentado, com os olhos abertos.

-Meu amiguinho. –falou abrindo os braços. –Eu estava com saudades de você.

-Eu estive aqui, dias atrás. –pronunciou abraçado á ele.

O médico ficou observando os dois que estavam muito felizes com a agradável surpresa. Ângelo se sentou sobre a cama ao lado de Cândido, e os dois ficaram conversando. Enquanto isso, o medico foi á outros pacientes.

-Seu Cândido eu trouxe algumas amigas nossas para visitar o senhor, mas na portaria eles me informaram que apenas eu poderia entrar.

-Diga á Eduarda, Eunice e Vanessa, que eu ás agradeço por tudo.

-Acertou em cheio os nomes das nossas amigas que vieram comigo. Eu vejo que o senhor está muito bem seu Cândido.

-Eu tenho tido melhoras sim Ângelo, mas dentro de um hospital em uma UTI, tudo é muito incerto. É como uma caixa d’água. Quando ela está vazia, a tendência é encher, porém, quando ela está cheia a tendência é esvaziar. Você me entende?

-Sim, entendo. –respondeu com voz triste.

Ângelo conhecia bem a metáfora de seu amigo, por isso o semblante dele decaiu no momento que o velho á proferiu. Mesmo não ouvindo mais o barulhinho dos aparelhos que não estavam mais ligados em Cândido, ainda assim, Ângelo sentia-se inseguro quanto á saúde dele, e depois do que ele disse, ficou ainda mais em estado de alerta.

-Seu Cândido, dias atrás eu estava arrumando algumas coisas na casa do senhor...

-Na sua casa, meu amiguinho Ângelo. –o velho o corrigiu. –A Débora está passando bem também?

-Está tudo bem com ela. Aí eu encontrei uma foto com três pessoas.

-Um era o Augusto...

-Fátima e Dolores. –o velho completou.

Lágrimas brotaram dos olhos do ancião, e por um instante ele não queria falar sobre sua família. Ângelo permaneceu em silencio procurando evitar que seu amigo viesse á ficar ainda mais abatido. Seu Cândido nunca havia dito nada sobre sua família á Ângelo que só perguntou uma vez á ele quem seria aquelas três pessoas da fotografia na parede, recebeu apenas uma resposta de que os personagens eram filho, nora e esposa dele, mas ele não revelou lhe o nome de nenhum deles.

-Seu Cândido, o senhor sabe o que aconteceu com eles?

-Talvez seja melhor que eu viva e morra sem a resposta.

Foi como se uma flecha atingisse o coração de Ângelo.

-O senhor quer se deitar? –perguntou tomando a mão do velho e segurando no ombro dele.

-Eu consigo me deitar.

-Sim, seu Cândido, eu cuidarei de seguir os seus conselhos.

Ângelo olhou para a pequena mesa do lado da cama do velho e viu que ela estava ocupada por uma folha de papel com as inscrições dos elementos da estrutura terrestre.

-Você é um bom garoto.

Ele apenas assentiu com um movimentar de cabeça.

-Obrigado, seu Cândido. Mas por que, terra, água, ar e fogo?

-Você entenderá no momento certo. Saberá também, como administrá-los.

-Sim, seu Cândido. Eu entendo bem.

-Tudo bem com o velho mestre? –o médico perguntou ao se aproximar.

Conferindo a pulsação e a temperatura do paciente, o médico constatou que seu quadro ia aos poucos melhorando, mas por precaução era melhor que ele descansasse um pouco mais.

–Eu acho que ele agora precisa de um repouso.

-Tudo bem doutor, então eu já vou indo. Seu Cândido, domingo que vem eu virei visitar o senhor outra vez.

-Vai amiguinho... ainda nos veremos outras vezes.

Ângelo se levantou para ir embora e foi acompanhado pelo médico até a porta de saída.

-Ângelo. –disse o médico. -Da bagagem de um homem bom se extrai toda sorte de bens preciosos...

-Se o seu coração não se corrompe, justiça e honra são seus bens mais valiosos. -Ângelo completou.

Eles se abraçaram novamente e se despediram com o aperto de mão incomum.

Ângelo foi embora, o doutor voltou ao leito de Cândido.

-Lapidação é um processo lento, mas esse garoto parece estar bem polido, velho mestre. –disse á Cândido.

-Quando a pedra é muito bruta o cinzel se faz mais útil. Porém, o meu amiguinho não deixou se macular com as arestas mundanas.

-Sábias palavras. Agora descanse. –o médico ordenou cobrindo-lhe as pernas.

O que estava escrito naquela folha de papel sobre a mesinha era nada mais nada menos que um pequeno trecho musical com modulação de compasso, do quaternário inicial para o ternário. Haviam fermatas sobre as barraras de compassos, para a parte harmônica, apenas. E também mudança de tom, e referências à substituição da escala maior pela menor. Ângelo ocupar-se-ia de pensar à respeito dos nomes contidos no pentagrama, numa outra hora. 














                                                         *

O senhor Amaro teria muito que contar à ele sobre Jorge e Augusto.

Entre as poucas pessoas que andavam de um lado e outro na sala de exposições de pinturas plásticas e esculturas, ele encontrou senhor Amaro em pé, com as mãos para trás segurando a bengala de madeira ocre combinando com a cor do terno dele. Amaro, o segundo homem na hierarquia do poder da Ordem Rivera. Nasceu em São Paulo e continuava vivendo na mesma cidade á 63 anos. Homem de sobriedade notável e caráter admirável. Embora, ele fosse descendente de linhagem germânica, nasceu no Brasil e não herdou nenhuma característica física dos escandinavos, nem a crueza dos Vikings em seu aspecto facial. Olhar sereno, analítico, porém. Pálpebras formando bolsas, rosto largo, bochechas fartas e já um pouco caídas.   Um autêntico conservador das marcas deixadas pelo tempo.  Viera à Goiânia para acompanhar o estado de saúde de Cândido Plates Rivera, seu superior.

Ângelo o observou por um instante enquanto ele tateava os traços faciais de uma escultura em mármore. Ao terminar de tateá-la, ele deu dois passos para o lado e ficou paralisado diante da tela de Lasar Segall. Depois de analisá-la por mais cinco minutos exatos, cronometrado em seu relógio, Ângelo colocou-se do lado dele e ficou em silêncio respeitoso. Amaro. permanecia imóvel.

“Dois seres” - Ângelo leu na plaquetinha abaixo do quadro.

O expressionismo representado na tela não impressionava Ângelo tanto quanto a expressão de profundo encantamento nos olhos do grande homem da Ordem Rivera. Seus olhos abertos brilhavam como os de alguém que vislumbrava algo mágico. Ângelo não conseguia entender tamanho encanto.   Então Amaro segurou no ombro direito dele. Por alguns segundos, Amaro só queria sentir a presença do garoto de ouro que ele muito desejava poder revê-lo.

Ângelo permaneceu calado recordando do dia em que Amaro o tocou pela primeira vez. Foi numa noite de inverno muito chuvoso e frio de Goiânia. Amaro fora convidado a ir á casa onde ele morava com Cândido para a comemoração do seu décimo aniversário, logo assim que ele tornou-se pupilo do brilhante Cândido Plates Rivera.

–Você cresceu e se tornou um rapaz precocemente amadurecido.

–Tive o melhor tutor que se pode ter.

–Lembra-se de mim?

–Sim. O senhor me deu a minha primeira bola de capotão.

–E também fui o culpado pela sua primeira torção no dedo do pé direito.

–No meu décimo primeiro aniversário, o senhor me deu o livro.

–A sua inteligência já na idade infantil, bem cedo demonstrava que você seria um livre pensador.

–O senhor sempre foi um homem de personalidade altruísta e um eterno aprendiz em busca de conhecimento. Tudo que o senhor me deu significava para mim apenas um presente de aniversário, mas o senhor Cândido me revelava o verdadeiro significado de suas ações para comigo. Mas no meu décimo quinto aniversário, o senhor me deu um bonequinho feito de cera, e, ele parecia triste e abandonado. Quanto a esse presente, o senhor Cândido não quis me dar uma explicação. Por que, senhor Amaro?

–Eu devo isso a você. –se dispôs com sincero ato de solidariedade. –Mas, não fui eu que o presenteou. Talvez fora Cândido. – e calou-se.

O que Ângelo soube foi que Iolanda era artesã e fazia objetos parecidos aos que ela imaginava e os cobriam com cera. Cândido havia contado que aquele bonequinho foi feito anteriormente ao nascimento de Ângelo. E que foi mesmo uma pena ela ter partido sem tê-lo conhecido.

-O senhor sabe quem o deu a mim?

Amaro meneou a cabeça de forma negativa, segurando a bengala às suas costas, tendo do seu lado Ângelo que mantinha as mãos para trás e de cabeça baixa em sinal de respeito e submissão à ele.

Ângelo achava que havia muito mais para ser descoberto. Sua filiação era um mistério. Dos seus pais biológicos nenhuma fotografia ficou. Nenhum parente de primeiro ou qualquer que fosse o grau. Seu nome Ângelo Ráusen júnior parecia não possuir sobrenome. Por que toda fortuna em dinheiro e propriedades de Cândido Plates Rivera pertenceria a ele, mesmo com ele ainda vivendo? Tanto prestígio entre os membros da Ordem Rivera esparramados pelo país inteiro, e, todos os privilégios por ele usufruído. Para Ângelo, ao ir ter com Amaro lhe seria revelado o real motivo de sua existência.

–Eu sou neto legítimo do senhor Cândido?

Com um simples gesto braçal e balançar de cabeça, afirmou que ele não tinha certeza de nada.

–Algo mais, senhor Amaro?

–Foi verdadeira a minha demonstração de companheirismo quando eu estendi a minha mão a você caído no calçamento do quintal e falei que se por acaso você caísse outra vez, teria sempre uma mão amiga para te ajudar à se levantar.

–Sim senhor. Porém, eu tenho algo muito importante a resolver e preciso de sua permissão.

–Eu quero que você saiba que todos os nossos irmãos, do mais simples ao mais elevado em posição, são compromissados com a verdade.

–Eu jamais duvidaria do bom caráter de nenhum de nós. No entanto, não poderei mais viver sem conhecer a verdade sobre minha própria existência.

–Você tem o direito de usar todos os métodos legais para se chegar á uma conclusão sobre a impossibilidade de você ser filho do Augusto. Augusto Rivera era um sedutor inveterado e teve muitas mulheres. Era insaciável e não se satisfazia sexualmente com uma mulher apenas. Eu vivo dizendo aos nossos irmãos, que você não tem as características morais dele. Tente evitar as suas colegas de trabalho, e, sobretudo, Gisele. Eu soube que ela tem feito terapias para superar um sentimento reprimido, e acredito que diz respeito à sua relação com ela.

–Não seria por ela não ter um bom relacionamento com o Alceu e o Jorge?

Amaro inflou os peitos fazendo os ombros se erguerem. Conteve-se á dizer algo sobre os dissabores da vida de Gisele em convívio com Alceu e o filho.

–O senhor Cândido e a senhora Dolores deserdaram Ângelo?

–Cândido e Iolanda não se conformavam com as depravações do pervertido. Quanto á você, ele não pôde assinar a carta circular que estipula os seus limites de deslocamentos. Sem essas diretrizes por escrito e assinadas por ele, você desfruta de livre arbítrio no tocante ao seu caráter moral imaculado. No entanto, eu peço á você que não nos decepcione.

–O que o impediu de assinar?

–Por telefone ele me disse que a mão direita dele já não consegue mais nem ao menos tatear o baú.

Ângelo assimilou bem a mensagem. Mas, tal como ele, Cândido era Ambidestro de pés e mãos.

-Eu noto que você deseja muito saber sobre mim e Cândido. Eu me tornei amigo dele logo assim que ele tornou-se o principal suspeito de ter assassinado alguns homens muito importantes da sociedade paulistana. Cândido os conhecia desde os anos 40...

-Não me leve á mal, mas, eu já conheço essa história. O livro que o senhor Cândido me deu, também conta sobre esse episódio envolvendo o senhor e ele. Eu preciso que o senhor me conceda liberdade para gastos extras. Existem algumas pessoas que eu terei de garantir total segurança á elas, mas, eu não quero que o senhor Cândido saiba que, se algo de ruim acontecer com elas, ele é quem terá que arcar com...

-Certo, eu entendo. Não se preocupe com a estrutura financeira disponibilizada á você, da minha parte.

-Agradecido. E, até mais ver, senhor Amaro. -e saiu deixando-o em seu estado contemplativo.

****


Débora tomou banho e foi para o quarto dela procurar uma roupa para vestir, mas ela mudou de ideia e, não se vestiu. No espelho da penteadeira, ela se via completamente nua, avaliando os contornos de seu corpo. Ela fora à loja de cosméticos, comprou maquiagens e guardou-as na penteadeira.

Seria a hora de ela deixar de lado os exemplos das santas mulheres servas do senhor, para experimentar um pouquinho só da vaidade e luxúria de Jezabel. O batom vermelho deixou os lábios dela ainda mais atrativos. O rímel, a sombra e a base foram por ela comprados desnecessariamente, pois ela não sabia como usà-los. Apostaria suas fichas usando suas únicas cartas: seus atributos físicos, e, a aparição de um inseto causador de pavor à quase todas as mulheres.

–Ângelo, socorro, corre aqui. Corre Ângelo.

–O que foi, Débora? –perguntou gritado e correndo.

Quando ele entrou no quarto ela estava sapateando em cima da cama.

–Uma lacraia... ela estava na minha roupa de dormir.

Ângelo ajoelhou sobre o piso e conferiu debaixo da cama... no abajur. Nem sinal da lacraia. Arredou a penteadeira e constatou que o inseto não estaria por ali detrás do móvel. Colocando-se de pé, deparou com Débora com a frente do corpo virado para a parede dando a ele a oportunidade de vislumbrar sua retaguarda sem nem ao menos a cobertura dos cabelos dela. Aproveitou o ensejo para se certificar de que Débora fora contemplada com a dàdiva da beleza física dos pés à cabeça, frente e verso. E, que ele teria vindo ao mundo com a missão de se sacrificar para não aproveitar das oportunidades que a vida lhe oferecia.

–Achou a lacraia, Ângelo? –ela perguntou virando-se para ele.

–Não Débora. –respondeu abafando a respiração com as mãos. –Por que você faz assim comigo? –foi ter com a parede, colou os antebraços nela, demonstrando todo seu esforço para não perder o controle da situação, chutava fraco o rodapé da cerâmica.

Ela desceu da cama e se pôs entre ele e a parede. Deixando marcas de batom no rosto dele, ela guiou as mãos dele por todas as vias anatômicas do corpo quente dela.

–Eu sei que você me quer como eu te quero.

–Não Débora. –negou-se indo sozinho se sentar na cama.

–Por que não Ângelo? –quis saber jà impaciente.

–Você pode ser a minha mãe. Será que não dà pra entender que você e eu podemos estar cometendo um sacrilégio. Para mim, uma mãe é o que há de mais sagrado nesse mundo.

–Eu não sou sua mãe. Deixe de se apegar à essa impossibilidade.

Ele se levantou sentindo seus nervos dando à cabeça. Veio-lhe novamente a recordação do que houve com os dois, quando Débora lavava roupas no tanque. Ela estava vestida em uma camiseta branca de malha bem fina e saia rodada de tergal, amarela.  Ângelo à ajudava estendendo as roupas no varal, vestido em bermuda jeans e camiseta cavada cinza. Alegando estar sentindo calor, Débora despejou um balde d’àgua no corpo dela. A camiseta fundiu–se a pele dela se transformando em uma película transparente. Ele parou rente ao tanque com o balde cheio de roupas torcidas, e ficou reparando aquele apetitoso meio corpo praticamente nu. Os peitos volumosos com os mamilos quase furando o tecido da camisa molhada. A barriga lisa como tronco de bananeira.  Tudo aquilo à vista dos seus olhos causou-lhe certo deslumbramento turvando os seus sentidos.  Como se não bastasse a provocação, Débora o enlaçou com os cabelos e despejou àgua sobre os dois abraçados. “ai que refrescante Ângelo”

Ele sacudiu a cabeça e voltou ao presente momento.

–Veste logo essa roupa, Débora. –falou alto e com autoridade.

–Tà Ângelo... eu vou me vestir. –prontificou-se abrindo o guarda-roupa. –Eu só pensei que você sentisse atração sexual por mim.

–Sim, eu sentia. Mas agora, você me fez sentir vergonha de mim mesmo.

Sem escolher uma peça ela pega uma blusa de lycra e saia longa de algodão sem se lembrar de vestir uma calcinha e sutiã.  Estava envergonhada e com medo de perdê-lo por razão de ela ter sido tão ousada.

–Assim está bom? –perguntou tirando os cabelos de dentro da blusa.

–Está, mas, por favor, não chegue perto de mim enquanto nós não tivermos a certeza de que eu não sou seu filho. –disse e saiu do quarto.

Débora foi atrás dele tentando segurà-lo pelos braços, implorando que ele não passasse à tratà-la com desprezo. Chegando à sala, Ângelo a jogou no sofá para então expor as questões referentes aos dois.

–As suas insinuações me provocam sensações que eu procuro refreà-las para não fazer sexo por sexo com você, porque eu quero continuar nessa ilusão que você é a minha mãe.

–Ângelo, eu também não sei quem eram os meus pais. Não sei de onde eu vim, onde nasci, nem onde eu vivia. O senhor Amaro me encontrou em algum lugar, me trouxe para Goiânia, e eu fui contratada para cuidar de você.

Ele sumarizava seus sentimentos por Débora para conviver com ela uma união longe de ser matrimonial, apesar de ele ter de vê-la chegando do culto e indo direto para o quarto dele, fazê-lo assistir à ela tirando toda a roupa para se embrenhar com ele debaixo dos lençóis.

-O Jorge não conheceu os pais dele? –perguntou Ângelo.

-Não. –ela disse secamente. – Eu tambem não tenho descendente, sou igual à vocês. Talvez nós sejamos descendente dos Monsenhores da ordem do tempo.

A estrutura física de Ângelo se abalou e ele não pôde se segurar de pé. Sentando no centro da sala, ele dobrou as pernas e apoiou os cotovelos nos seus joelhos, sem conseguir acreditar no que Débora acabara de lhe revelar. Foi o maior dos baques que jà o teria atingido em toda a sua vida. Ele iria á São Paulo.










                                                                      *


                                                              São Paulo

Parado em frente ao portão de um casarão cercado com grades de ferro, antes de entrar ele recordava de tudo que passou até chegar ali. Recordou do momento em que ele reunido com seus amigos mais achegados, na sala da casa do pastor Gonçalo e a missionária Dirce, o casal abraçado á ele sentados no sofá o ouvia anunciar a todos, que no dia seguinte ele iria para a maior cidade do país á procura dos filhos de seu querido amigo e mentor Cândido.

No final do expediente de trabalho ele foi ao escritório de Valquíria e pediu á ela que lhe providenciasse uma passagem de avião no primeiro voo com destino á São Paulo. Enquanto ele descia as escadas, foi informado que o próximo voo sairia às 21h00min e que, quando ele viesse para Goiânia, que ele ligasse com 24 horas de antecedência para que lhe fosse providenciado passagem de volta. Não teve tempo de agradecê-la. Pediu ao motorista particular de Alceu, que o levasse até a sua casa. O chofer o levou em casa e disse que o levaria também até ao aeroporto. Ângelo o agradeceu, mas a missão ficou para Murilo com sua moto.

Dentro do avião, traçou o plano de que ao desembarcar seguiria de táxi até a estação do metrô e então ele colocaria a Xerox de uma única fotografia que ele tinha de Cândido, Dolores e o casal de filhos. –achava ele.

Chegando à estação ele percebeu que seria inútil colar os cartazes com a foto. O menino tinha no máximo doze anos, a menina também: ninguém os reconheceria. Ainda assim, os colou nas paredes e colunas da estação com esperança de que eles pudessem passar por ali, vissem os cartazes e talvez os reconhecessem vendo a foto de quando eles eram ainda novinhos.

Ficou na estação até pegar no sono. Dormiu ali mesmo, no banco de madeira, duro e frio. Sua bagagem era só uma mochila colegial com uma calça, cuecas uma camiseta de mangas longas e uma blusa de frio. Soube com antecedência que São Paulo era uma cidade fria por ser a terra da garoa.

Acordou na manhã de terça, com um dos varredores da estação tocando os pés do banco com a vassoura. Foi até a lanchonete da estação, comeu um pão de queijo, tomou leite quente com café. Ia sair sem pagar por pensar que estava na lanchonete de seu amigo Jenarinho em Goiânia. Voltou, pagou a conta e pediu informação ao garçom, sobre como chegar a Praça da Sé, imaginando que chegasse ao centro da capital paulistana ele teria acesso mais rápido ao bairro do Braz. O garçom deu a ele a informação que ele precisava. Não queria ir de metrô, pelo fato de ele nunca ter andado naquele tipo de transporte publico. Tomaria um ônibus que baldearia lotado de gente. Lembrou–se de Joãozinho perguntando a ele o ônibus que tomaria para ir para sua casa. Á Joãozinho naquele dia, ele respondeu que seria qualquer um, mas ali, no lugar que mais parecia um formigueiro, com tanta gente transitando num vai e vem que o deixava tonto por ficar girando para um lado e outro por causa dos esbarrões que recebia das pessoas que andavam mais apressadas do que ele, ele não saberia que ônibus tomar.  O garçom da lanchonete na estação foi supimpa ao lhe apontar com a mão segurando o boné, aonde era o ponto e qual a linha do ônibus que ele tomaria. Como forma de gratidão, Ângelo deixou o troco com o garçom. Quando ele viu que o troco que Ângelo deu a ele daria para pagar três vezes o lanche que ele havia comido, o garçom se arrependeu de tê-lo dado informação errada, e o chamou de volta:

“Hei GO!” –gritou. –Hei goiano. –gritou outra vez.

Ângelo rodopiava, mas o escutou.

“Olha, goiano. Pega o metrô, e no máximo vinte minutos você chega ao Braz.”

Locomoveu pela primeira vez em um transporte de linha férrea. Na noite anterior fizera o translado Goiânia/São Paulo dentro de um avião.

Como foi previsto pelo garçom, em no máximo vinte minutos ele chegou à estação do Braz.

São Paulo sempre fora uma cidade que desperta fascínio e admiração aos seus habitantes e muito mais ás pessoas que a visite pela primeira vez. Já nas primeiras horas da manhã naquela mega metrópoles, Ângelo percebeu que ali era o lugar para as pessoas que queira ir à busca da realização de seus sonhos de consumo e até mesmo se aventurar na vida artística, empresarial, formal e informal. Ainda na estação ele via grupos de jovens negros, usando roupas esportivas folgadas no corpo, ouvindo e dançando musicas de ritmos agitados, fazendo-os realizarem acrobacias difíceis de serem imitadas até mesmo por cada membro do grupo que se reunia em volta de um aparelho de som portátil. Lembrou-se de Bianca, a loirinha moradora da casa da esquina de sua rua, ensinando-o a dançar música romântica pela primeira vez, na festa de quinze anos, dela, na casa dela.

Enquanto caminhava rumo ao ponto de taxi ele via um homem na faixa dos quarenta anos de idade, tocando um sax–alto. Ao notar um violão encostado á parede detrás do brilhante saxofonista, ele entendeu que o músico podia ser um multi-instrumentista. “se estivéssemos em Goiânia eu arriscaria fazer a base harmônica com o violão para dar consistência no solo que ele executa” A melodia: Neil Armstrong “Wonderfull world”

Ângelo não estava ali com a intenção de tornar o seu mundo melhor, ou o dos outros. Fora para São Paulo na tentativa de devolver a força e o sentido de viver á um velhinho que descascava laranjas com uma rapidez jamais vista por ele, e de descobrir sobre si mesmo. Por isso, nada do que ele via na grande cidade São Paulo poderia deter seus passos. Cada minuto usado para apreciar as novidades culturais e sociais daquela cosmopolita cidade seria correr o risco de ter que guardar na memória á ultima imagem que ele tinha de seu velho amigo sem forças no leito do hospital. Lembrou–se de quando conheceu Cândido, depois de ter chutado a bola suja de lama no alpendre de sua casa que ele trazia sempre muito bem limpo, Ângelo pensou que ele cortaria a bola de capotão com seu canivete afiado como navalha, mas ao contrario do que ele imaginava, Cândido trouxe um balde d’água, lavou a bola e disse: “–Pega, amiguinho”.

A primeira impressão nem sempre é a que fica. Porém, a última pode ser traumatizante.

-Taxi!

Ele entrou no veículo e entregou um pedaço de papel escrito nele o endereço da residência de Augusto e Fátima. Endereço este que, Cândido nunca havia repassado a ninguém. Ângelo, só o descobriu quando foi pegar os documentos pessoais do velho enfermo, e na gaveta do criado mudo estava o endereço escrito em papel velho e cheirando á mofo. O transcreveu para uma pequena folha de caderneta e o manteve o tempo todo em sua carteira até o momento que o entregou ao taxista.

-Beleza chefia. Rapidinho nós estaremos lá. –garantiu o taxista.

Rápido. Tudo na vida de Ângelo acontecia muito rápido. Bem rápido ele aprendeu a ler e escrever. Teve rápido amadurecimento pessoal. Aprendeu a dançar musica romântica em uma festa onde tudo aconteceu muito rápido. Os três primeiros beijos no rosto, o primeiro abraço, o primeiro beijo na boca. Tudo isso em apenas uma noite.

Absorto, dentro do veículo ele ia reparando as residências que se faziam minúsculas, se comparadas aos grandes templos religiosos existentes naquela região.

-Pronto, chegamos, chefia.

-Fique com o troco, e, muito obrigado.

-Valeu goiano. Ganhei o dia.

Ele caminhava numa rua ladeada por casas de alpendres visíveis por razão de os muros serem, na maioria, baixos, de alvenaria rebocada, colunas salientes e molduras piramidais nos cimos. Não eram grotescas, mas uma pequena minoria das moradias ainda conservava o estilo colonial. Sentiu que aquela rua possuía aspecto paisagístico melancólico. O céu era de um azul areado, e parecia vestir o tempo com um manto cinza á tremular por força do vento frio que espalhava as folhas ressequidas das árvores de troncos retorcidos.

Então, Ângelo estava ali, em frente ao portão da velha mansão que já não era mais a mesma de dezessete anos atrás. Vendo a pintura desbotada, alguns vidros das janelas quebrados, o jardim tomado por pragas e capim, a varanda empoeirada, sentiu um aperto no peito por achar que a casa à muito fora abandonada. Sentia novamente as expectações sombrias a surrupiar-lhe a paz de espírito. Mulheres desesperadas gritavam dentro de algo em movimento. Outras, em uma casa chamavam por seus filhos. Só ouvia vozes femininas pedindo socorro.

Mentalmente ele percorria de um lado ao outro do quintal do sobrado à procura de alguns que ali estivessem. Muitos estavam mortos. Um turbilhão de imagens desfocadas faziam menções à pessoas mortas e outras à beira da morte certa. Seu corpo estremecia. Seus olhos não se abriam, e mesmo que ele se esforçasse para apagar de sua mente aquelas visões, seu cérebro teimava em produzir cenas de horrores. Mães perdiam filhos, filhos ficavam órfãos. Mulheres enviuvavam, homens desesperavam por perderem suas famílias. Prendeu a respiração e mergulhou mais profundamente nas projeções. Seriam períodos alternados de tragédias. Presente e futuro. Início de um domínio do mal. Fim de um legado honroso?

Com as mãos comprimindo os lados da cabeça, ele buscava livrar-se dos relances das imagens indistinguiveis de pessoas enlouquecidas, e das vozes equalizando em seus ouvidos.

“Socorro. tire-nos daqui” “Meu filho. Eu quero o meu filho”

Em silêncio ele permaneceu parado e pensando em como acreditou em vão que encontraria Augusto e Fátima.

Por entre as grades, sobre o muro de meia parede revestida com pedras, da casa ao lado, ele viu uma senhora já na terceira idade, branca e de feições mórbidas, sentada na cadeira de balanço, vestida em um vestido florido. Ela se movimentava para lá e pra cá num vai e vem lento e hipnotizante. Seus olhos paralisados refletiam a aridez de uma alma vazia, sem alegria. Ela olhou para ele e moveu sutilmente os lábios. Ângelo também sorriu suavemente, arqueando as sobrancelhas.  Então escutou o ranger das dobradiças da porta de entrada. Uma garota bem nova vestida em trajes de empregada doméstica saía da casa com um regador de plantas.

–Olá, bom dia. –disse ele se aproximando da grade.

–Bom dia. Pois não. – enxugando as mãos no avental branco, ela o correspondeu.

–Você poderia me dizer se alguém mora nessa casa?

–É a maldita. Vive dormindo


de dia e só sai á noite. –e deu as costas á ele, para molhar o vaso de flores amarelas na mureta do alpendre. A feição séria da menina após a fala revelou que ela não encarava a questão como sendo meramente uma estória contada por terceiros, carregada de fantasias e de fatos improváveis.

Ao invés de espanto, Ângelo deixou escapar um sorriso discreto. Passou pela mente dele a ideia de saber dela o motivo pelo qual a moradora seria digna de ser chamada de maldita. No entanto, ele julgou que não devia interrompê-la em seus afazeres para ir mais á fundo sobre maldição e amaldiçoada.

Ela terminou de regar as flores e caminhava para a porta. Ângelo percebeu que ela não estaria disposta á falar sobre a amaldiçoada. Acreditando ele, que, toda história de maldições envolvesse crianças inocentes indefesas, Ângelo colocaria o psicológico dela á prova apenas para obter ao menos uma informação mais contundente sem ter ele que se mostrar muito interessado em saber sobre a tal maldita.

–Por favor. –disse, fazendo-a virar-se para ele. –Eu tenho que voltar para a minha casa pra eu cuidar da minha filhinha, e não vou poder esperar ela acordar. Quando você a vir, diz á ela que eu quero contratá-la para ser babá da minha princesinha.

–Cruz credo. –disse, fazendo o sinal da cruz. – Ela foi culpada pela morte do filhinho dela e do marido, e matou outras pessoas.

Foi desolador para Ângelo. Ele voltou os olhos á senhorinha. O sorriso continuava nos lábios dela. Então ele notou que aos pés da anciã tinha um recipiente de madeira permeado de terra, um copo com água dividindo o espaço de uma cantoneira de madeira com uma vela acesa dentro de outro pequeno copo de vidro. Ângelo deduziu que ela passasse horas á fio ali, tomando ar fresco, e por não ter mais mobilidade normal, aqueles acessórios estaria á disposição dela.

A terra seria a coletora de cuspes da velhinha. O copo d’água era para poupá-la de pedir à empregada que a trouxesse água quando ela sentisse sede. A vela acesa não teria serventia alguma naquela hora da manhã, á menos que a velhinha fosse uma religiosa devota á algum santo. Mas, não havia nenhuma imagem de santo algum.

–Ás vezes o remorso toma conta da alma da maldita e a faz ficar gritando que ela não é a culpada. O padre nem realizou uma missa para o filho e o marido dela.

Atingiu Ângelo em cheio.

–Muito obrigado. Eu volto em outra hora.

O sorriso permanecia nos lábios da senhorinha.

A versão da vizinha sobre a tragédia não foi convincente, embora tivesse sido parcialmente contada por uma mocinha doméstica, séria e aparentemente ajuizada, na opinião dele.

Caminhando pelas ruas do bairro movimentado ele não tem pressa de encontrar a pensão. Queria sentir a aura religiosa manifestada em cada ponto daquela região de São Paulo, com uma ponta de esperança de que o filho de Fátima estivesse mesmo vivo, e, talvez fosse ele mesmo.

Na suntuosa catedral, o sino no cimo do templo badalava ao findar da tarde. Ele admirava a fé dos devotos que, mesmo apressados, faziam o sinal da cruz em seus corpos ao passarem em frente á catedral. Ângelo jamais entrou em uma igreja católica, tampouco esteve em um centro catequético, mas em respeito á supremacia do poder papal, a autoridade dos padres e a submissão dos católicos, ele sempre se mantinha neutro e de modo respeitoso diante de tudo que viesse á caracterizar catolicismo.

A igreja era opulenta, de aspecto antigo, arquitetura românica. Cabisbaixo e com a mochila nas costas ele a adentrou. O padre Ovídio havia acabado de realizar a cerimônia de batismo de uma menininha de pele alva e olhos tão azuis quanto á louça da pia batismal. Felizes, os pais da criança deixavam as dependências do batistério, acompanhados pelo padre que lhes recomendavam á observarem e exemplarmente incumbir á pequena á seguir os preceitos da santíssima igreja católica.

Para Ângelo era muito enigmático o poder imanente no interior de uma igreja. Era como que, ao entrar porta adentro, os fiéis fossem invadidos por sentimentos de culpas por todos os seus atos errados cometidos conscientemente, e até por aqueles que eles não tenham ideia de tê-los cometido.  Então, o rele mortal se sente acusados por simplesmente existir.

No extenso corredor, entre quatro fileiras de bancos enormes, Ângelo caminhava em direção ao altar, indo de encontro ao padre no momento em que ele se levantou após ter reverenciado a imagem do Cristo crucificado. Um serviçal menor de idade no alto de uma escada limpava os candelabros, com esmero e toda a paciência do mundo, em ritmo do cântico Ave-Maria em Poco-hall.

Pondo-se de pé sobre o piso em azulejo preto e branco, o padre voltou-se para o corredor e notou a presença de Ângelo sentado no banco mais próximo do altar.

–Veio receber as bênçãos de Maria e a proteção do menino Jesus, filho? –Ovídio perguntou dobrando cuidadosamente a estola.

–Eu não sigo os costumes católicos, padre.

–Maria e o menino Jesus são benevolentes para com todos os filhos de Deus.

–E sua santidade, também é benevolente com os fiéis da igreja romana, padre Ovídio?

O sacristão sentiu a ambientação augusta da igreja acusando-o por omissão. Franziu o cenho, mas o suavizou correndo a mão de dedos finos na testa.

–Nosso senhor nos ensinou á não fazermos acepção de pessoas. –afirmou, de mãos para trás e postura ereta.

–Se o senhor crer que Jesus Cristo ainda vive, deveria ter dito que ele ensina, e não que ele ensinou.

Ovídio conferiu a gola da batina e fez soar a garganta já enfeitada por estiras de pele devido à idade á beira dos setenta, como se á salivasse para então treplicar a fala pertinente de seu interlocutor.

–Pequenos erros de tempos nas palavras não nos tornam omissos ou negligentes com os nossos semelhantes. Eu devo dizer que tenho sido zeloso com todos eles, sim.

Era o que Ângelo queria ouvir.

–Quando foi que o senhor usou a estola preta em ritual adequado á situação da família de Fátima? Ela era católica praticante.

Ovídio incomodou-se, mas mantinha-se impávido.

–Não foi possível realizar os funerais nos domínio da igreja e em nenhuma outra repartição, devido às circunstâncias das mortes. O demônio os matou e os consumiram.

–Convenhamos, padre. –disse se levantando, pondo-se de frente á Ovídio. –Vocês são os religiosos mais céticos quanto á existência desse ser.

–Nossas crenças são fundamentadas nas sagradas escrituras. –disse colocando a estola no antebraço esquerdo.

–Foram quantos concílios até que se adequassem as escrituras ás suas crenças.

Padre Ovídio olhou para a pintura no teto que iludia os observadores á sentir que a abóbada se abria criando um caminho de acesso direto ao céu. Seus olhos pareciam querer encontrar entre as inúmeras imagens de anjos, um mensageiro celeste que pudesse dar-lhe o direcionamento para conversar com um garoto muito enfático no falar  com ares céticos.

–Você não sabe o que está dizendo. –disse ainda calmo. –Você veio á serviço de quem?

–Do meu mentor Cândido Plates Rivera.

A postura altiva do padre declinou-se de modo á fazê-lo se sentar do lado esquerdo de Ângelo, bem próximo dele. O ar superior de quem estaria pronto á esconjurar um herege, foi substituído por uma serenidade acolhedora, compreensiva. Afrouxou a gola da batina para então reiniciar á conversa.

–Á muitos anos, surgiu aqui em São Paulo um indivíduo afirmando que ele era um enviado de Deus para restaurar a religiosidade cristã, a qual em sua própria concepção havia sido deturpada pela influência do maligno.

–Eu conheço a lenda.  A profecia não passou de crendices tolas, pois na data profetizada nasceria um menino iluminado.

–Cândido Plates Rivera sempre foi considerado um iluminado por todos daqui de São Paulo. Augusto Rivera era filho dele.

-E o que se soube mais á respeito do tal profeta? –Ângelo perguntou.

-Alguns ainda achavam que ele teria morrido naturalmente como á todo ser humano e não tivera a dádiva da ressurreição. Outros mais confiantes afirmavam que ele ascendera ao céu como ele próprio teria garantido, e que a profecia de seu retorno á vida no dia, mês e ano predito por ele, se daria na data 06-06-1966, com toda certeza, assim como se deu o nascimento de Augusto na data profetizada por ele.

-Para Monsenhor, sem dúvida, Cândido era o primeiro iluminado, e, seguramente, Augusto Rivera o segundo e o filho de Fátima e Augusto seria o terceiro.

-Correto, filho. O profeta havia garantido aos seguidores dele, que na noite de 06–06–66 nasceriam crianças concebidas por virgens desposadas por um homem de origem superior. Nós acreditávamos piamente que se tratava de filhos do Augusto. As tragédias ocorridas com as mães e seus bebês aconteceram profeticamente no dia 06–06–66.

–Bobagens. Augusto era um pervertido. As datas foram mudadas com a comprovação de profecia enganosa. –disse Ângelo pondo a mochila em seu colo. –Seriam todas as crianças filhos ou filhas de Augusto Rivera com Fátima e com as amantes dele?

–Talvez fossem. Devido a tantas mortes ocorridas naquela noite, nós entendemos que as crianças pudessem ser filhos da maldição.

Ângelo meneou a cabeça indicando seu ceticismo em relação á heranças malditas. Á seu modo racional de encarar a vida ele acreditava que cada ser respondesse por seus atos, corretos ou incorretos.

–Mas, e quanto á família do tal Monsenhor, o que o senhor me diz?

Ovídio traçou o sinal da cruz em seu corpo.

–Monsenhor Olavo teria sido visto pela última vez, com três homens cavalgando em terras de Cândido Plates. Desde então, os três nunca mais foram vistos. Eu não posso afirmar nada.

–O senhor acha que foi o senhor Cândido que matou os três companheiros de Monsenhor Olavo?

-Não, não acho. Monsenhor Olavo era a pessoa mais vil que se pode imaginar. Quanto á ele, eu não tenho dúvida de sua crueldade. Os filhos eram como ele.

–Como uma espécie de mal hereditário...

–Os homens eram ou ainda são de origem pagã, profanos, cruéis, sagazes e capazes de se porem á serviço do maligno em tempo integral. Não foram batizados e nem sequer possuíam registros de nascimentos.

–O senhor pode me dizer algo sobre Dolores?

–Dolores, ela era de origem nobre, mas acreditamos que ela houvesse perdido o juízo depois que Cândido á trocou por Iolanda irmã dela.

–E alguém diz para onde Dolores e Iolanda se mudaram?

–Não. Tal como Cândido, que ninguém sabe de onde ele veio e nem para onde ele foi, assim aconteceu com Dolores e Iolanda. Eu me tornei padre no ano 1967. Desde então, rezo dia e noite pedindo á mãe santíssima que me conceda a graça de um dia poder ver todas aquelas mulheres e suas crianças, que foram dadas como mortas naquela noite do dia 06/06/1966. Acreditando ou não, a profecia se cumpriu.

–O senhor acha que elas não morreram?

–Nenhum corpo de pessoas adultas foi encontrado. Soube-se, que recém-nascidos teriam morrido ao nascer. Os maridos das mulheres, e também Augusto morreram naquela mesma noite. Infelizmente não houve velório e nem missa em favor de suas almas. Os membros da igreja pentecostal Templo da misericórdia, também não realizaram culto em solidariedade á Norato que foi vítima daquela trágica sorte. Como você, muitos não crêem que o demônio ás tenha levado. Mas, fé em Deus e medo do diabo andam lado á lado e não restringe seguidores de uma ou de outro segmento religioso.

Ângelo se levantou e fez um gesto de gratidão ao padre Ovídio por tudo que ele se dispôs á lhe revelar. Jogando a mochila ás costas ele tomou caminho de volta para fora da igreja seguindo pelo corredor entre duas fileiras de bancos do lado esquerdo, no corredor central.

–Voltaremos á nos ver em breve, filho?

–Trarei boas novas padre. Tenha fé. –seguindo em frente. respondeu sem se virar para o homem do ofício divino.

Na contra esquina da avenida ele encontrou uma pensão e combinou as diárias. Fez questão de assinar o formulário com o nome Ângelo Ráusen Rivera. Não deixou em aberto a conta, pois queria apenas tomar um banho. Era tudo muito modesto o quarto acrescido com banheiro, uma minúscula cozinha. Uma cama de solteiro, um criadinho com abajur e uma pequena cômoda. O piso encerado com cera vermelha trouxe-lhe uma recordação apresentando á ele um motivo á mais para prosseguir em busca da verdade escondida atrás de tanto mistério sobre a maldição de Fátima, as mortes de Augusto e de tantas mais pessoas em uma só noite trágica. Numa noite fria de inverno, Ângelo escutava atentamente os conselhos de Cândido advertindo-o por tê-lo flagrado lendo um manuscrito intitulado: Os quatro elementos e suas aplicações. – Aplique-se ao dever de aprender tudo ao seu tempo. -disse o velho tomando o manuscrito das mãos do menino de ouro. Cândido o advertiu dando á ele a tarefa de encerar o piso naquela noite. Ângelo iniciou por lavar a casa. Cândido o interceptou entregando á ele uma vassoura de cerdas macias. “se desejas descobrir as sujeiras mais ocultas, comece eliminando a poeira” “mas seu Cândido, se eu lavar vai ficar tudo limpo” “eliminando a poeira saberás se há necessidade de lavar e encerar o piso” Ângelo varreu toda a casa e notou marcas de encardimentos que não eram facilmente visíveis. “seu Cândido, eu sabia que eu teria de lavar o piso” – disse com ar de quem só havia perdido tempo e trabalho. “assim fazem os preguiçosos desatentos. Somente agora você percebeu que para remover certas sujeiras é preciso que use sabão. Ao contrário, a cera apenas encobrirá o encardimento.”

Depois do banho, Ângelo se sentou na cama, sacou da mochila o exemplar do manuscrito e se pôs novamente á ler o manuscrito, com a certeza de que ele encontraria mais uma pista para conseguir elucidar aquele mistério. Calculou que todo o tempo o senhor Cândido quis que ele encarasse aquele escrito, como sendo uma espécie de seu orientador para que ele trilhasse o caminho que o lavaria á origem de sua existência.

As profecias sobre os iluminados que nasceriam em tempos diferentes não o convencia nem um pouquinho só. Mas, ele teria que espargir as cinzas para encontrar ao menos uma fagulha ainda fumegando.

Com atenção redobrada ele pôs-se á ler outra vez sobre a tal profecia e encontrou um trecho relatando que, sete dias após o nascimento do menino que nascera no dia 06-06-1946, acontecia uma festa comemorativa ao nascimento dele, realizada no salão paroquial da igreja, com a permissão e boa vontade do padre, das comadres e compadres do casal de pais. Entre as centenas de comparescentes, o pai não estava presente no momento em que o sino da igreja badalou anunciando seis horas da tarde. Mas, um profeta surgiu de braços abertos, cajado na mão, diante da cruz de madeira no terreiro da paróquia e, triunfante, sendo assistido por muita gente, muito mais crente que em dúvida com as suas previsões, ele profetizou que o recém-nascido segundo iluminado daria continuidade á linhagem de descendentes iluminados. E que ele, o próprio profeta, morreria, mas ressuscitaria décadas depois para contemplar a face da última criança iluminada que nasceria na noite do dia 06/06/1966.

“O pai do menino não está em casa, e eis que surge um profeta” - exclamou em baixa voz a si mesmo. Chegou a conclusão de que teria que ir á casa da maldita.

*

Era tempo de remover a poeira que o impedia de enxergar aquilo que ao seu olhar natural estaria encoberto por uma camada espessa de mistérios e segredos. Centralizaria todo o seu esforço para desvendar o motivo da mortandade na casa da maldita que não seria a única á ter perdido de forma trágica seu marido e filho, e não seria a única á ser castigada pela dor de ter perdido uma filha adulta, uma irmã, uma mãe, talvez. Ele tinha que falar com a mulher que vivia solitária naquele casarão, entre os escombros de uma vida arruinada.

Ângelo avançou os braços por entre as grandes do portão e bateu palmas seguidas de oh de casa, tem alguém aí, e recuou para o meio da calçada.

–Pois não, rapaz. Quem é você, e o que quer?– disse a mulher que acabara de abrir a porta, vestida num vestido curto e preto, cabelos repicados e claros.

Surpreso, Ângelo á encarou e sentiu uma aura obscura á envolvê-la.

–Eu venho de Goiânia á procura dos moradores desta casa.

–Quem mora aqui sou eu. –disse aproximando do portão.

Ele notou o rosto sem rugas e sem marcas de expressão que pudessem denotar que ela fosse alguém que fora castigada com a labuta da vida. Loira, corpo em forma, rosto esteticamente digno de nota. Embora ela estivesse usando maquiagem em tons fortes, havia algo estranho no olhar dela. Para Ângelo, era como se ela tivesse acabado de despertar de uma noite mal dormida.

–Se eu puder entrar eu esclareço á você o motivo de eu estar aqui.

–Não. Eu não conheço você. E, por favor, vá embora.

Ele a observou dando ás costa á ele, voltando para dentro da casa.

–Eu voltarei logo mais á noite para marcarmos um programa. –disse ele em alto e bom tom.

Fátima, estupefata virou-se para ele.

–Olha, se você quer fazer sexo comigo não precisa se esforçar tanto.

Ele notou que ela não estava disposta á conversas.

–Basta apenas que eu chame um taxi para nos deixar num motel, pra gente beber, fumar e passar a noite inteira fazendo sexo. Na manhã seguinte eu vou–me embora te deixando na ressaca e com a frustrante sensação de mais uma vez ter sido usada como objeto de prazer por um estranho que lhe pagou uma cerveja e te chamou de gostosa. E na solidão da sua casa você vai para o chuveiro e se esfrega com bucha e sabonete tentando se livrar do cheiro de tabaco, álcool e suor masculino que ficara impregnado em seus poros depois de uma noite de sexo tórrido, porém, sem prazer para você e nenhum sentimento de amor um pelo outro.

Ela viu-se sobremaneira desnudada, mas ao mesmo tempo, deslumbrada por efeito da resolução acertada de um garoto, em relação á suas sessões de sexo mal pagas com qualquer um que a procurasse para a promiscuidade á qualquer hora do dia ou da noite.

–Se não é isso que você quer de mim, então me diga, o que um garoto como você quer com uma mulher como eu.

Sentindo que ele precisava empregar um ar sombrio na conversa para poder ter a atenção dela, ele aproveitaria o ensejo.

–Eu pretendo penetrar em seu mundo, fazer parte da sua vida e então descobrir porque razão você deixou-se ser vencida e se rendeu á esse modo de vida tão leviano.

–Não, não queira fazer parte do meu mundo. Olha – disse ela, unindo as mãos. –Você é muito novo ainda e não vai entender o que eu tenho pra falar sobre mim e as pessoas que moravam e freqüentavam essa casa amaldiçoada. Vá embora.

–Eu preciso saber de tudo relacionado á essa casa e da pessoas que aqui vivem e das que já viveram.

–Já que você insiste, empurre o portão e entre.

O portão já não mais destrancava por controle.

A mulher seguiu andando na frente, tendo o visitante á acompanhá-la, um pouco atrás dela. No percurso até a porta de entrada, Ângelo percorreu o olhar em todas as direções no perímetro externo da propriedade. As plantas pareciam terem sido regadas somente com a água da chuva do inverno passado, – e era começo de outono. O gramado transformou-se numa forragem de pasto para gado. O granito da passarela de acesso á varanda já não exibia mais o mesmo brilho, e sim uma opacidade que, mesmo sendo exageradamente densa, não conseguia camuflar o encardimento.

Parada na porta, ela o observava analisando o local.

–Consegue sentir uma sensação de maldição nesse lugar?

–Não. Acho apenas que a casa precisa de uma boa reforma e o jardim, de um janeiro. –disse ele, meio que rindo.

Ela soltou um sorriso comedido e continuou andando em direção á varanda.

Chegando á porta ela quis dissuadi-lo de entrar, alertando-o de que talvez ele fosse acometido por um mal-estar por razão de a casa ter sido o local da grande tragédia familiar no dia 06/06/1966. Ângelo demonstrou equilíbrio emocional fazendo com que ela deduzisse que ele fosse cético ou, no mínimo, insensível á fatalidade ocorrida com as pessoas que ali viviam e estiveram.

Ao passar pela porta, após a mulher, no living de jantar, Ângelo fitou a mesa posta para refeição, o grande lustre candelabro á cima da mesa, a cristaleira e o armário encostados á parede, com teias de aranhas e muito pó de poeira do tempo por toda parte. Ele fechou os olhos, inclinou a cabeça para baixo, e então perguntou:

–O que houve com as seis pessoas que deveriam estar á mesa naquela noite?

Um torpor súbito tomou conta da mulher ao ser indagada, á ponto de fazê-la escorar-se á parede para não vir á cair.

–Seis pessoas – disse ela, demonstrando assombro total.

–Tudo bem com você. –ele quis saber segurando no ombro dela.

–Quem é você? Como soube que outras pessoas viriam para o jantar? Como soube que...

–Que tudo aconteceu em uma noite. – ele antecipou. –Os talheres são apenas colheres, a concha funda e a sopeira indicam que a refeição era noturna. Á menos que, seis pessoas em uma casa concordassem em comer sopa na hora do almoço, esta mesa foi posta para a refeição noturna.

–Quem, quem é você?

–Uma pessoa comum, Fátima Nunes...

–Não! –ela exclamou, deslizando suas costas á parede até se sentar no piso.

Ângelo também se sentou do lado direito dela.

–Você disse o meu nome e sobrenome.

–Eu sei que você pode estar pensando que eu sou um bruxo com o poder da adivinhação, mas na verdade eu sou apenas um observador. Não se perturbe mais do que você já foi perturbada durante todos esses anos.

–Então me diga, como...

Ele á interrompeu colando o rosto dele ao dela.

–Olhe para a mesa. Seis pratos de porcelana. Seis colheres de prata e seis lencinhos. Eu gosto de sopa de legumes, mas não fui convidado para esse banquete dos nobres.

A maçã do lado esquerdo do rosto dela se contrai.

–Está rindo, não está? Assim é melhor.

De rostos unidos, os dois contemplavam a mesa e todos os objetos que seriam usados na refeição daquela noite fatídica.

Fátima se sentia bem acompanhada, como á muitos anos não se sentia. Sua mão é envolvida pela mão de Ângelo que, com delicadeza entrelaça seus dedos aos dela.

–Como você soube o meu nome e sobrenome? –perguntou com suavidade.

–Você não mudou muito desde a sua viuvez. Na cristaleira tem a sua imagem desenhada e o seu nome e sobrenome escrito em uma garrafa de azeite. Eu achei bem criativo e de muito bom gosto.

Ela olhou para a garrafa de azeite na cristaleira... e parecia perdida nas lembranças. A garrafa fora confeccionada sobre encomenda por Augusto que a presenteou em um dia qualquer do ano 1965, sem data comemorativa. Ela não passava um mês sem ganhar presentes dele.

–Ele te amava, Fátima? Fazia parte da agradabilidade dele para com você?    Era a perguntas que ela não podia respondê-las. Ela arriscaria uma resposta depois de tentar recordar da amabilidade do finado esposo.

–Sim. Nós nos amávamos. O Augusto era tudo para mim. – ela disse, mas, não estava segura de si.

Ângelo correu a mão nos cabelos dela, jogando um molho volumoso para o lado esquerdo da cabeça dele.

–Eu vejo que você é uma mulher que está a pouco tempo andando pelos bares da vida.

–Por que você diz isso?

–Seu cabelo está com o mesmo corte feito recentemente. Apesar da maquiagem, seu rosto ainda contém suavidade e boa textura. Não vejo flacidez na pele dos seus braços, nem varizes nas suas pernas, e, com certeza não há estrias em sua barriga.

Ela pressionou um pouco mais a mão dele. Estava feliz por não ter sido desqualificada e chamada de vagabunda como ela era tratada por seus clientes.

–Estou apenas á pouco mais de um mês no mundo da prostituição.

–Como foi que o Augusto morreu?

–Em um acidente de carro. Numa noite de sexta feira ele voltava do trabalho com os operários da construtora onde ele era engenheiro. Ele sempre voltava cedo pra casa. Mas eles passaram num bar para beber.

–Com certeza ele não era muito chegado á bebida.

–Não. –disse ela num tom um pouco mais intenso. –Quando ele bebia era apenas uma cerveja com os amigos dele...

–Você disse os amigos dele? –perguntou sem demonstrar muito espanto ou surpresa.

–Sim, ele tinha muitos amigos. Ele era muito sociável.

–E, eles estavam no carro no momento do acidente?

–Não sei e não me lembro.

–E como foi o acidente, Fátima?

–Augusto havia dirigido apenas uns 200 metros de distância do bar. Depois de fazer a rotatória da avenida, ele acelerou na reta e bateu em uma árvore na calçada.

–Mas você falou que ele não demorou no bar, sendo assim, ele não estava embriagado.

–O resultado da autópsia revelou que ele havia ingerido uma substância alucinógena misturada á cerveja. Apesar de a quantidade de álcool encontrada no organismo dele ter sido irrelevante, a droga que ele tomou se potencializou mesmo com o baixo índice de álcool.

–Tudo bem. Não precisa continuar. Eu não sou policial investigador. Você não teve culpa, apenas foi enganada. –condoeu-se dela passando a mão em seus cabelos.

–Eu não acredito mais numa vida feliz com um homem, por isso eu me entrego ao primeiro que me pague uma cerveja e uma carteira de cigarros.

–Você vale muito mais do que isso.

Fátima não disse nada.

Abraçados, não houve beijos. Apenas ternura e sentimento de amizade que começou na sala de jantar de uma casa marcada por uma tragédia em família, onde Ângelo entrou pela primeira vez e encontrou Fátima que fazia daquele lugar o seu ponto de encontro com qualquer tipo de homem para ter com ele uma noite de sexo promiscuo em qualquer lugar, sem prazer, sem carinho, sem beijos ou abraços. Era dessa forma que ela procurava preencher o vazio se sua vida vazia, sem amor, sem afeto, sem carícias. Transar por transar... Nada mais que isso.

–Sempre haverá uma saída Fátima. –disse ele com brandura.

–È, há sempre uma luz no fim do túnel. –disse ela virando-se para ele.

–Siga essa luz e deixe que ela ilumine a sua vida. –disse, afagando o rosto dela.

–Você tem namorada, não tem?

–Não. Eu vou pensar nisso em outra hora.

–Quando encontrar uma, faça ela feliz como você me fez essa noite. Obrigada Ângelo.

–Você me promete mudar de vida a partir de agora?

–Sim. Você foi um anjo.

–Quantos anos você têm?

–Quase trinta e 38.

–Parece ter menos que isso. Você é muito bonita.

Ela não disse nada, apenas fechou os olhos e apertou a mão dele em seu seio, sentindo-se grata por tudo.

–Esse foi o meu melhor programa. –confessou dando um beijo no rosto dele e outro abraço carinhoso.

***

Saindo da casa, um carro de polícia o abordou. Ele não percebeu que os policiais o havia mandado parar. Continuou andando, e só parou quando o policial deu segunda ordem e o mandou entrar na viatura. Ele não questionou e nem ao menos perguntou por que ele estava sendo levado pelos homens da lei.

Minutos depois ele já estava frente á frente com o delegado de polícia do Braz.

–Você queria roubar algum objeto daquela casa?

–Não senhor, senhor delegado. Eu sou de Goiânia, e só fui lá para...

–Invadir e furtar patrimônio alheio. Você tem noção do que significa isso, rapaz?

–Sim senhor. Mas aquela mulher estava ensandecida gritando que queria...

–Não me venha com essa conversa, garoto. –bradou pegando as algemas em cima da mesa e colocando na gaveta.

–Senhor delegado. –disse Ângelo olhando para as mãos cruzadas do homem autoritário sobre a mesa. –Eu só fui...

–Em local proibido. Você deve saber o que significa desobedecer a uma ordem de proibição e por ser suspeito de se relacionar com uma culpada por algo muito pior? -o delegado não deixava Ângelo concluir sua fala, sempre interrompendo ele num tom áspero de voz e frieza no olhar.

O muito pior o intrigou, mas ele não queria fazer perguntas extras.

–Eu sei o que significa senhor delegado, mas também sei por que eu fiz a isso, porque eu também espero encontrar o que eu...

–Então você deveria estar lá, naquela noite.

Ângelo não teria tempo para pensar, pois o delegado não o deixa fazê-lo, e ele sabia que se ele fosse discutir sobre leis proibitivas com uma autoridade como o delegado, ele acabaria dentro de uma cela da delegacia.

–Delegado. –disse ele. –Eu vejo que o senhor é um homem casado e com certeza tem filhos.

–O que isso tem á ver com a minha esposa e minha filha, moleque?

–A primeira pergunta o senhor já me respondeu. O senhor e a sua família gostam de peixe? –quis saber, tentando sua ultima cortada.

–Olha rapaz, é melhor você ir embora antes que eu mande te prender por perturbar e abusar á uma autoridade.

–Eu entendo que perturbar a autoridade ou qualquer pessoa que seja não é algo legitimo de se fazer senhor. –disse Ângelo dando pausa. Não sendo ele interrompido, continuaria com seu raciocínio. –Mas eu entendo também que se eu não ofendo direto ou indiretamente o senhor ou qualquer membro de sua família, então eu me vejo no direito de expor o que penso.

O delegado estava em pé, mas resolveu se sentar e jogar os cabelos lisos para o alto da cabeça. Apesar de ser um homem de estopim curto, Valdir tinha a aparência jovial na casa dos quarenta e alguns anos. Fora empossado delegado por vias de circunstância. Ele não possuía graduação de carreira militar. De um raso pracinha, tornou-se substituto do seu antecessor que deu baixa em sua carreira militar justamente dois dias após a tragédia na casa de Fátima.

–Vamos rapaz. Diz logo o que você pensa. -Valdir amenizou a expressão de contrariedade e deu lugar á uma postura mais receptiva. Se sentando e devolvendo as algemas á gaveta, ele deu liberdade para que Ângelo expusesse suas ideias.

–Seu delegado, eu não vou mais lhe importunar com minhas perguntas, mas eu quero dizer ao senhor que, enquanto muitos comem peixe por opção aos domingos ou em qualquer dia da semana, talvez por gostarem mesmo dessa especiaria, ou por ter condições de comprá-los quando e onde quiserem, aquela coitada só queria comer um peixe, mas não tinha dinheiro para comprá-lo.

–Quem te garante isso? –inquiriu um pouco mais brando.

–Eu, senhor delegado. Como eu já falei, eu já pesquei no bosque dos buritis em Goiânia com a única intenção de não ter que chegar á minha casa e ter que comer arroz com cebola frita pra servir de mistura ou com extrato de tomate para dar uma cor diferente e um sabor melhor.

O delegado escutava de cabeça baixa, sem conseguir olhar para ele.

–Falemos sobre Fátima. Sente-se. –apontou-lhe a cadeira.

Ângelo o obedeceu.

–Eu sou de Goiânia.

–Diga-me em o que eu posso te ajudar.

–Tudo bem. É sabido por todos daqui do Braz, que aquela mulher que vive naquela casa, foi e continua sendo considerada culpada por uma tragédia acontecida em 1966.

–Você é muito novo para bancar o detetive. –observou e bebeu o café.

Ao fazê-lo, Ângelo percebeu que ele tinha toda liberdade para contar o que ele sabia.

O soldado trouxe mais dois cafés frescos. O delegado acenou com a caneca para que Ângelo bebesse o dele.

–Cabo Gerson, vá procurar á quem prender.

–Sim senhor, delegado. –foi-se, levando a caneca já vazia.

–Esteja á vontade Ângelo. E me chame de Valdir.

–Obrigado. Em 66 uma mulher perdeu o marido num acidente de carro e, ela é suspeita de ter matado ele e mais algumas mulheres e seus bebês.

–A maldita. – disse o delegado. O meu pai era agente de policia civil na época, e investigou aqueles crimes. Aquela mulher foi considerada louca, pelo psiquiatra de então. Ela dizia que estava em trabalho de parto em sua casa com mais mulheres grávidas envolvidas naquela situação.

–Ela, o marido dela e mais quatro pessoas comeriam a refeição noturna na casa dela naquela noite.

–Pura paranóia. Três homens vinham com o Augusto na hora do acidente. Outras mulheres que morreram já estavam na casa. Mais uma mulher que não se soube se existiu, também esteve lá. Fátima quis convencer á todos com suas maluquices. Mas, ela se safou por ter sido considerada doida de pedra.

–Ela me disse que os amigos do Augusto não estavam com ele no carro.

–No depoimento dela, duas pessoas estiveram na casa na hora dos partos. Ao psiquiatra, alguém foi jogado pela janela do segundo andar.

–Não poderia desarquivar os casos...

–Só com mandado do juiz, e se a promotoria requerer o procedimento. Nem o nome dela era mencionado nos inquéritos e depoimentos.

Ângelo pensou por um momento e percebeu que a conversa dos dois só estava fazendo com que ele soubesse como seria difícil conseguir uma revisão nos casos que já teriam sido criminalmente solucionados sem ao menos serem investigados.

–Uma mulher que fora culpada por mortes estranhas e não teve nem seu nome revelado! Muito misterioso tudo isso.

–Mas foi o que ocorreu.

–Então deve dar como caso encerrado?

–E arquivado. São 17 anos.  –o delegado emendou.

–E esse mistério ainda lhe tira a paz, delegado Valdir. –disse Ângelo com toda certeza de que ele estava coberto de razão.

Valdir balançou a cabeça em sinal de concordância, mas se levantou porque Ângelo já estava de pé.

–Tens lido os evangelhos?

–Parei de ler. –respondeu descrente.

–Eu sei que você é um rapaz honrado e não deixará que esse caso termine assim. Compre uma casa. Volte á estudar. Será uma honra ter você em minha jurisdição. E saiba que o velho mestre escondeu o baú, e muitos estão á procura dele até hoje.

Ângelo consentiu com um gesto indicando que ele havia entendido as sugestões feitas pelo delegado.

Estabelecer–se naquela cidade e vasculhar os escombros de um passado nebuloso, seria sua missão.

–Eu agradeço pela sua disposição em me ajudar.

–Eu vou rever os arquivos sobre o caso. Mas comunicarei somente á você. Em terreno minado... –disse o delegado. –começou.

Ângelo o encarou antes de emendar a frase.

–O caminhante deve sobrevoar sobre ele.

Eles deram as mãos num cumprimento de despedida.

Lá fora, ele reencontrou Fátima que o esperava na esquina.



*


Ele decidiu que levaria a amiga paulistana para morar com ele em uma casa maior que o quarto da pensão localizada em frente ao velho sobrado. A negociação com o proprietário da casa não demorou mais de quinze minutos de conversa ao telefone. O desfecho do negócio ficaria á cargo da imobiliária local, no entanto, o novo dono já podia desfrutar do direito de se mudar para a residência adquirida.

O vendedor desfez da cassa simples: três quartos, sala, cozinha e dois banheiros, por uma bagatela em dinheiro á ser depositado em conta corrente. O homem disse á ele, que ele, a esposa e uma filha viveram naquela casa durante vinte anos. E que mudou de endereço em 1966, menos de um mês após as mortes no casarão. Sua mulher sempre dizia que ela e sua filha não morariam mais naquela rua tendo como vizinha a viúva negra. Naquele mesmo ano o homem conseguia a aposentadoria e comprou um sítio em Sorocaba. A antiga casa estava á venda desde então.

Fátima se estatizou sentindo o coração se abrir feito uma rosa á desabrochar. Seus olhos reluziram como as estrelas no céu. Ela já estava amando Ângelo de um jeito único e exclusivamente dela. Talvez incompreendido para quem não saiba que existem muitas formas de amar. E, a de Fátima era assim: inocente, puro e sem amarras para prender aquele que ela o amasse. Amor igual ela dedicou á Augusto por todo o tempo que eles viveram juntos.

–Vamos. –disse ele pegando no ombro dela. Se você tivesse entrado comigo na delegacia vestida desse jeito o delegado te chamaria em namoro. Ou, te convidaria para ser a estilista da mulher dele.

Fátima deu uma paradinha para ver no vidro do carro parado, como ela estava bonita com uma calça Hollywood vermelha e uma jaqueta preta sobrepondo à camisa branca.

–Você acha que eu estou bonita mesmo?  –ela perguntou ajeitando os cabelos longos e repicados.

–Desde o dia em que você nasceu até o seu último respirar nessa vida, você será sempre linda. –falou abraçando ela. –Agora, vamos embora. –tomou-a nos braços e saiu carregando-a e girando com ela pela calçada da avenida.

–Não me deixe cair. Eu já estou ficando tonta.

–Que tal a gente ir comer alguma coisa naquela panificadora? –perguntou á ela depois de pô-la de pés no calçamento.

–Ângelo.–disse ela, manhosa. –Você me ama?

–Eu amo você Fátima, acredite. –foi sincero, ele a amava de um modo muito especial.

–Vamos, meu príncipe. –disse ela atracando-se á cintura dele.

Debaixo da marquise da panificadora Ângelo parou e segurou nos ombros dela para informar o que ele obteve do delegado á poucos instantes.

–Fátima, eu terei que viver a minha vida sem a esperança de encontrar os meus pais, ou quem foram os responsáveis por tirá-los de mim.

–Tudo bem. Eu só quero que você viva a sua vida em paz. Não se preocupe e nem sofra tanto. Eu me sinto redimida por ter te encontrado e não quero ver você sofrendo também.

–Você é um amor Fátima. Prometa que você vai esquecer tudo que aconteceu, e seguirá uma nova vida ao meu lado.

–Sim, eu prometo que não vou te decepcionar.

Outro abraço terno dos dois.

Minutos depois os dois estavam no portão da casa da vizinha.

–Olá, a senhora pode me ouvir? –ele perguntou á velha, sentada na cadeira.

Ela não respondeu, mas um novo sorriso se formou nos lábios dela. A vela está acesa sobre á cantoneira, o recipiente com terra e o ventilador também estão lá. O copo com água já não mais está. A senhorinha trazia um novelo de linha branca para tricô. No rosto dela continuava aquele sorriso que parecia mostrar á Ângelo, que ele estaria sendo bem–vindo á vizinhança da rua onde o mistério de Fátima á transformou na rua da casa amaldiçoada.

–Ângelo – disse Fátima ao ouvido dele. – Eu a conheci quando viemos morar aqui... eu e o Ângelo. Ela não era assim... Oi Alice! –disse Fátima á empregadinha que apareceu no alpendre da casa.

Antes de corresponder ao cumprimento a menina esquadrinhou o sinal da cruz em seu corpo.

–O que você quer? –perguntou entregando uma flanela á velhinha. –Será que você não...

–Eu quero te contratar para um trabalho. –disse Ângelo intervindo á ofensa dirigida á Fátima. –Eu comprei aquela casa ali – apontou. –E preciso de uma faxineira para dar uma organizada nela.

–Sou eu que zelo daquela casa uma vez por semana. As chaves estão comigo. Está até mobiliada, com colchões, mas sem lençóis. Você a comprou?

–Sim, eu a comprei e já fui informado de que as chaves estão com você.

–Tá... mas eu não recebo o pagamento das mãos dessa aí. Pega, dona Dasdores.

Ângelo notou que ao pegar a flanela, a senhorinha olhou seriamente para a empregada, e ao olhar para ele, novamente ela sorri.

–Então a arrume hoje para nós. Logo mais á noite a gente acerta tudo.

Depois de comerem alguma coisa, os dois foram para uma praça. Havia pessoas caminhando pelas ruas nas mediações, mas a praça era um espaço só deles. Bom local para uma brincadeira. Ele pensava assim. Ângelo notou que ela estava ansiosa para fumar e, se continuassem com a mesma conversa, logo ela sairia correndo para comprar mais cigarros. Tomou o maço de cigarros das mãos delas.

–Vamos fazer o seguinte, se você conseguir me tomá–los...

Antes de terminar de falar, Fátima avançou na carteira de cigarros, mas ele se esquivou.

–Vem. Tenta pegar. –disse jogando o maço pra cima. –Não pegou. Opa! –Jogou por cima da cabeça dela e pegou do outro lado.

–Ah é assim? Então espere. –disse ela tirando os saltos. –Agora eu consigo. –avançou tentando segurar o braço dele.

Sobre o gramado da praça os dois parecem duas crianças brincando de pega–pega. Ângelo lançava o maço para um lado e outro e, ela tentava pegar. De vez em quando eles riam, e ás vezes ela disfarçava para pegar ele despercebido, mas ele se safava e ela agarrava na cintura dele. Ângelo erguia os braços, Fátima tentava puxá-los para baixo, ele se livrava dela e saía correndo. Na brincadeira, foram parar na borda da fonte de água da praça.

–Ultima chance. –disse ele com os cigarros para o alto. –Se você não conseguir, o maço vai parar dentro...

–Não. Não faça issooo...

Ângelo caiu dentro d’água.

–Tá vendo? Você me fez me molhar todo. E os cigarros também.

–Ah que pena! Vem, eu te ajudo á sair. –ela deu a mão á ele.

Ele passou a camisa no rosto e deu a mão á ela, mas ela também caiu na agua.

–Ai seu maluco! Olhe o que você fez.

–Você fica mais bonita ainda, toda molhada. Existem loucuras maiores que podemos fazer sem nos destruir... Tomar banho ao ar livre é uma delas. –disse ele jogando mais água nela.

–Mas estamos em local proibido sabia?

–Ser infeliz também é proibido. Vem, vamos deitar na grama.

Os dois se deitaram sobre a grama. Fátima ficou olhando as estrelas, visivelmente feliz.

–Você me promete mudar de vida a partir de agora?

–Os cigarros que você jogou na fonte não vão me fazer falta e, o alcoólico que bebia foi o último. Você verá.

–Combinado. Eu vou levar você para conhecer a minha companheira de lar lá em Goiânia. Ela é evangélica. Daí, você aproveita e assiste um culto, quem sabe...

–Se aquela evangélica me visse molhada desse jeito, e, com você...

–Você diria á ela, que você se batizou. Vamos. –se levantou e deu a mão á ela.

-Carregue-me nos braços.

–Com todo prazer, patroa. –e a pegou nos braços.

–Ai, não me deixe cair. E, me diz uma coisa, você tem apenas dezessete anos de idade?

Semblante entristecido, olhar firmado na extensão da avenida, continuou carregando Fátima sem querer dar resposta á pergunta que ela fez. Seu nascimento, seu passado, sua origem, se resumia em apenas uma afirmação: tudo que sei é que eu existo.

–Ângelo... eu te fiz uma pergunta. Ponha-me no chão.

–Pronto, madame.

Fátima o abraçou pela cintura e fez com que ele a abraçasse por sobre os ombros dela.

–Eu não acredito que você tenha apenas dezessete anos.

–Digamos que eu tenha vinte, trinta, ou que seja cinqüenta anos, o que importa é que eu existo nesse mundão de Deus.

–E está ocupando um espaço aqui. –disse ela apontando para o coração dela. –Estou cansada. Carregue-me mais um pouco até á minha casa. –pulou nos braços dele. –Eu também não conheci a minha mãe.

–Deixemos nossas infelicidades de lado. Eu prometo ser seu amigo para todo o sempre.

–Será bom ter você como amigo.

–Me fale sobre como é difícil para você, viver longe de sua mãe.

Foi a vez de Fátima calar-se por não ter nenhuma lembrança de seus pais.

–Vem minha gata arrasa quarteirões, doçura e tudo de bom que se possa qualificar. -e a tomou nos braços.

Os dois foram ao mercado fazer compra de alimentos, roupas novas, pares de calçados para a viúva sofredora, e roupas de cama, mesa e banho, e passaram na casa da vizinha arrumadeira para pagar pelo trabalho dela e pegar as chaves da casa.

–O seu Bráulio e a família dele não quiseram  levar nada dessa casa. A maldita freqüentava aí, e por isso a dona Gertrudes comprou tudo novo. –foi o que a diarista disse á ele entregando–lhe a chave.

–Obrigado moça. Antes que eu me esqueça, eu precisarei sempre dos seus préstimos.

–Tá bom. A dona Dasdores mandou que eu deixasse o lampião com você, até que você mande instalar energia elétrica novamente.

–Diz á ela que eu á agradeço muito.

–Tá bom. Ah, ela resolveu falar hoje, e disse que você é muito bonito.

–Fico feliz com o elogio e com a notícia de que ela conseguiu conversar.

–Você está namorando ela? Nossa... você tem muita coragem!

Ângelo não deu resposta porque ele olhava um carro parado entre dois postes de luz na rua. Os faróis estavam acesos.

Fátima o esperava, escorada ao muro de meia parede e grades de ferro com pontas tipo flechas. Enquanto isso, ela conferia os presentes e admitia a si mesma que ela estaria vivendo um sonho, pois, algumas vezes, após as mortes na casa dela, ela vasculhou o guarda–roupa e o closet procurando algum objeto de uso pessoal dela, ou um bilhetinho de dedicatória revelando que pudesse ter sido dado á ela pelo Augusto. Nada, nem mesmo uma tiara de cabelos.

–Desculpe–me, eu preciso entrar. –disse Ângelo á mocinha.

–Tá bom. Tchau... Ah, pegue a caixa de fósforos. –entregou á ele.

–Obrigado mais uma vez.

–Tá bom. –e foi-se.

Fátima abraçou-o pela cintura e só o soltou para que ele destrancasse o portão. Ela estava encantada e muito feliz.

Em sua nova moradia Ângelo encontrou  a mobília deixada em perfeito estado de conservação. No sofá marrom da sala iluminada pelo lampião, ele cantava uma canção que expressava o sentimento que estava preso em seu peito. Fátima conhecia a canção e o acompanhava com sua voz meio soprano.

–O que importa é ouvir a voz que vem do coração. Pois, seja o que vier. Venha o que vier eh, eh, eh. Qualquer dia amigo eu volto á te encontrar. Qualquer dia amigo a gente vai se encontrar.

Ângelo prometeu não chorar, pois, seu amigo e sogro de Fátima, um dia lhe ensinou a ser forte. Mas, como não chorar, sendo que talvez ele visse seu velho e mais que querido amigo partindo para nunca mais voltar?

Ele chorou em silêncio um pranto sincero.

–Ângelo, eu quero conhecê-lo. –Fátima pediu, em soluços.

–Você o conhecerá no momento certo.

Ele ia se levantar para ir ao quarto levando os lençóis e cobertores, quando a porta de entrada emitiu um ruído prolongado e cadenciado. Aos poucos foi se abrindo. Ele fez sinal para que Fátima fosse para outro cômodo. Ela se apavorou e foi parar nos braços dele.

–O que está acontecendo? –ela perguntou com visível pavor na expressão da fala. –Será um espírito mau?

–Espíritos maus não abrem portas quando querem entrar. –disse ele, em intensidade pianíssimo e fazendo sinal com o dedo indicador colado aos lábios.

Fátima calou-se, mas suas mãos estavam geladas como se houvesse estado dentro de um congelador.

O ranger das dobradiças não se ouve mais. A luz do lampião criava ribalta no centro da sala onde os dois estavam, e penumbra no local da porta. Ângelo permanecia estático e emocionalmente frio, acompanhando o movimento moroso da porta. A abertura se fez maior e uma sombra foi projetada na parede lateral. Ele avançou rumo á porta pisando estrondosamente, mas as unhas de Fátima cravaram no braço direito dele, impedindo sua investida.

Então a porta se fechou abruptamente.

–Você é uma estraga prazeres. – Ângelo virou-se para Fátima para dizer. E voltou á se sentar no sofá com as mãos cruzadas na nuca.

–Eu, eu estou com medo... eu senti o cheiro. -ela estava em choque.

Ângelo á abraçou de lado e acarinhava o seu rosto pálido.

–Que perfume você sentiu, Fátima?

–A fragrância era de bergamota, mas eu não me lembro mais do nome daquele perfume, e nem de quem o usava. Aquilo era uma assombração, Ângelo.

–Assombrações não usam Sweet honesty.

–Você também sentiu o cheiro? –perguntou, olhando nos olhos dele e sentindo que ela não estaria alucinando.

–Senti. Mas, eu prefiro esse seu cheiro femininamente de mulher linda que você é. –galanteou cheirando o pescoço dela.

–Então me abraça mais forte. Eu tô com medo.

–O que foi, Fátima? –Ângelo perguntou vendo-a esfregando os braços, muito assustada ainda.

Ela estava transtornada, sem poder assimilar bem o que ocorrera em 1965 e á minutos atrás. Mas tinha certeza que o cheiro amadeirado era o da mesma fragrância que Augusto e a empregada usavam, e, ela o fez parar de usar devido aos enjoos que ela sentia.

–Ângelo, me abrace e não me abandone nunca mais. –pediu chorosa.

Ele á acolheu em seus braços, com carinho. “meu amiguinho, através das sombras se chega ás cabeças que ás guiam, e aos corpos que se movimentam” – recordou abraçado á ela.

O cheiro do perfume trouxe á Fátima recordações á muito tempo adormecidas. E então, todos os seus sentidos estavam lá: no quarto do casarão em uma noite de outubro de 1965. Ela escovava seus cabelos longos, sentada na banqueta da penteadeira. Não ia sair, pretendia estar bonita para a chegada de todos os convidados que chegaria ás dezenove horas para a ceia naquela noite. Naquela hora, a empregada entrou no quarto.

Através do espelho Fátima via a empregada ás suas costas, com o semblante melancólico, deslizando as mãos desde á raiz ás pontas do cabelo dela.

“Seus cabelos estão caindo. Será melhor, cortá-los curto”

Fátima recusou á sugestão alegando que ela não suportava o cheiro que emanava de um salão de beleza. A gravidez á deixou enjoada.

A mulher cortou o cabelo dela, num corte ideal para homens, não fosse a franja loira caindo na testa dela.

“Ficou linda”– disse, com o rosto colado ao de Fátima.

Intimamente Fátima desaprovou o novo modelo, mas agradeceu á mulher por tê-la poupado da nauseante permanência dentro de um salão de cabeleireira. O perfume que ela usava, ficou impregnado nas narinas de Fátima, causando nela embrulhamento de estômago. E, naquela mesma noite de festa, ela adormeceu até acordar na manhã seguinte.



                                                                               *



Foram frias as primeiras horas da manhã na sempre embaçada cidade São Paulo. Ângelo tirou o dia para levar Fátima á um médico. Temerosa ela passou por uma consulta médica. No ponto de vista clínico ela estava com saúde perfeita, mas o doutor achou por bem, que ela fosse submetida á uma bateria de exames laboratoriais. Para Ângelo e ela o médico adiantou que ela pudesse ficar tranqüila em relação á saúde dela e que os exames seriam para confirmação de que ele, o médico, estaria seguro de que ela tinha saúde de ferro. Para Ângelo em particular, o médico confidenciou que a loira bonita possuía um tipo raro de quadro genético, e garantia que a doença dela era uma raridade, porém não era nada para se preocupar.

Como a dois namorados, os dois passearam abraçados pelo centro da maior cidade brasileira. Tomaram sorvetes e comeram pipocas dividindo com os pombos na Praça da Sé.  Ângelo, vestido em calça jeans e uma camisa social de manga curta num tom um pouco mais claro do que o da calça. Fátima preferiu uma vestir uma Pantalona preta e camisa em viscose bege, combinando com o tamanquinho de meio salto com correias apenas frontais, os dois perambularam pelas ruas.

A tarde foi chegando e o sol aparecendo timidamente entre as nuvens que se espargiam no céu. Os termômetros colocados em pontos estratégicos do centro da cidade anunciavam uma temperatura amena entre dezoito á vinte graus.

De volta á casa, debaixo do chuveiro Ângelo cantava uma música de seu repertório.

–O amor é um bichinho que rói, rói, rói. Rói o coração da gente, e dói, dói, dói...  Fátima, minha linda, eu acho que encontrei uma pessoa muito especial. –ele falou gritando.

–Deu pra perceber. Quem é essa felizarda? –quis saber gritando e procurando alguma coisa na sala.

–Não vou dizer, mas ela é linda. Um passarinho me disse que ela era muito cobiçada quando mais nova e continua sendo.

–Então caia fora. Esse é o tipo de garota problemática.

–O meu nome é solução.

–Vai sonhando...

-Estou falando de você, minha linda.

-Acredito. Nossa, como eu acredito!

–Vai atender á quem bate palmas no portão. Eu estou todo ensaboado.

–E eu procurando um treco aqui para devolver ao batedor de palmas.

–Eu não estou te ouvindo. Entrou água do chuveiro nos meus ouvidos.

–Você é muito espertinho. Achei. Tô indo.

Da porta da área, Fátima se surpreendeu com a presença do delegado Valdir. Ela levava alicate que fora deixado pelo eletricista que havia religado a energia e esqueceu a ferramenta em cima da caixa do medidor.

Ao ver o homem de 1.90 de altura, cabelos lisos e castanho médio, caídos sobre as orelhas, com parte frontal partindo–se ao meio dando um efeito escamas, olhos também castanhos, Fátima se sentiu despreparada para ir recebê-lo no portão. Estava vestida com uma saia de poliéster estampada de cores fortes e camiseta regata branca. Chinelos de correias nos pés. Cabelos amarrado num molho só e sem maquiagem. Valdir, apesar de ser uma autoridade policial, não vestia roupas militares naquele momento.  Camisa gola-polo amarela, calça caqui em sarja e Vulcabraz preto nos pés, descendo de sua moto CB 400 cc.

Fátima voltou para dentro da casa e se livrou da chave de fendas deixando–a sobre a mesinha de centro da sala. Soltou os cabelos e alisou a camisa na parte frontal de seu corpo, e só então foi atendê-lo.

–Olá, boa tarde. –disse ela á três metros do portão.

–Encontrei quem eu procurava. –Valdir falou apontando os indicadores na horizontal.

Fátima inflou o busto ao se sentir alvejada pelos dedos dele.

–Se eu der uma alfinetada no ombro dela, ela se murcha toda. –disse Ângelo que chegava por detrás dela.

Os ombros de Fátima caíram de modo á fazer com que seus braços ficassem frouxos rentes aos lados do corpo dela.

–Sem graça. –disse ela á ele, fazendo beicinho, deu ás costas aos dois e voltou para a casa.

–Vai pentear o cabelo, sua exibida convencida.

Valdir ria disfarçadamente, olhando para o sol das três da tarde.

Da porta, Fátima fez caras e bocas para Ângelo.

–Eu vi você andando por aí á paisano hoje, delegado. Você não me viu? –perguntou abrindo o portão. –Entre.

–Não, eu não vi você. Eu estava de bobeira, como dizem os desocupados por aqui. –e superou o portão.

Andando rumo á casa, Ângelo relia o bilhete.

–Eu preciso te ver novamente de um jeito qualquer. Vem matar esse desejo ardente, meu anjo mulher. Sem você sou como um barco perdido navegando sem rumo e sem direção. E a saudade atraca no porto do meu coração. Eu preciso te ver novamente do jeito que for. Te abraçar, te beijar e sentir seu corpo no meu. Sem você sou passarinho ferido que caiu do ninho e não sabe voar.  Sem você, sou como um peixe jogado pra fora do mar. Vem me mata de amor, me leva ao céu. Eu quero sentir seu gosto de mel. Eu sou todo seu faça de mim o que quiser. Vem me deixe passar bons momentos ao teu lado. Eu quero em seus braços sonhar acordado. Eu sou todo seu, meu anjo mulher.  –Então, eu tenho um camarada poeta. – Ângelo falou ao terminar de ler a poesia.

–Me dá isso aqui. –e se apossou da folha. –O que eu quis te passar era confidencial. Por isso eu entreguei ao policial essa melosidade toda. Homens respeitam o sentimento dos outros.

–Entendo delegado. Agora entre. –Ângelo convidou fazendo um gesto cortês com os braços.

Valdir se sentou e recostou-se no encosto do sofá levando as mãos na nuca.

–Que tristeza é essa?

–Você não entende nada de estado de espírito.

–Os únicos que eu conheço são de alegria e de tristeza. E você está triste.

–Não estou triste nada. È que eu me lembrei de que pisei na bola com uma mulher que eu havia marcado um encontro com ela anteontem. Eu tive que fazer hora extra na delegacia e liguei no restaurante onde ela me esperava e desmarquei o jantar.

–Tudo bem. Você avisou, ela vai entender. –disse Ângelo se sentando no outro sofá.

–Tomara que sim.

–Você tem o telefone dela?

–Tenho. É isso ai. Eu vou ligar para Arlete mais tarde.

Ângelo soube então, o nome da musa inspiradora de seu camarada e delegado Valdir.

–Arlete. –disse ele levando o dedo á ponta de seu nariz. –Esse nome rima não com tristeza.

–Já falei... era só inspiração.

–Você não disse que era uma inspiração. Quer falar sobre isso meu amigo?

Valdir se ajeitou no sofá, chegando até o braço do acento para desabafar com o insistente.

–No meu primeiro encontro com Arlete no refeitório, eu percebi que ela se mantinha na defensiva, e mesmo demonstrando interesse por mim, algo dizia em seu olhar que ela não era do tipo de mulher que vai para um motel com um homem logo no primeiro Happy hour.

–Mas não é de uma mulher tão fácil assim que você precisa.

–Não, não é. Embora Arlete seja uma mulher muito atraente e sensual, eu senti que ela não estava à procura apenas de sexo.  O jeito ressabiado dela em relação á mim me mostrou que ela queria que viesse a ser um relacionamento sério entre nós.

–E você não á decepcionou.

–Começamos á namorar, e foi ficando sério. Eu já penso até em deixar de ser delegado para levar uma vida tranqüila ao lado dela e da filha dela. A mocinha é muito legal. A gente está se dando muito bem.

–Eu não vejo problema algum que possa impedir vocês três de serem felizes.

–Arlete ainda não se sente segura ao meu lado. -disse correndo as mãos nos cabelos e balançou a cabeça para os lados demonstrando que estava com a esperança esgotada.

–Traumatizada, eu diria?

–Sim, Conversamos sobre essa questão na semana passada. Por mim, teríamos terminado tudo, e, por ela, talvez não valesse a pena insistir em ficarmos juntos. A filha dela me contou que ela teve um namorado, mas numa noite ela o flagrou tentando abrir a porta do quarto da filha, então com seis anos de idade. E, ele tinha nas mãos uma seringa e uma vela preta. Enfurecida, Arlete pegou uma faca de cozinha e pôs o salafrário para fora de casa com as calças na mão.

–Talvez ele não tivesse certeza de que a menina fosse filha dele. Ela fez teste de DNA na filha para provar que ele era o pai dela?

–Fez.

–E deu positivo?

–Foi ele quem obteve o resultado do exame e não repassou á ela. Desde então, ela nunca mais quis vê-lo. O infeliz foi assassinado. Eu pessoalmente estive no local da ocorrência do crime. Ele tinha um punhal cravado no coração. Arlete não contou á filha esse episódio, e também jamais disse á ela quem era o pai dela.

Ângelo dedilhava seu próprio queixo enquanto Valdir relatava.

–Valdir, eu ainda não consigo acreditar que você tenha vindo aqui em minha casa para me confidenciar algo cabuloso, pessoalmente seu e da família de sua namorada.

–Talvez tenha algo á ver com o que você veio procurar aqui no Braz.

Ângelo cruzou os braços esperando que o delegado fosse direto ao que o interessava. Valdir olhou por toda a sala para assegurar-se de que Fátima não estivesse os ouvindo e chegou um pouco mais perto de Ângelo.

–O homem era enrolado de uma das envolvidas na tragédia na casa da sua nova companheira de lar. Coincidência ou não, naquele mesmo  dia, mais dois homens que também eram dos que tiveram algum tipo de participação no incidente na casa, também foram assassinados no mesmo lugar, de forma idêntica. –falou baixo.

–Incidente uma ova. Extermínio, isso sim. Mas, a Arlete conheceu Fátima e Augusto?

–Não sei. Mas, a parte que te toca não é sobre a minha futura enteada e a Arlete. É de uma amiga das duas. O pai dela não á reconhecia como filha dele.

–Esse homem era o que morreu no mesmo dia que o ex dela?

–Não. O nome dele era Norato. O da garota eu não me lembro. A mãe e o pai dela freqüentavam a casa do casal Augusto e Fátima. O que eu estou te repassando sobre essa moça foi contado á mim pela Arlete, a minha futura esposa traumatizada.

–Eu torço por vocês. Mas, voltamos ao que me toca. A criança de Fátima nasceu morta. Pelo menos é o que se sabe até hoje.

–Tinham três crianças mortas. O meu pai era o delegado que acompanhou todo o caso. Ele recebeu um telefonema de alguém que passou á ele a localização de onde estavam os corpos dos bebês, mortos.

–E, onde estavam?

–Ele não quis ser acompanhado no descobrimento dos corpos, e sozinho os levou ao legista na madrugada na casa do examinador de defuntos. Havendo o legista confirmado as causas-mortes, tiraram fotos e, os corpos foram incinerados no quintal do próprio médico.

–E onde está o seu pai?

–Eu fui levá-lo na rodoviária agora á pouco.

–Não havia ninguém na rua naquela hora?

–Vizinhos da época diziam terem visto um carro preto com pessoas dentro dele saindo da garagem da casa minutos antes de tudo acontecer.

Para Ângelo era muita negligência da parte das autoridades criminalistas, deixar que não fossem apresentadas as provas cabais de assassinatos daquela espécie. Depois de esfregar o rosto deixando transparecer sua colérica contrariedade com todos os envolvidos nas apurações dos fatos do caso mal elucidado e desfechado de modo arbitrário e irresponsável, ele exporia algumas questões ao atual delegado.

–Considerando o fato de que as pessoas que estavam na casa naquela última noite não era apenas a grávida Fátima, não poderia ser desconsiderada pelas autoridades, que as crianças foram mortas por um terceiro ou mais elementos que ceifaram as vidas de todas elas por crueldade insana. Eu particularmente acredito que você não seria conivente com tais procedimentos escusos.

–Em 66 eu era soldado do exército e havia me envolvido com uma mulher barra pesada e me relacionei com alguns traficantes da cidade.

Foi então que Ângelo recorreu á uma vaga lembrança de ter lido algo á respeito de um militar que era um mero cabo de polícia no Braz e fora empossado delegado por vias de circunstâncias. “Ele não possuía graduação de carreira militar. De um raso soldado, tornou-se substituto do seu antecessor que deu baixa em sua carreira militar justamente dois dias após a tragédia ocorrida com os pais e filhos naquela noite tenebrosa.”

–E, para manter sua fama de homem de atitudes, você esmurrou até deformar completamente o rosto de um policial, só por ele ter passado a mão nas partes intimas de sua namorada numa abordagem policial rotineira num bar. Pagou seis anos de prisão. Cumpriu apenas um, por razão da influência do seu pai que também era delegado na época. Eu já ouvi falar da sua natureza explosiva.

Desdenhando, porém consentindo, Valdir ajeitou as barras da calça para dar continuidade ao caso Fátima.

–A ideia de que algo sobrenatural ocorreu ali para que elas fossem mortas de formas tão misteriosa, foi considerada e aceita pelas autoridades e por todos os moradores circunvizinhos.

–E então, a fantasmagoria começou. –Ângelo observou. –Mortes misteriosas sim. Sobrenaturais não.

–As mortes foram acidentais. Afogamento, queimadura e queda do segundo andar da casa, dentro de um buraco. Quem revelou onde estavam os corpos, por certo fora a mesma pessoa que provocou os acidentes no momento em que ela realizou os partos tendo a ajuda de outra pessoa. Mas eu discordo. Mulheres em trabalho de partos, uma parteira também grávida realizando a tarefa de tirar a criança das entranhas de uma parturiente, três possíveis auxiliares gestantes, que perderam suas crianças e suas vidas numa desastrosa participação de assistência á um parto indubitavelmente normal, para mim não passou de um extermínio premeditado, e negligência policial para não se chegar aos responsáveis pelos assassinatos.

-Afinal de contas, eram quantas mães e quantos bebês? -Ângelo indagou sem esperar por resposta. –Vítimas vão surgindo de modo á daqui á pouco, formar-se a lenda do casarão onde todas as mães de São Paulo perderam seus filhos. Parece-me que estamos diante de uma fantástica estória criada pelo imaginário humano.

–Eu concordo com você. Tudo foi muito mal esclarecido. Partos não seriam realizados sem profissionais com conhecimentos técnicos e em local apropriado. E por incrível que pareça, a amiga da minha enteada nasceu naquela mesma noite nas imediações do casarão. –Valdir assegurou e se levantou. –Bom, eu já vou indo.

–Eu te acompanho até á porta.




*


Durante a noite Fátima não conseguiu pegar no sono. Estava preocupada com seu estado de saúde. O dia amanheceu ela continuou na cama querendo dormir. Mas fora impedida pela chegada de uma estranha que espantou o sono dela e também lhe tirou a paz. Era Débora, que, á ser atendida pela loura esbelta vestindo um short vermelho bem preenchido por nádegas firmes e empinadas, com par de coxas perfeitas e tão lisas como pele de pêssego, não gostou de saber que Ângelo estava morando com ela, e a alertou de não se assanhar para o lado dele, porque ela não á aceitaria como namorada dele. Houve um começo de discussão entre elas, mas Fátima foi comedida, enquanto que Débora á desmereceu á ponto de fazê-la chorar. Débora achava que Fátima significava pedra de tropeço para o convívio entre ela e Ângelo. Fátima se viu extremamente magoada.

Em Goiânia, uma ligação interurbana deixou Débora com o peso da irresponsabilidade tirando-lhe o sossego. Aflita dentro de casa, andando de um lado e outro, juntando os cabelos em um molho só, sem os pentear, Débora procurava a bolsa para sair. Um chofer á aguardava dentro de um Landau preto estacionado em frente á casa. Desarrumada, despenteada e calçando uma sandália rasteira ela entrou no carro se sentando no banco de trás. “Para o hospital”. – disse ela ao chofer. No hospital ela se via diante de cândido no leito de uma enfermaria. Só restava á ela, esperar que Cândido Plates Rivera fosse complacente com ela.

“Cândido, o Ângelo...”

“Foi para São Paulo. Ele não iria sem vir ter comigo antes”

Ela conteve a surpresa.

“Eu não pude evitar. E, eu nem sabia dos planos dele”.

“Foi em busca daquilo que o fará feliz”.

“Mas, senhor Cândido, o senhor tem sido como um pai para ele”.

Cândido á olhou com tristeza no olhar, sentou-se, e com um movimento de mão ordenou que ela se sentasse do lado dele.  Débora o obedeceu.

“Débora, você conhece a história do rei que escondeu o baú cheio de jóias e disse aos súditos, que o procurassem”?

“Sim, eu a conheço. Mas, o que significa as pedras que caíram pelo caminho, as jóias escondidas e o baú, senhor Cândido”?

“O meu menino conhece o significado de tudo. Providencie para que ele fique bem e protegido”.

“Eu prometo que eu mesma providenciarei”.

Ângelo havia acordado bem cedo para ir á região comercial do Braz para comprar alguns utensílios domésticos e agasalho para o corpo. Quando ele chegou já era começo de noite. Fátima foi logo participando á ele tudo que ocorrera entre ela e Débora. E ameaçou voltar para o casarão.

–Se você for morar lá novamente, eu mandarei um recado para alguns fantasmas. Aí, eles vão brincar de ciranda, cirandinha com você.

–Prefiro os fantasmas á àquela megera que está lá dentro.

Os dois entraram abraçados.

Débora estava sentada no sofá, com pernas cruzadas e balançando o pé, de nervosismo puro. No décimo aniversário de Ângelo, Débora foi apresentada á ele, e recomendada de dar á ele todo carinho e amor materno. Convivendo com ele, ela sentia-se desprezada, pois, Ângelo com respeito e submissão convivia com ela, mas ela achava que ele á considerava como á madrasta que desejava conquistar o enteado para então se posicionar como mãe e estabelecer suas regras de moral e conduta. Ela reclamou com Cândido sobre o comportamento do menino.  Na varanda, em pé, olhando para o azul infinito do horizonte, Cândido á escutou para então manifestar sua opinião.  “cuide do meu menino. Apenas cuide do meu menino” – foi o que ele de costa para ela á recomendou naquele dia.

Convencida de que ela era a culpada de tudo, Débora teve humildade para reconhecer o erro cometido por ela, e deixou Goiânia imediatamente.

–Débora, tudo bem com a senhora? –Ângelo perguntou e a abraçou.

–Eu estava até chegar aqui e encontrar essa mal... mal criada.

–Você não me conhece, sua... ai Ângelo eu vou me embora dessa casa. –Fátima ameaçou assanhando os cabelos.

–Sente aí e fique quietinha. Vocês duas não se conhecem. Portanto, apenas houve um mal entendido.

–Foi ela que começou. Já chegou jogando a mala no piso e me chamando de assassina oportunista.

O sentimento de culpa acompanhou Fátima durante dezessete anos, até que Ângelo apareceu e mostrando á ela uma nova perspectiva de vida. Mas, a presença de Débora a fizera desejar ter morrido junto com as demais pessoas naquela noite.

Ângelo fitou Débora com olhar de reprovação esperando que ela se retratasse, ou pelo menos expusesse a razão de tamanha ofensa dirigida á uma mulher que ela não á conhecia. No fundo ele tinha as suas dúvidas quanto á tal comportamento de Débora.

–A mocinha da casa da frente me contou sobre ela. –falou sem nenhuma demonstração de arrependimento por ter agido de forma intratável com Fátima.

Ângelo tinha certeza de que Débora simplesmente se justificaria.

–Tudo bem Débora, mas a Fátima mudou de vida, e...

–Mas não pode devolver a vida á todas aquelas pessoas.

Dos olhos de Fátima brotam lágrimas de amargura. Ângelo analisou o choro dela sentada na cadeira, de cabeça apoiada nos braços sobre a mesa da cozinha. E também observava a postura de Débora em pé, com as mãos na cintura e olhar altivo denotando o espírito de superioridade de uma religiosa diante de uma pecadora incorrigível. Então ele decidiria á qual das duas ele apoiaria.

–Dona Débora. –disse ele pegando a mala. –Eu não preciso que a senhora venha morar comigo. Já estou crescido e sei me cuidar. Pegue essa mala e arrume outro lugar para a senhora ficar ou volte para Goiânia.

Cansada da viagem de ônibus, e decepcionada com a recepção ela teria que ignorar toda a falta de consideração advinda de Ângelo ao sacrifício superado por ela para estar do lado dele. Ela contornaria a situação ou o abandonaria de vez, deixando-o com a infeliz causadora de desarmonia entre ela e o menino de ouro do patrão.

–Não Ângelo! –disse pegando a mala e a colocando no piso novamente. – Olha, eu acredito que ela mudou de vida. Inclusive, a sua vinda para esta cidade já fez acontecer um milagre. Talvez você não saiba, mas aquela senhora que mora na casa da frente, era muda, e, ela começou á falar depois que ela te viu. A empregadinha me contou... –relatou e esperou a reconsideração dele.

–Não foi só a mim que ela viu. Fátima estava comigo. Havendo acontecido um milagre como a senhora disse, então somos dois milagreiros.

–Essa daí...

–Dona Débora... –olhando sisudamente para ela.

Ela olhou para Fátima ainda chorando na mesa.

–Me perdoa Fátima. –pediu pegando a mala. –Qual será o meu quarto?

–O terceiro à direita no corredor. –Ângelo respondeu indo á Fátima. –Levante-se minha linda. –disse á ela.

Sobre o ombro dele o choro de Fátima se tornou soluços apenas.

-Vá para o seu quarto, minha linda. Eu preciso pensar um pouco.

Soluçando, Fátima seguiu para o quarto dela.

Pensativo, Ângelo seguiu para o quarto dele.


Na soleira da janela do quarto, ele contemplava o meio arco de uma lua de fina espessura que anunciava o fim de seu ciclo minguante. Ele havia ido ao posto telefônico e ligou para Amaro. A empregada informou que ele tinha viajado para passar uns dias com alguns parentes dele. Depois ele ligou para Gisele, a patroa. Com ela ele conversou por alguns minutos. Gisele lhe contou que ela e o marido estavam passando por uma crise conjugal e teria algo á ver com o convívio dela com Jorge, o enteado que ela não o suportava. Nenhum homem havia despertado nela o que ela sentia por Ângelo.

“Isso passa” -disse Ângelo, e desligou.

Era muito fácil para qualquer um notar que ele era diferente de todos os adolescentes da idade dele.  O diferencial estava manifesto em seu jeito de ser e nas diversas formas de interagir com pessoas de idades, costumes e naturezas diferentes. Ele que sempre fora um garoto frio, e que as coisas aconteciam tão naturalmente, se via agora invadido por uma sensação estranha, relativa a mocinha da casa vizinha. Olhou para o alpendre da casa e parecia querer guardar na memória a última imagem daquela garota de vestido creme rodado que a fazia parecer uma princesa de conto de fadas. Ele precisava administrar bem o que ele pressentia pela estranha.

–Oi Ângelo! Me perdoe por tudo que houve entre mim e a Fátima. –disse Débora ao entrar. –Posso chegar perto de você?

Naquele momento ela vestia uma blusa branca de gola em v, de mangas longas e uma saia preta de linho bem justa no quadril e pernas. Talvez, sem intenção de estar, ela estava sensual. Ele apenas esticou o braço esquerdo. Ela se agasalhou debaixo do braço dele e o abraçou pela cintura.

–Seu cabelo está molhado. –disse ele depois de dar um beijo no alto da cabeça dela. –Vai sair?

Débora não questionou e nem tentou fugir do modo que ele á recebeu com tanto carinho, apenas juntou os cabelos e os passou para frente do corpo.

Comentou a calmaria da noite e colou o lado do rosto dela no ombro dele.

–Eu tinha plano de ir para o culto exclusivo para o louvor especialmente para as irmãs do grupo de cantoras visitantes. Mas, se você quiser que eu fique eu fico.

Ângelo afagou os longos cabelos dela e pediu á ela que ficasse com ele na janela.

–Você está muito bonita Débora. Parece uma jovem mulher solteira em voto de castidade.

–Exagero seu. –disse ela, correndo as mãos ás próprias pernas.

–Você se parece muito com a Iemanjá.

–Ângelo, aquela mulher, apesar de ser um ídolo é muito bonita e parece uma moça.

–Bem... –disse ele deslizando a ponta do dedo indicador dele do alto da testa á ponta do nariz perfeito dela. –Diz a lenda, que, ela é tão velha quanto o surgimento das embarcações marítimas. Então, comparado á ela, a evangélica Débora ainda é uma mocinha e muito mais formosa.

–Você acha? –perguntou quase se explodindo de alegria.

–Tenho certeza.

–Eu faço você se lembrar da Iemanjá, ou é a Iemanjá quem te faz recordar de mim?

–Agora você me pegou. Eu vi a Iemanjá uma vez quando eu encontrei o quadro dela jogado em meio às coisas descartadas do senhor Cândido e me apaixonei por ela. Mas, o senhor Cândido disse que eu não devia me apegar á aquilo que não representa nada para mim. No outro dia ele consumiu o quadro. Depois ele me pegou vendo televisão pela primeira vez. No outro dia ele deu um jeito de dar a televisão para a vizinha costureira. Eu que nunca tinha assistido televisão na vida, continuei sem assistir.

–Ah, eu me recordo muito bem daquele dia. Eu fiquei sem assistir Amor com amor se paga, a minha novela favorita. O tempo passa ligeiro, não é Ângelo? –disse com nostalgia nos olhos, deslizando o dorso da mão no lado do rosto dele.

Ele assentiu e deixou escapar um suspiro de saudade.

–O senhor Cândido foi espírita algum dia?

–Não, Débora. Um dia eu perguntei á ele sobre as inúmeras religiões existentes no mundo. Ele me falou que para ele, tudo se resume em consciência, intenção e propósito.

–Eu queria anunciar o evangelho para ele. Mas, ele falou-me essas mesmas palavras.  Só que ele não quis me dizer o porquê de tudo. Ele disse para você?

–Não só disse. Me convenceu á ser como ele.

–Você pode me dizer agora?

–Claro que posso. A consciência é a ligação direta do homem á Deus. As nossas intenções justificam ou não os nossos atos. Nossos propósitos determinam se somos dignos de honra ou desonra. Puro e simplesmente assim, Débora. –dissertou e se pôs á olhar para o horizonte escuro.

Por um pequeno instante Débora só queira estar ali do lado dele, aproveitando os momentos que ela teria a oportunidade de conversar com ele sem ser impedida por Cândido que a advertia sempre a não usar dos encantos e da beleza dela para descaminhar homens casados e rapazes solteiros. Ela com os seus preservados trinta e nove anos de idade, era muito bela e cobiçada por muitos aonde quer que ela fosse. Á despeito de tanto dissabor por ela sofrido, o tempo não deteriorou a esplêndida beleza dela.

–O que você fazia aqui tão calado e sozinho?

–Estava pensando no quanto a vida nos surpreende e nos escancara a insignificância de nossa existência.

–Não seja tão amargo Ângelo. Você significa muito para o senhor Cândido, Amaro e para mim também.

Ele segurou a mão direita dela e a beijou com sentimento de gratidão. Débora gostou do afeto e levou os braços em volta da cintura dele.

–Eu liguei para minha patroa em Goiânia e, ela me disse que eu faço muita falta na empresa dela. Os meus amigos sentem saudade de mim. Eu também sinto, de todos eles. Mas agora eu estou numa cidade distante de todos que significam algo para mim, conhecendo e me relacionando com pessoas que também têm seus sonhos, suas angústias, desejos, alegrias, tristezas, enfim, que vivem suas ilusões.

–A bíblia diz que tudo é ilusão, mas eu encontro forças na fé para continuar vivendo.

–A fé. –disse ele consentindo, movimentando a cabeça. – Você alimenta a fé de um dia encontrar um bom companheiro para com ele se casar e deixar de ser chamada de beata. Fátima ainda acredita que a filha ou filho dela esteja vivo. A fé e a intuição de mãe a permite suportar o desprezo, a má fama e o desrespeito das pessoas.

–E você, tem fé?

–Todos nós temos. Talvez eu não a conceba de modo religioso e operante, mas sem ela eu não viria á essa cidade com a esperança de encontrar aquilo que eu procuro. No entanto, sei que a fé não me garante êxito, mas me incentiva á seguir em frente.

Débora começou á massagear os ombros dele com a intenção de deixá-lo relaxado e afugentar o desânimo que demonstrava estar sentindo. Ela aconchegou a cabeça no ombro direito dele e fez com que todo o corpo dela se unisse ao dele. As mãos dela iniciaram uma escalada desde as laterais das coxas até ao pescoço dele. Ângelo pôde sentir o corpo aquecido dela dentro da blusa de algodão.

–Eu me recordo de eu ajudando você á vestir o terno branco no dia do seu aniversário de quinze anos. Você me dizendo que não gostava da cor, e eu dizendo que você havia ficado parecido ao James Dean, bem mais novo e de cabelos escuros. Ah, e calçado com sapatos pretos de frentes quadradas.

–Aí eu perguntei: quem é esse? Ele também usa terno?

–Eu disse, sim. Mas era mentira. Eu nunca o vi de terno branco.

–E eu lá, na frente de todos, parecendo um pato branco dos pés queimado. Os sapatos pretos também ficaram ridículos nos meus pés.  As pontas quadradas deles eram como o pé da minha caixa de engraxar que eu usava.

–Ai Ângelo. –disse ela dando uma tapinha no ombro dele. –Como você era engraçado.

Os dois riram naquele raro momento de descontração. Ela ria escondendo o rosto entre o ombro e o pescoço de Ângelo. Ele fazia cócegas nas costelas dela, e também ria feliz... Então veio o silêncio e os olhos dos dois paralisaram no olhar um do outro.

–Eu gosto muito de você. –disse ela fitando os lábios dele. Os olhos dela iam se fechando.

–Débora, você não está noiva de um crente? –ele perguntou voltando para a janela.

–Eu queria falar com você sobre ele. Devido à doutrina da nossa igreja, a gente deve passar algum tempo sem ter convívio, para não sermos tentados a ter relações sexuais. Quando nos casarmos eu terei que me mudar para a casa dele e...

–Você não estaria segura do que está prestes á fazer.  –Ângelo antecipou esfregando o rosto e seguidamente jogando os cabelos para o alto da cabeça.

Débora sentia que ela se sentiria ainda mais solitária e necessitaria de outras mentiras piores para poder se encontrar com Ângelo, estando ela casada. Então, ela o abraçou por trás.

–Se você quiser poderá morar comigo e com ele.

–Não daria certo. Ter a você como minha madrasta eu não teria nenhuma dificuldade. Mas ter como amigo alguém que eu não conheço...

–Não, Ângelo. Ele te conhece e gosta de você.

–Que bom. –consentiu e foi se sentar na cama dele.

–Ah meu Deus!–ela exclamou e foi se sentar do lado dele, e o abraçou forte. –Como eu queria que ele me deixasse, para eu ficar morando com você para sempre.

–Débora, – disse ele afagando os cabelos dela sobre as costas dela. –Eu sinto que você está em fel de amargura por viver uma vida reprimida e distante daquilo que realmente quer viver.

–Eu não sei o que realmente quero.

–Mas... – disse ele segurando o rosto dela.  – Sabe o que não quer para a sua vida.

Foi como se ele tivesse tido uma revelação sobre o que se passava no âmago de sua alma atormentada e sedenta de respostas sólidas de alguém que não ensaiava de frente ao espelho para levar mensagens vazias aos seus ouvintes que após ouvi-lo fazendo promessas milagrosas ainda tinham que fazer uso da fé para que as promessas se cumprissem.

-Eu não sei que rumo tomar. –disse ela.

-Débora, o caminho que escolheres, siga-o. Quando se cansar dele, mude o modo de seguir nele. Levando em conta que a poeira e as pedras do caminho poderão sujar suas roupas e sua pele, mas o que não deve ser manchada é o bom caráter da caminhante.

-Você acha que eu deveria abandonar a igreja?

-A igreja não é o caminho. Ela é apenas a embarcação que você usa para seguir na estrada que você acredita que te levará á Deus. Se você se cansou dessa embarcação, mude para outra, mas não se esqueça de que muitos á jogarão pedras e te considerarão como sendo uma mulher suja e decaída da fé. Porém, saiba que você deverá mudar apenas de embarcação, mas perseverar no caminho que te conduzirá ao Deus da sua compreensão.

-Que caminho é este? Eu já me sinto tão confusa com tudo que eu ouço e vejo falar sobre o que nos leva á Deus.

Ângelo se agachou e segurou as mãos dela sobre as pernas dela.

-Débora, cada igreja dita suas regras, dogmas e doutrinas de acordo a concepção que cada um de seus líderes tem de Deus e de Jesus Cristo. Você aderiu á uma dessas visões de terceiros e viveu sobre a influência dos pontos de vistas doutrinários, sectários e dogmáticos desses homens. Pode ser que somente agora você esteja seguindo no caminho com os seus próprios pés, enxergando-o com seus próprios olhos e o entendendo de forma direta e pessoal, sem intermediários para á conduzir ao seu destino de chegada.

Ela levou as mãos ao rosto e refletia sobre o que ela sempre escutava de Mathias, e no que acabara de ouvir de Ângelo. Todavia, sua cabeça ainda não lhe permite chegar á uma conclusão sobre duas formas tão diferentes de concepção sobre as coisas do criador. Num relance, ela se lembrou do que Mathias disse á ela á respeito de suas pregações coerentes e convenientes com os evangelistas.

-Ângelo, você está sendo coerente e conveniente com o seu modo de entender Deus?

-Não. Eu não tenho uma ideia formada sobre ele, e não defendo um seguimento religioso. –respondeu se levantando.

-Sente-se na cama e me explique sobre coerência e conveniência.

Ele obedeceu.

-Eu estou me atrasando, mas tentarei ser breve e bem compreensível ao falar dessas vertentes á você.

-Tà bom.

-Olha. –disse ele unindo as mãos e as levando aos seus lábios. –É muito tênue a linha que divide o coerente e conveniente do correto e justo.

-Fale mais claro...

-Tudo bem. –olhou no relógio. –Ainda tenho um tempinho. Bom, se eu tenho uma opinião formada à respeito de determinado assunto ou causa, então, tudo que eu disser terá que estar enquadrado com ideia que eu defendo. Entendeu?

Ela meio que concordou com balançar de cabeça.

-Me dá um exemplo bíblico.

-Pois bem... –respirou e se lembrou de algo. –Os judeus pregavam a lei coerente às ideias de Moisés, e convenientes aos seus costumes religiosos.

-Isso, no velho testamento. E no novo?

-No novo? Me deixe eu me lembrar. –fez pausa. –Paulo de Tarso instituiu o cristianismo coerente às suas próprias ideias e convenientes aos costumes dos gentios e pagãos. Houve até discordâncias entre ele e os demais cristãos da época.

-Então, qual deles estava certo?

-Eu não posso fazer esse julgamento, mas posso assegurar à você, que os que se dizem cristãos, devem seguir o que foi dito e deixado de exemplo aquilo que o Próprio Cristo ensinou, porque o evangelho de Cristo não era coerente e nem conveniente à religião nenhuma. Ele foi correto e justo sem parcialidade.

-Eu ainda não entendi.

-Oh Débora!  Jesus nunca falou que as mulheres têm que ter os cabelos crescidos, e os homens, cabelos curtos para terem o direito de orar e profetizar. Ele nunca falou que alguém não pode comer certo tipo de comida servida por outros, por causa da consciência dos outros. Ele não deu o direito à um líder de igreja para que ele julgue e nem condene os membros...

-Disso eu me lembro de ter lido. Está escrito assim? E disse Jesus, não julgueis para que não sejais julgados. –recitou e sorriu comedidamente.

-Então, minha linda e preciosa vizinha. –disse ele com ternura. –Segue o seu caminho sem se preocupar com o que os outros vão dizer. Eu só peço a você que não se deixe esquecer de que Deus contempla lá do céu o seu caminhar nessa vida. Por isso, não o decepcione.

-Você acha que eu devo me manter firme, apesar dos pesares, para eu não ser culpada pelos erros de alguém muito próximo a mim?

-Bem, Débora...  - disse ele tocando o rosto dela com o dorso da mão direita. -Jesus jamais disse que a mulher crente santifica o marido descrente. Se for isso que você quer saber.

Ela sentiu uma força lhe tomar naquele momento, e se levantou para abraçá-lo. De olhos fechados, ela apertou-o no abraço e agradeceu em silêncio: Obrigada senhor!

–-Obrigada Ângelo! Apenas me abraça forte e não fale mais nada.

–Tudo certo, Débora. Mas não me ponha entre você e o seu noivo.











REVISAR


*


Ângelo obteve uma informação através de um comentário feito pelo funcionário da companhia telefônica que instalou o telefone na sua nova residência. A vizinha do lado era moradora no mínimo à mais de vinte anos naquela rua. O instalador disse à ele, que a mulher, na casa dos quarenta anos de idade, era uma das mais antigas usuárias dos serviços prestados pela operadora de telefonia. O homem não passou à Ângelo o perfil físico dela, mas adiantou ao pé do ouvido dele, para Fátima e Débora não ouvir, que a vizinha era uma solteirona com tendência à beatice, e que ele teria coragem de se casar com ela, se ela largasse a mão de ser boba. Ângelo riu enquanto assinava a ordem de serviço prestado. A pretensão do quarentão solteiro com a antiga moradora não despertou nele nenhum interesse em ter uma conversa com ela, afinal de contas, a vizinhança era composta de muitas famílias pioneiras que ali viviam. Teria sido para ele apenas um dedo de prosa com um instalador de telefone que gostava de um fuxiquinho básico. Porém, ele resolveu lixar o portão preparando-o para receber tinta à óleo, varreu a calçada e assistia uma turma de meninos e meninas brincando de queimada no meio do asfalto. Em dado momento, uma menina errou o alvo e a bolinha acertou Ângelo. O coleguinha foi até à ele para receber a bolinha das mãos dele e disse: “Ei, eu vi você entrando na casa da maldita. Você é doido. Ela matou as amantes do marido dela” Ângelo o indagou se ele teria conhecido as mulheres. O menino afirmou que a vizinha poderia confirmar o que ele afirmara.

Ele já havia visto a mulher quando ele vinha do posto telefônico e passou por ela que estava com problemas com o pneu furado do automóvel dela na Avenida Ipiranga. Na traseira do carro, Darlene vestia as mãos com um par de luvas. Ângelo ofereceria ajuda a ela, mas um homem robusto e bem alinhado o antecedeu.

Ângelo entrou na casa e foi para o quarto. A mochila estava guardada no maleiro do guarda-roupa. Rapidamente ele a tirou de lá e apossou-se do manuscrito para conferir alguma referência à respeito de uma mulher que possuía a natureza representada pela voz Baixo na teoria musical, e personalidade do elemento Terra.

Ao findar da tarde ele viu Darlene chegar à casa dela, sem maquiagem e com cabelos presos por uma liga elástica formando bojos volumosos cobrindo as orelhas. Não dada à vaidade feminina, mas de aparência satisfatória à ponto de torná-la cobiçada por solteirões e até por moços, rapazes e adolescentes. Ela trazia um pacote de compras do supermercado.

“É ela”

–Quer ajuda com as compras, senhorita? –ele perguntou a ela que apoiava o pacote de compras sobre a coxa e procurava abrir o portão.

–Obrigada, mas não precisa.

–Eu faço questão de ajudar você. – disse indo a ela.

Darlene assoprou para o alto demonstrando que ela estaria precisando sim da ajuda oferecida. Estava mesmo sendo difícil destrancar o portão por causa do excesso de chaves em um só chaveiro. Pegando o molho de chaves, Ângelo notou que a maioria das chaves era de cadeados.

–Eh... eu seguro o pacote. Você conhece melhor as chaves.

Na troca de mãos o pacote de macarrão Madre massas acertou o nariz dele. Foi de leve, e, a reação dos dois foi rir um do outro. Analisando o riso dela, Ângelo o definiu como sendo espontâneo e revelador de uma personalidade forte, porém aberta ao contato até mesmo com um estranho.

–Perdoe a minha falta de tato. São tantas chaves, que até eu mesma me confundo.

–Dinamismo demais, às vezes causa alguns embaraços.

–Como disse? –perguntou enquanto procurava a chave certa.

–Que você é uma mulher muito ativa.

Darlene nada comentou sobre a observação, mas se mostrou àvida à dispensar um pouco do tempo dela para uma conversa mais demorada com ele, contanto que, teria de ser sob o critério da não intimidade. Por obséquio, o portão de vergalhões torcidos seria o divisor entre os dois.

–Você é o novo vizinho, e os meus gatos não estão deixando você dormir?

–Eu ainda não fui incomodado por nenhum deles. Até gosto desses animais. Se bem que eles são ingratos e não gostam dos donos. Só do conforto e da boa alimentação dada a eles.

–Pronto. –disse ela havendo destrancado o portão. –Obrigada. –postou os braços, pronta para receber o pacote novamente. -Os meus gatos são adoráveis.

–Ao menos com a dona, eu não duvidaria. Acho melhor eu levar as compras até à porta da sua casa.

Para Darlene, tanta gentileza e agradabilidade aparentemente despretensiosa proveniente de um estranho, significava perigo à vista. Passou à mente dela de não aceitar que ele adentrasse o seu domicílio, mas, pessoas ainda transitavam pela rua naquela hora e, sobretudo, qualquer proposta ou ato indecente da parte dele, bastaria ela gritar ou usar sua arma de proteção pessoal.

–Se isso não incomoda, me acompanhe, por favor. –e seguiu na frente.

A saia cinza de cintura alta e caimento balonê exibia suas pernas bem torneadas e não a estorvava andar rápido como se estivesse correndo contra o tempo.

–De onde você vem? –ela perguntou chegando à porta e escolhendo a chave.

–De Goiânia.

–Os goianos são todos prestativos como você é?

–Não sei. É que, eu sou filho órfão.

Enfiando a chave na fechadura, Darlene tentava assimilar bem a resposta que ele deu.  Arriscaria fazer outra pergunta mais direta e sugestiva. Dependeria de Ângelo saber responder de modo a deixá-la mais confiante a seu respeito.

–Você é filho de viúva? –quis saber antes de convidá-lo a entrar.

–Sou filho de Deus todo poderoso, herdarei o que ele me queira dar. Da riqueza a mim deixada, só tirarei dela o sustento para jamais me vangloriar.

–Eu ainda não cheguei a esse grau e nível filosófico ainda. –disse ela escancarando a porta. –Entre e sinta-se em sua casa. Eu acho que não vou precisar desse amiguinho aqui.

Ângelo olhou na direção do olhar dela e se deu conta do que ela se referia.

Desde o incidente na casa da vizinha Fátima, Darlene adquirira o hábito de manter sempre um porrete do lado do batente da porta da sala de estar.

Parado próximo à mesinha de centro ele conferia a arrumação da sala.

Os sofás de madeira entalhada, revestidos de couro roxo estavam com as laterais afastadas das paredes, dando espaço para dois recipientes colocados ali detrás. Um coxinho quadrado comportando terra misturada à areia.  Uma travessa rasa, quadrada, de vidro, contendo àgua limpa e cristalina, estava entre a parede e o assento de dois lugares.

–Não repare a bagunça. Por todo canto dessa casa você verà algo relativo às minhas precauções. Dentro da minha casa você só não poderá ver o vento. Eu mantenho sempre as portas e janelas fechadas para não ser surpreendida pela ventania que causa um tremendo estrago quando entra de arrombo. Coloque as compras em cima da mesinha de centro. Eu jà vou precisar de uma mercadoria. –disse num fôlego só, abrindo o janelão sem cortina.

–Eu acredito que seja o fogo. –disse ele sacando uma caixa de fósforos e depositando o pacote onde ela mandou.

Darlene se aquietou na frente dele, completamente admirada. Era como se ela estivesse frente à frente com alguém muito especial e almejado. Na mercearia da rua ela ouviu algumas pessoas comentando sobre a chegada do novo morador. Na loja de rações o casal proprietàrios do estabelecimento a interrogou a respeito do rapazinho corajoso que tirou a maldita do castelo mal-assombrado e a levou para morar com ele. Agora, a admiràvel criatura estava ali, à poucos centímetros dela, de braços cruzados, à olhá-la em silêncio analítico como quem procurava descobrir seus segredos e desvendar seus mistérios. Os olhos dele reluziam um brilho vívido e sobremaneira encantador.

–Sim, os fósforos. –disse ela se despertando e pegando a caixinha. –Eu vou preparar um café. –Você deve estar pensando que eu sou uma desajustada.

–Não. Ao contràrio, eu acho que você faz bom uso de todos esses elementos e sabe administrar muito bem o tempo. Eu diria que você é uma mulher pràtica, ativa e constante. Sugestiva também.

–Sugestiva... – repetiu ela chacoalhando caixinha com palitos. –Sente-se. Agorinha eu estarei de volta.

Ângelo se sentou no sofá menor e, apoiando as mãos nos joelhos fazia uma introspecção sobre tudo que fora exposto à ele desde o momento que ele entrou na casa. O coxinho com terra seria para os gatos defecarem ali. A vasilha com àgua podia ser para eles beberem. Porém, o comentàrio sobre a impossibilidade de ver o vento não teria sido uma citação óbvia e desnecessària. Assim como também a necessidade do fósforo naquele momento para o preparo do café não seria mera cortesia da parte dela em paga pelo favor que ele prestou à ela. Os elementos físicos expostos na sala, a abertura completa da porta e da janela, e a utilização do fósforo se sucederam numa ordem perfeita, semelhante à escala dos elementos componentes da estrutura planetària.

Ela voltou para a sala trazendo duas xícaras de cafés bem quentes.

–Você é bem rápida. –disse ele se levantando.

–É solúvel. Pegue esse. O meu é sem açúcar. -disse entregando à ele a xícara da mão esquerda

–Você jà foi casada? –ele quis saber voltando à se sentar antes de beber.

–Ah! –ela exclamou à despeito da marca de aliança no dedo dela. –Fui casada por algum tempo, mas estou solteira à um bom tempo.

–Você ainda é uma mulher bem nova. Eu acredito que o seu casamento durou pouco tempo, e, por isso você vive sozinha à um bom tempo.  Mas, a marca da aliança está bem nítida no seu dedo. –deslizando o polegar na borda da xícara ele falou.

–Eu a usei até ontem. Para espantar os indesejados. –disse, jà com os lábios na borda da xícara, e deu aquela piscadinha cúmplice.

Ângelo a esquadrinhou. Ela seria uma mulher desiludida com a vida à dois, e teria razões para evitar à se relacionar com um homem. Mas, para tal postura optada por ela, Darlene teria sido infeliz enquanto estivera casada. Ele concluiu.

–Sabe, Darlene, eu aprendi que a melhor maneira para esquecer uma decepção sofrida, é remoê-la até que ela se dissolva.

Não falar à respeito de seu malfadado casamento a Ângelo foi o que ela determinou a si mesma enquanto preparava os cafés na cozinha. Mas, a decisão seria mudada tão depressa quanto o modo de ela se locomover e falar.

Ela pôs a xícara sobre a mesinha de centro deixando o café para depois e foi se sentar no outro sofá.

–Nos primeiros meses do nosso casamento eu tive que lidar com o jeito inseguro do meu marido. À época, ele era pedreiro de obras e eu fazia faculdade no meu primeiro ano de contabilidade. Houve o inicio de um cisma no nosso matrimônio.

–Por parte dele, por achar que não era conveniente sua linda e jovem mulher estudar.

–Eu entendi que era por ciúmes que ele era contra eu estudar. Eu pensava que ele deixaria de se preocupar tanto em me perder para algum colega de faculdade. Parei de estudar. Dali em diante, eu só me lembro de que uma mulher passou à estar sempre conosco em nossa casa, mas... –calou-se e se pôs à massagear as próprias mãos.

–E filho, você teve?

–Ai Ângelo, eu não quero e nem saberia o que dizer sobre ele. Por alguns meses eu tinha controle e ciência de tudo ao meu redor e em relação a minha vida de casada. Hoje eu só sei que eu não tenho o meu filho comigo, o meu marido foi encontrado morto, sei lá... e, os meus gatos são os meus únicos companheiros desde que eu me saparei.

Ângelo sentiu toda a angústia que ela sentia, e, ele não seria capaz de levar aquela conversa mais adiante. Entornou a xícara na boca, deu um estalido de língua e fez sinal de café aprovado.

–Depois do café você me leva para eu ver os seus coleguinhas?

–Sim. Eles estão presos em suas casinhas lá no fundo do quintal. Mas, um deles está solto por aí. Talvez aqui dentro da casa.

–Então, as provisões de àgua e privada portàtil foram deixadas na sala para uso e consumo exclusivamente dele?

–Foi um funcionàrio da Telesp que me passou essa ideia ontem. Como você mesmo disse, gatos gostam do conforto o de bom trato, e, eu não quero perder mais nenhum dos meus companheirinhos.

–Qual o nome do funcionàrio?

–Adamastor. Somos bons amigos. Ele vive me dizendo que eu espero por um príncipe que me levarà para morar em um castelo encantado.

–Adamastor. Um príncipe. Castelo encantado... Sei. –balbuciou e bebeu todo o café. –Bom, Darlene, eu jà vou indo...

–Espere. Você não quer conhecer os meus gatos?

–Quanta displicência a minha!

Saíram pela porta dos fundos e foram dar no canil dos gatos. No quintal todo cimentado havia gaiolas instaladas, suspensa do piso, fixadas à parede do muro alto. Dezoito gaiolas, algumas gatas gordas, bem tratadas, deixavam que seus filhotes sugassem de suas mamas o leite em abundância. Em apenas uma gaiola havia cinco animais.

–Nessa suíte aqui têm cinco hóspedes. Eu devo colocar ração em dobro?

–Estes são Vendaval e seus filhos, três machos e uma Fêmea. Terremoto, Tempestade, Ventania e... –pausou.

–E o quê?

–Ai, o nome é muito feio. –a voz saiu abafada porque ela usou as mãos para tapar todo o rosto dela antes de dizer rindo.

–Feio sou eu. Diz logo, boba.

–Tà bom. O nome da gata é Fogo-no-rabo. –e esperou a reação dele.

–Você é muito vergonhosa. Eu conheço mulheres que também tem fogo nos rabos.

Risos dos dois acompanhados das tapinhas que ela dava nele.

–Boto comida para os malvados e a borralheira, ou não?

–Triplique a ração, senão, eles se devoram. O Adamastor veio reparar o defeito em meu telefone ontem. Aí ele quis conhecer os meus gatos. Quando ele viu a selvageria desses cinco, ele deu esses nomes à eles. São todos maus e indomesticáveis.

–Eu pensava que eram quatro gatos para uma gata. No mundo animal também existe bigamia e incesto?

–Se existe não é levado em conta, pois os animais não agem por falta de respeito.

–Eu conheço a história de uma mulher que teve dois maridos ao mesmo tempo e convívio. O nome dela era Flor...

–Você está brincando com coisa séria. Os homens é que são uns cafajestes. –disse séria, mudando os cacos de lugares.

–Até parece que você entende de homens...

–O meu marido me traía com qualquer rabo-de-saia. –confessou trancando o cadeado de uma gaiola. –Eu preciso voltar para o trabalho. Farei hora extra hoje. -sem mais conversa ela espanou as mãos na saia e seguiu para dentro da casa.

Ângelo a acompanhou, mas nada disse à respeito da infidelidade do ex–marido. Os dois passavam pela cozinha quando ele notou que havia uma caneta e uma folha de papel em branco em cima da mesa que, no mais, havia apenas uma fruteira acrílica com laranjas e bananas. Ele pegou a caneta para escrever alguma coisa na folha de papel sem pauta, escreveu e entregou a ela.

-Pegue e leia. Se você não gostou do meu jeito, rasgue, queime ou jogue fora. Ao contràrio, me responda pessoalmente, quando você tiver se decidido.

E foi embora.

Darlene foi para a salinha de leitura, sentou-se na cadeira da escrivaninha, ajeitou alguns papéis, caneta e grampeador num lado da mesa e em seguida recostou-se na cadeira e pegou o bilhete que ele escrevera e, finalmente o leu em silêncio.  No começo da leitura ela deslizava a mão em seus cabelos. No segundo paràgrafo, a mesma mão acariciava o seu próprio rosto. Na parte final, ela deu um sorriso e tirou o pequeno estojo de maquiagem da bolsa. Olhando no espelhinho do estojo de maquiagem, ela umedecia os lábios com a ponta de sua língua enquanto corria o dedo nas sobrancelhas.

“Quer passar comigo as suas noites de solidão?”Respirou profundamente.

-Ângelo, quem é você? – se sentando perguntou a si mesma.


*


Débora ia aos poucos se sentindo cada vez mais rejeitada, mas relutava em não querer deixar a casa e ir embora. No fundo, ela queria estar ali com ele e com Fátima, sem medo de se arrepender depois.

Na noite anterior, Fátima se sentou ao lado de Ângelo no sofá para saber dele sobre a desigualdade social em Goiânia, uma vez que a conversa entre os dois girava em torno da situação dos que viviam em favelas de São Paulo. Débora ouvia a conversa, e fora extremamente deselegante com Fátima ao dizer à ela, que a desigualdade social entre o padrão de vida da loira e a de Ângelo não seria de maneira nenhuma equilibrada, pois, ela não deixaria que Ângelo se penalizasse de nenhuma mulher interesseira e oferecida. Fátima não se deu por ofendida, por não ter entendido à indireta, mas, ao ser deixada pelo Ângelo na porta do quarto dela, ela perguntou à ele o que Débora quis dizer com aquela conversa. “Que você é uma mulher interessante e desinibida. Agora entra no quarto, deite e durma em paz.” Deu um beijo no rosto dela e voltou para a sala. Quando ele passava pela sala seguindo para o alpendre, Débora foi logo atrás dele dizendo que ela não queria magoar a “coitadinha”

“Magoou não, Débora. Ela é muito inocente e por isso está sempre feliz.”

“E você, está magoado comigo?” “Boa noite, Débora.”

Numa espécie de juramento Cândido segurou as mãos de Ângelo para dizer algo à ele no dia em que ele completou dezessete anos de idade: “Meu querido amigo, cuide da minha casa até que eu volte à habitar nela, e quando eu voltar, continue por lá. Depois, encontre aquela que te amará para sempre. Saiba, porém, jamais dê à alguém, aquilo que ele ou ela não mereça. O que é meu é também seu. O que for seu, em termos de bens materiais, deve ser partilhado com quem necessita. No entanto, não se entregue à mulher errada, pois, ela poderá minar o porta-joias e roubar seu tesouro. Quanto ao seu coração, nunca permita que ele se divida e siga em dois caminhos diferentes. Onde estiver o seu coração pulsando em vida, ali estará seu corpo, mente e espírito. Entenda também que, sua alma poderá ir para um lugar tenebroso ou para onde habita a paz. Seu espírito poderá ser inconstante e seguir caminhos diversos. Sua consciência é o seu vínculo constante e direto com o ser supremo. Portanto, viva com sabedoria.

Amanheceu o dia, Débora queria ter uma conversa com ele, mas perdeu a oportunidade de tê-la, por iniciar criticando Fátima, tentando estabelecer regras de convívio e divisão de afazeres domésticos entre as duas.

Quando Ângelo chegou, Débora foi logo contando à ele que ela tivera outro desarranjo com Fátima que a deixou sozinha resmungando muito e saiu rua à fora.

–E você, onde esteve esse tempo todo? –quis saber dando um nó nas pontas da trança, mas nada adiantou, e o cabelo voltou à cortinar as costas dela.

–Eu andei à procura de um homem, mas não o encontrei. Encontrei a casa, mas ele não estava lá. Aproveitei a caminhada e fui ao Parque Ibirapuera. Agora estou aqui dando satisfação à minha querida monitora. –disse, com sarcasmo e uma piscadela.

–Ângelo, você tem que parar de ficar conquistando as mulheres com quem você conversa. – disse ela sem perder o ar de zangada.

–Do que você está falando?

–A Alice da Dasdores me contou que a Dasdores disse é ela que o Augusto tinha o seu jeito de ser com as mulheres. O meu pastor, em Goiânia me falou que nós tínhamos que fazer uma campanha de oração pedindo à Deus que não deixe que você tenha herdado o mesmo espírito que acompanhava o senhor Cândido e o Augusto. -ela cruzou os braços esperando a retórica.

–Pelo menos, eu, respeito as pessoas com quem eu me relaciono. –disse sussurrado e indo para o quarto.

Débora sentiu-se ferida por tê-lo deixado triste.

–Ângelo. –disse ela indo à ele. –Me perdoa. É que a sua patroa me mandou te entregar um bilhete quando ela soube que estaria vindo para cá, mas ela é casada.

Ele parou debaixo do arco da abertura de acesso à cozinha e sala. Alguma coisa lhe dizia que ele não leria o bilhete.

–Cadê o bilhete Débora? –perguntou abarcando a cintura dela com as duas mãos.

Os pelinhos nos braços dela se eriçaram e, ela se viu revelando-se à ele. Ser tocada por ele era o desejo dela jà não mais secreto.

–Eu o rasguei. –e se livrou das mãos dele e foi rumo ao sofá. –Você não pode se envolver com uma mulher casada.

Ângelo inflou as bochechas e assoprou para o ar.

–O que você resolveu com a Fátima?

–Ela se emperiquita toda e sai por aí todos os dias. Você tem que dar um jeito nela.

–Débora, vocês são mulheres e devem se entender. Quanto à mim, eu não sou patrão dela e ela não é nossa empregada. Se para você será difícil cuidar da casa, da alimentação e lavar roupas, não se preocupe, eu conheço alguém que poderá sanar esse problema.

–Você não vai contratar a Alice. Você sempre me evitou e continua me evitando. Eu sempre cuidei muito bem de você e nunca precisei de uma mulher como a Fátima ou a menina Alice para me auxiliar. Mas de você eu só ganho desprezo. –lamentou externando sentimento carregado de mágoa, e se jogou no sofá.

Ângelo convivia com Débora há sete anos, e por um longo período ele vivia sim evitando dialogar com ela e com qualquer outra pessoa que fosse. Ele tinha seus motivos e razões pessoais. Fora a fase em que ele mergulhava nas leituras dos manuscritos do senhor Cândido. O aprendizado exigia concentração e abstenção de conversas triviais com interlocutores, para que ele pudesse conhecer à si mesmo e não fosse influenciado por ideias e concepções de terceiros. Sua relação com Débora não seria destrato, sim uma reclusão particular da parte dele para um relacionamento mais íntimo entre sua mente, espírito e matéria.

–Você está sendo cruel consigo mesma Débora. Eu sempre a considerei minha amiga e companheira.

Ela moveu para um lado e outro a cabeça baixa em sinal de discordância.

Ângelo foi ao encontro de Fátima no quarto dela e não à encontrou, mas ficou por ali. Fátima tinha ido ao centro médico sentindo uma forte dor de cabeça. O médico receitou analgésico e a recomendou a não se preocupar com coisas bobas da vida. “como se ele soubesse o peso da barra que eu enfrento” – ela pensou em dizer ao doutor no momento que ele deu a recomendação.

De volta à casa, ela foi à cozinha preparar um café. Ângelo ainda estava no quarto dela, mas ao sentir o cheiro do café, ele foi à cozinha.

–Ângelo. –disse Fátima meigamente, entregando uma xícara de café à ele. –Você promete que nunca vai me abandonar?

–Humm! –fez ele depois de beijar a bochecha dela. –Jamais abandonarei você. –bebeu o café. –Você sabe preparar um bom café. –outro beijo no rosto e estalou a língua. –Delicioso.

Logo que Ângelo saiu, Débora chegou à cozinha, foi à garrafa de café, mas não quis bebê-lo. Foi até à Fátima para dizer algo à ela.

-Você não vai fazer com o Ângelo o que você fazia com o Augusto.

-Ai Débora, me deixa. –pediu recolhendo as xícaras.

-Você traía o seu marido com outro homem.

Fátima, chorando se encolheu encostada ao armàrio da pia. Débora olhou para ela com total desprezo, e saía, mas voltou à ela novamente.

-Por certo, o seu filho não era do Augusto.

Fátima foi para o quarto chorando. Ela se esforçava para se lembrar do que ela teria feito para merecer tamanha calúnia proferida por uma mulher que ela sequer conviveu com ela, - ela pensava assim, - porém, Débora tinha lá seus motivos para julgà-la.

Ângelo foi ter com ela novamente. Ele sentou próximo à ela deitada na cama. Toda manhosa, Fátima ruía as unhas, de olhos fechados.

–O que foi minha linda? –perguntou pondo a cabeça dela no colo dele.

–Talvez eu tenha que me casar com outro homem por saber que eu nunca poderei viver em paz com você. Eu gosto muito de você, Ângelo, mas tenho que aceitar que eu não sirvo para você. A Débora nunca vai aceitar que nós vivamos juntos.

–Fátima, você é uma mulher maravilhosa. O problema é comigo. Eu vou te contar um segredo. –pigarreou. –Eu tenho me esforçado bastante para não te procurar às noites. Quando tudo ficar esclarecido, e eu souber que não gosto de outra mulher para casamento, e que você não é quem eu penso que você é, aí então a gente deixa tudo acontecer.

–Ah Ângelo, todas as vezes que eu penso em um homem, eu só penso em você, mas a Débora não...

–Eu acredito em você minha linda. Não se castigue mais ainda. Eu vou falar com ela. –avisou ao ouvir o bater da porta do quarto de Débora, e se levantou.

–Ela vai morar aqui? Ela me disse que vai morar com o noivo dela quando a casa dos dois estiver reformada.

–Só que o noivo dela ainda não a reformou.

-Ah, é. Eu me esqueci disso.

-Eu vou lá.

Deu três passos no corredor e chegou ao quarto.

Os cabelos de Débora forravam o lençol às costas dela. Ângelo agasalhou a mão direita entre a blusa e os cabelos dela e puxou a cabeça dela para o lado dele. Ela se deitou com as pernas encolhidas e repousou a cabeça no colo dele.

–Débora, você é muito amàvel e muito linda e, eu gosto muito de você. Mas o seu jeito de gostar de mim, às vezes me aprisiona e me faz querer estar distante de você.

–É que eu não consigo mais viver me fazendo de sua amiga. Eu amo você de corpo e mente, pois sei que amor de mãe é diferente. Eu quero ser sua mulher. –confessou espremendo o rosto no abdômen do amado, enquanto lágrimas caíam dos olhos dela molhando a camisa dele.

Suavemente Ângelo massageava a nuca dela. Ele definiu a natureza de Débora, como sendo fogo. Veemente, efusiva. Personalidade alvoroçadora. Por ela ser crítica e ardorosa, seu representativo musical era o tenor. Seria necessàrio que ele assoprasse aquele tenor para descobrir a combustão de seu fogo.

–Você sabe que eu espero muito de uma mulher que mora nessa casa, não sabe?

Débora abandonou o colo dele e enxugou as lágrimas. Olhou para ele que se apoiava com as mãos para tràs sobre o colchão olhando para o teto, e foi fechar a porta e trancá-la.

–Ângelo, não se faça de bobo, você sabe que a Fátima está querendo conquistar você e te roubar de mim.

–Eu gosto de você. Mas você poderia dar a mim o que ela pode me dar?

Ignorando a pergunta, Débora foi tirando a blusa de frio, ficando apenas de saia e sutiã creme que mal acoplava os peitos grandes e maciços dela.

–Débora, pare com isso.

Foi em vão. Ela iniciou à despir-se toda. Ângelo fechou os olhos para não ver o corpo escultural que ele julgava ser intocado e preservado para ser entregue para um único homem que tivesse a sorte de possuí-lo.

–Ângelo, olhe para mim.

–Não Débora, eu não consigo...

–Pode olhar. Eu não estou nua. Perdoe-me!

Quando ele abriu os olhos, viu que os cabelos dela cobriam como um manto negro o estonteante corpo. Ele se levantou da cama e foi rumo à porta.

–Me perdoe você Débora. Eu só preciso do amor de uma mãe. –abriu a porta e saiu.



*


O carteiro Adamastor foi ter com Ângelo numa passada rápida na casa dele. Ele tinha muitas correspondências a serem deixadas nos endereços do bairro. Mas teve tempo de contar à Ângelo, que a filha de um colunista do jornal mais antigo de São Paulo tinha um esboço de uma matéria de jornal que falaria do que o pai dela viu acontecer no casarão naquela noite. Soube-se que ela tinha em mãos um rascunho que fora escrito pelo pai dela, e que trazia uma versão contundente sobre a tragédia familiar no ano 1966. A matéria estava em fase de edição para ser veiculada em jornal de folha na manhã seguinte após as mortes misteriosas. Não se soube por que a coluna não saiu da redação. Para falar com a mulher ele teria que ir à biblioteca pública às cinco da tarde. Onde há fumaça há fogo. De onde surgem boatos, existem fatos. Acreditando assim, Ângelo foi ao encontro da filha do ex colunista.

A biblioteca estava quase vazia. Poucas pessoas ocupavam as mesas naquela hora do dia, e algumas jà estavam devolvendo os livros.

Marluce era descendente de Europeu. Seu pai Màrio Francesccon Vilhanni era um italiano legítimo que no final da segunda guerra mundial desembarcou no Brasil e conheceu, namorou e casou-se com a brasileira Ana Augusta Alcântara. Dessa mistura ítalo-brasileira, nasceu em 1947 a que hoje é Marluce Alcântara Vilhanni. Uma linda mulher de pele clara em tom beirando ao caucasiano, embora seus olhos fossem castanhos claros por não ter herdado de seu pai a cor azul dos olhos do pai.

Sua mãe era morena de altura mediana e olhos negros e seu pai era louro, alto e de olhos cor do mar. Dessa fusão genético-cultural surgiu Marluce, mulher de corpo deleitoso, com ombros levemente voltados para tràs dando volume ao seu busto e destaque aos seus seios vistos frontalmente e lateralmente. Marluce era a representação pura de uma mulher que poderia chegar aos sessenta anos, ou mais, sem ter sido castigada pela deterioração da beleza feminina. Por infelicidade no amor, sua vida com seu parceiro era o que se podia considerar, desarmônica.

–Olá Marluce! Tudo bem? –Ângelo perguntou.

–Estou bem, mais eu não conheço você. –disse ela com o livro na mão.

–Você não me conhece, mas com certeza tem o mesmo gosto de leitura que eu. Podemos ler juntos?

Ela não respondeu e foi se sentar.

–Perdão, Marluce. Eu acho que agi errado, mas se você me deixar explicar eu prometo que serei sincero. –disse se sentando ao lado dela.

–Jà que você insiste, diz logo quem é você e como você soube o meu nome.

–Eu sou Ângelo Ràusen, e, eu descobri seu nome ao perguntar ao bibliotecário no balcão quando eu te vi pela primeira vez. Na verdade, eu sou um admirador seu. –mentiu para não colocá-la ainda mais na defensiva.

Marluce jogou os cabelos para tràs e o olhou como que desconfiasse que ela estivesse sendo cantada por mais um conquistador barato. A pele alva dela e seus traços faciais suaves davam à ela uma beleza pura, de fina estampa.

–Você não faz meu tipo. –falou e abriu o livro.

–Tudo bem, o admirador aqui sou eu, portanto, não me ofendo por saber que a minha feiúra te desagrada...

–Não, eu não quis dizer isso. –fechou o livro. –Você é um rapaz bem bonito e bem jovem ainda...

–E você é uma mulher linda e muito interessante. Que tal a gente ir para onde você quiser me levar.

–Você está indo muito depressa. Nem nos conhecemos ainda.

Ângelo mudou de assento e se sentou de frente à ela.

–Você não me conhece, mas gosta do meu gênero de leitura. Eu gosto de astrologia. Eu não te conhecia, mas agora jà posso dizer algumas coisas sobre você. –cruzou as mãos e esperou a reação dela.

–Realmente você está se revelando um rapaz muito estranho e pretensioso. Isso não me agrada. Com licença. –ela se levantou.

–Capricórnio. Seu signo é capricórnio. Teve algumas decepções amorosas, e o seu último encontro foi com um cara que se revelou um sem vergonha...

–Espere aí. Agora você demonstra que anda me espionando e sabendo até de meus malfadados namoros. –disse inclinando para pegar o livro na mesa. –Invasão de privacidade é crime. –falou baixo.

Ângelo quis deixà-la sair, mas se lembrou de que ela poderia dar informações mais confiàveis sobre o que ele precisava saber.

–Por algum motivo você invadiu a minha cabeça e eu não consigo parar de pensar em você. –falou segurando o livro ainda na mão dela.

Os dois se encararam. Nos segundos que os dois se olhavam olhos nos olhos, ele contemplava o rosto com maquiagens claras revelando uma mulher não chegada à programas noturnos nem à festas badaladas. Marluce parecia se perder no olhar de Ângelo, mas, intimamente ela pensava que ele seria mais um conquistadorzinho.

–Como soube que o meu signo é capricórnio? –perguntou para testá-lo.

–Quando você abriu o livro, a pàgina era do signo de gêmeos, ai então você avançou até Capricórnio.

Não seria a primeira vez que ela estaria se deixando seduzir por alguém muito atraente. Pelo menos, ele está sendo sincero. –ela pensou e se sentou.

–E sobre o cara sem vergonha? –perguntou se ajeitando no assento.

–A marca vermelha em seu pescoço. Caras que fazem isso com mulheres lindas iguais à você, tendem à serem fúteis...

–Típico de quem quer marcar propriedade, não é isso?

Ângelo apenas gesticulou que ela estava correta.

Marluce não tinha mais cabeça para leitura. Fechou o livro e se dispôs para a conversa.

–Marluce, eu preciso muito estar com você ao menos por algumas horas, mas o que eu tenho para falar com você é de suma importância...

–Tudo bem, nós podemos conversar por alguns minutos. –disse ela, afastando o livro para o canto da mesa.

–Olha, Marluce, eu vim à São Paulo para encontrar a família de um senhor que me adotou. Mas, infelizmente, me deparei com uma situação um tanto quanto desalentadora.

Ela moveu os ombros e a cabeça para os lados. Não estaria assimilando bem o que ele expunha.

–Deixe-me ser mais direto. O que você pode dizer sobre toda aquela mortandade acontecida em 66 com o casal Augusto e Fátima?

Demonstrando não estar interessada em falar sobre o acontecimento, Marluce lançou mão do livro novamente. Ângelo segurou a mão dela e a olhou com seriedade no olhar. Ela baixou a cabeça e massageou a nuca.

–Ângelo, eu não sei se o que vou fazer será certo ou errado, mas eu quero te convidar pra sair, desde que...

–Desde que não seja para irmos à boates, bares ou motel.

–Você me impressiona. –disse ela fitando os olhos dele.

–Para não te deixar com medo de mim, nós podemos ir à sua casa. Apresente-me aos seus parentes. Assim eles saberão com quem você estará saindo.

Por um momento ela fechou os olhos fazendo uma anàlise do que ouviu dele. A conversa não era adocicada por dissimulações, nem vontade de agradar.

Ele parece ser sincero. Por que esse olhar com tanta meiguice e demonstração de boas intenções? –ela pensou.

–Por favor, me diz o que você sabe.

Depois de um respirar profundo ela se mostrou pronta à contar o que ela sabia.

–O meu pai era colunista de um jornal e fazia crônicas de acontecimentos sobrenaturais. Ainda que ele não acreditasse em nada que não fosse explicado à luz da ciência, lógica e razão, eu me lembro de que naquela noite ele chegou a nossa casa, bastante eufórico e me chamou para acompanhá-lo até ao escritório dele. Então ele me mandou redigir a narrativa dele sobre o que ele viu acontecendo no quintal da casa onde houve as mortes...

–Fale-me sem interrupção de minha parte.

–No momento que ele passava na rua dirigindo o carro dele, ele viu duas pessoas vestidas de branco das cabeças aos pés. Uma das pessoas usava um chapéu também branco, a outra tinha um capuz preto cobrindo a cabeça.

–Seria um casal?

–Ele não pôde dar como certo que era um casal, mas garantiu ter visto que a pessoa que usava o capuz carregava bebês nos braços. O de chapéu trazia uma pà nas mãos e bebês. Ele deu ré, mas quando ele retornou, aquelas pessoas haviam sumido na escuridão. Enquanto eu escrevia, o telefone tocou, o meu pai foi atender. Por uns quinze minutos eu o esperei voltar para terminarmos o texto. Mas, ele mandou que eu o rasgasse e esquecesse aquele rascunho. Ele mesmo fez questão de queimà-lo. Ele me falou que quem havia ligado naquela hora, o alertou de que o que se vê através do espelho é sempre o oposto da imagem real... algo assim. Você acha que o meu pai teria sido ameaçado por quem telefonou?

Só então Ângelo recordou do chapéu que Cândido Plates recomendou à ele, que ao limpar os móveis do quarto dele, não o tirasse da parede à cima da cabeceira da cama dele. Ângelo não o desobedeceu. Ao terminar com a limpeza, o velho pegou o chapéu e o colocou na cabeça do menino obediente.  Essa recordação o deixou atônito à ponto de não querer dar a resposta à Marluce.

Marluce tocou suavemente as mãos dele sobre a mesa, sentindo que ele havia ficado incomodado com a pergunta.

Ele pensou um tempinho, para então dizer:

–Nós nos veremos novamente. Eu preciso ira gora. –e foi embora.

Abrindo e fechando o livro Marluce se sentia envolvida com a busca de um adolescente pela verdade. Mas, poderia ela acreditar em um rapaz estranho, embora bonito, sedutor sem a menor intenção de ser, agradàvel e misteriosamente conhecedor dos gostos e desgostos de uma mulher? Marluce se levantou e foi devolver o livro à gôndola.

Fora da biblioteca, Ângelo à esperava com a porta do taxi aberta.

Ela olhou para os extremos da avenida com grande fluxo de automóveis e pedestres naquela hora e sem hesitar entrou no taxi.

–Você acha que eu tenho muito mais para contar à você? -Marluce perguntou ao se sentar do lado dele.

–Sim. –Ângelo respondeu.

O motorista fez o carro andar.

Olhando através do vidro do taxi, Ângelo via um engraxate apressado indo em direção à um provàvel cliente com seus sapatos sujos. Vendo a cena ele sentiu saudade do seu tempo de criança quando ele engraxava sapatos na Avenida Goiàs em Goiânia até ao anoitecer.

–Você poderia me dizer o porquê de tanto brilho em seus olhos?

–São apenas recordações. –disse ele. O Sorriso discreto que ele deu foi percebido por ela.

–O que está havendo com você? Eu tô te achando muito triste.

–Impressão sua. Eestou super feliz em estar indo para onde vamos. Ele olhou para o carro do lado esquerdo e viu uma criancinha na cadeirinha de bebê. Recordou que ele não teve infância. Nunca brincou com carrinhos, nem empinou pipas.

–Ângelo. Eu estou falando com você.

–Ah, sim. Estamos chegando? –perguntou evitando falar de suas lembranças.

Minutos depois, eles chegaram. Ângelo pagou a corrida e foi até à Marluce no portão.

–Não estou com as chaves. Devo tê-las esquecido no taxi talvez.

Ângelo pensou em procurar as chaves outra vez, na bolsa dela, mas resolveu não fazê-lo ao vê-la tocando a campainha.

–Você deixou alguém vigiando a casa? – ele quis saber.

Ela olhou diretamente nos olhos dele.

–Sim, deixei. Eu preciso te falar algo sobre mim.

–Tudo bem. Pode falar. –segurou as mãos dela.

Marluce buscava coragem para contar à ele sobre as supostas filhas dela. Ela soltou as mãos dele e apertou a campainha mais uma vez esperando que uma das meninas viesse abrir o portão e a livrasse da difícil tarefa de ter de explicar à Ângelo sobre sua condição de mãe. Ângelo percebeu na expressão de insegurança dela e deduziu que o que ela tinha para contar era de certa forma, um pouco penoso na concepção dela. Mas ele estava ali justamente para saber tudo sobre aquilo que ela temia lhe revelar.

–Oh de casa. –Ângelo chamou batendo palmas. –É... eu acho que seu filho não está em casa.

Marluce o abraçou ao notar que o fato de ela ter filhas era irrelevante para ele.

–Então você jà sabia de tudo. Como você soube? Você me acha velha? –quis saber, ajeitando os cabelos e o vestido, pondo as mãos na cintura e dando um requebrado.

–Você me contou. –respondeu virando-se para bater palmas e fugir do assunto.

Ela parecia não acreditar que tinha dito algo sobre suas filhas à ele, e, se falou, com certeza não teria dito que ela tinha um filho.

Ao ver que não apareceu ninguém para abrir o portão, Ângelo voltou–se para ela.

–É, Marluce, eu acho que não tem ninguém em casa.

–Ângelo. –disse ela.

–Sim.

–Quando foi que eu te falei sobre, as minhas filhas? –enfatizou bem as  “minhas filhas para mostrar que ele estava equivocado.

–Dentro do taxi você falava sobre ela. Você se lembra? Eu acho que devemos voltar à biblioteca, talvez você tenha esquecido as chaves lá. –mudou de assunto para que ela não argumentasse a respeito de ele ter falado filho e não filha.

–Mas eu tenho filhas, e você disse filho. –cruzou os braços e ficou olhando-o sobre o meio fio da calçada.

Ângelo ficou olhando a rua como quem esperava ver um taxi passar.

–Bom, então eu é que me enganei. –disse, abraçando-a sobre os ombros.

Marluce mantinha os braços ainda cruzados. Ela não estava convencida de que ele estivesse sendo sincero, mas, por outro lado, percebeu que se ele estava mentindo era porque ele queria poupà-la de um possível constrangimento ao revelar à ele que ela era mãe solteira, e, admitiu que a atitude dele em relação a tal fato, fez com que ela se sentisse um pouco mais segura à respeito do caràter dele.

Seu ex-marido era um traste, e, o namorado, não parecia merecer outra qualificação que não fossem pegajoso e sufocante. Sendo assim, Ângelo poderia ser aquele que ela apostaria suas fichas, apesar da diferença de idade entre os dois. Ela o abraçou e encostou a cabeça no ombro dele. Os dois ficaram em silêncio. Ele deslizava a mão nos cabelos dela. Por alguns minutos houve troca de carinho entre os dois. Entre beijos e afagos eles resolveram que deviam esperar pelas meninas. Ela achava que elas chegariam em breve porque elas não tinham o costume de demorar nas casas das colegas e, as suas melhores amigas estavam fora do bairro. Mas ao falar das amigas, ela se lembrou de que o avô das meninas tinha vindo à casa dela, e, com certeza teria levado as mocinhas para darem um passeio.

–Ângelo. –disse segurando nas mãos dele.

–Sim.

–As minhas filhas não virão para casa essa noite. – e o puxou pela mão, indo em direção ao portão.

Com toda facilidade Marluce encontrou as chaves dentro da bolsa dela. A conversa de tê-las perdido foi pretexto para preparà-lo para contar à ele sobre as filhas dela. Sorrindo mudo, Ângelo a esperava destrancar o portão.

–Você mentiu duas vezes.-disse ele.

–Pondere. Pronto. Entre.

Enquanto os dois seguiam por uma passarela íngreme de acesso à porta de entrada da casa, pela garagem, Ângelo reparava o jardim formando um quadrado com plantas e flores mirradas e um vaso de concreto no formato de bacia grande no centro do gramado onde uma palmeira leque exibia sua folhagem estorricada pelo sol.

–Marluce. –disse ele parando na entrada da garagem. –Você devia estudar botânica, ou simplesmente, jardinagem.

–Nada mal para o nosso primeiro encontro. –disse ela voltando até à ele. –Esse jardim era tão lindo, Ângelo. Havia véus-de-noivas, agapantos, arbustos e flores variadas. Quem o cultivava éramos eu e o meu pai. Quando eu me casei ele foi embora, eu engravidei, contratei uma empregada e, ela dizia gostar de plantas também.

–Vai ver, ela era tão experiente com plantas quanto você.

–Bobo! Vamos entrar.

Da sala ampla jà se podia constatar que Marluce era bem zelosa com o ambiente interno da residência. Todos os móveis na cor ocre estavam limpos sem nenhum sinal de poeira. Jogos de sofás encostados nas paredes e uma mesa quadrada com seis assentos almofadados com tachas douradas nas bordas laterais dos encostos. O piso cerâmico parecia ter sido polido recentemente.

–Eu vou trocar de roupa. Fique à vontade.

Antes de se sentar no sofá Ângelo reparou na estante, um porta-retratos do casal dos pais dela. A mãe era branca, o pai era de pele mais rosada. A foto seria antiga, pois, a moldura era de madeira envernizada, oval, com uma fotografia em preto e branco, um círculo embaçado em volta da imagem dos dois bustos de feições faciais sérias.

Marluce estava demorando no escritório. Paciencioso, Ângelo à esperava sem incomodà-la.

–Ângelo vem para o escritório.

Ele se levantou e foi.

–Que casa enorme. Cadê você?

–Aqui no fundo.

Passou pela cozinha e viu sobre a mesa um papel com notação musical. Abaixo das cifras, um desenho parecido com um teclado de piano. Conferia a escrita com uma corrida rápida de olhos e leu também um pequeno aviso: “O vovô nos levou para Goiàs. Nós te esperamos lá. Beijos”.

Ele seguiu pelo labirinto residencial de Marluce. Depois de mais alguns passos ele chegou ao último cômodo da casa no final do corredor. O escritório era semelhantes à uma biblioteca residencial com amplitude suficiente para dispor de uma estante gigantesca em largura e assombrosa em altura, à ponto de ter uma escada abre-e-fecha com oito degraus para uso de quem quisesse ler um exemplar das centenas de livros que estivesse fora do alcance das mãos, todos eles em capas duras, e uma mesa de leitura particular com uma luminària de pedestal curvado para o tampo.

–Eu estive falando com alguém sobre você, mas está tudo certo. –disse Maura colocando o telefone no gancho do aparelho.

–Você me trouxe aqui para me falar do que houve naquela noite e do que você sabe à respeito das pessoas que possivelmente tiveram algum envolvimento com o caso Fátima...

–Sim, foi para isso. –disse, juntando os cabelos num molho só e se sentou do outro lado da escrivaninha. –Dias atrás eu encontrei nos arquivos da redação, que falava dos depoimentos de alguns dos envolvidos naquela brutalidade. Essas pessoas registraram queixas na delegacia e também entraram com processos na justiça contra Cândido Plates, exigindo indenizações por eles terem perdido seus parentes maridos das mulheres que estavam gràvidas.

–E você sabe os nomes e onde moram esses três viúvos?

–Os nomes deles foram mantidos em sigilo. E, eu não saberia onde eles moravam, se eu não tivesse ligado para o meu pai. Só que, eu fui até aos antigos endereços deles. As pessoas que herdaram as casas eram  parentes dos homens que morreram, e, eles moraram lá até o ano 1967...

Ângelo notou que ela estaria testando o raciocínio dele.

–Sei. No ano depois às mortes. –disse convicto. –Logo que eles foram indenizados, todos se mudaram?

–O meu pai sempre foi um homem muito correto, e não se omitiu. Ele deu testemunho do que ele viu naquela noite. Por isso, as indenizações foram pagas apenas pelas mortes dos bebês. Quanto aos maridos das mulheres, eles teriam morrido em outras circunstâncias e lugares, portanto...

–Mas, e os bebês que provavelmente foram enterrados no quintal por uma pessoa que carregava uma pà?

–Os corpinhos deles não foram encontrados.

–E para onde esses homens se mudaram?

–Eu fiz essa pergunta ao meu pai, ele não me deu a resposta. Enquanto você me esperava na sala, eu consegui obter o número do telefone do hospital onde Cândido Plates está internado. Não se preocupe, ele está bem lúcido.

–Obrigado, Marluce. Mas, eu sou informado dos boletins diàrios do estado de saúde dele. Você conseguiu falar com ele?

–Sim, e perguntei sobre os homens. Só que, ele me veio com uma piadinha sem pé nem cabeça e me disse que era pra eu repassà-la à quem quisesse saber do paradeiro daqueles homens. -ela levou dois dedos ao queixo tentando lembrar-se da piada feita por Cândido.

Ansioso, Ângelo esperava a conclusão.

–Droga, Ângelo, eu não consigo me lembrar. Sim, eu me lembrei. Cândido disse assim: na busca pelo tesouro, o baú é o maior prêmio.

Ele a olhou direto nos olhos.

–Foi bom para mim, ter conhecido alguém tão especial como você.

–Ângelo, os três homens mortos eram Otero, Norato e Ferreira. Eles eram membros da Ordem dos Monsenhores. Os três parentes que receberam as indenizações pelas mortes deles eram membros da Ordem Rivera.

Foi sobremaneira revelador para Ângelo.

–A minha vinda à São Paulo não está sendo tempo perdido. –disse abrindo os braços para despedir-se dela com um abraço.

–Desculpe-me por eu ter tentado esconder a verdade de você.

–A verdade agora dita não trouxe à mim esperança alguma, mas me revelou a pessoa que você é. Você é maravilhosa, Marluce. Quem sabe a gente se vê novamente. –e beijou de leve os lábios dela.

Ela se via em situação de desconforto e baixou a cabeça, depois se levantou e o abraçou, pousando o rosto entre o ombro e o pescoço dele. Depois o beijou e o olhou com carinho e ternura. No fundo, ela queria poder impedi-lo de ir embora à deixando apenas com a vontade de fazer parte da vida dele, tornando-se sua namorada ou simplesmente tendo com ele uma romance de outono. Mas infelizmente, ela tinha que admitir que Ângelo estivesse à procura daquilo que ela não poderia dar à ele.

No momento em que ele à olhou direto nos olhos para então dizer suas últimas palavras, ela se deixou cair sobre a cadeira. Ironicamente, quem precisaria de consolo, seria ela após a despedida.








                                                       *


Seria uma arriscada procura de provas contra ou à favor de Cândido Plates Rivera, e tempo perdido talvez. Mas Ângelo procederia de maneira cautelosa e criteriosa, afinal de contas, Cândido era o pai e único amigo verdadeiro que ele encontrou em sua vida, e, ele devia muito ao velhinho. De qualquer forma, ele continuaria sua busca pela verdade.

Fátima não apareceu na casa nem ao menos para tomar banho e trocar de roupa. Ângelo perguntou à Débora sobre a não presença de Fátima. Ela não soube responder, mas disse à ele que a ausência dela à deixava pesarosa, mas sabendo que Deus conhecia as intenções dela para com a maldita, – em sua própria concepção -, ela seguiria a vida com a consciência tranqüila.

Ângelo pediu à Débora, que retratasse todas as afrontas dela dirigidas à Fátima. Com lagrimas nos olhos e o coração sinceramente arrependido, Débora pedira e recebera o perdão de Ângelo, porém, com Fátima ela não teria a coragem de se humilhar perante à ela. Coube à ele, ir à busca de Fátima.  Ele sabia onde a encontraria.

Os faróis acesos dos automóveis pareciam pares de vagalumes voando lado à lado no breu da escuridão. Ele avançou três passos largos superando um terço da largura da rua. Parou e esperou que o veículo passasse por ele, para só então alcançar a outra margem da pista. Jà na calçada do velho sobrado, ele torceu o tronco de seu corpo e acompanhou o trajeto vagaroso do Landau preto que virou à esquerda no cruzamento da rua com a avenida.

“Se está me seguindo não pretende tirar minha vida. Se sim, teria acelerado e me atropelado”

Passando pela calçada da casa da velhinha, ele olhou para o alpendre e notou que a vela não estava mais em cima da cantoneira.

Abriu o portão e embrenhou no quintal escuro. Através da fresta da porta de entrada ele percebeu uma claridade e deduziu que Fátima não devolvera o lampião à vizinha. Quando ele abriu a porta deparou com o lampião em cima da mesa do jantar macabro, iluminando a sala à força de querosene.

Fátima estava ali encolhida no primeiro degrau da escadaria, com o queixo apoiado nos joelhos, desolada, com os olhos mareados de lágrimas.

–Por que revolver as cinzas de um passado dissaboroso Fátima? –ele perguntou se sentando do lado dela.

–Sempre que eu venho aqui eu me lembro da empregada me dizer que ela tinha caso com o Augusto. O Augusto me traía com a empregada.

–Você disse a empregada? –Ângelo perguntou.

–Sim. Aos poucos eu vou me lembrando de muitas coisas. Nós estávamos indo para a maternidade naquela noite, mas não daria tempo. O carro estava com defeito. –Fátima fechou os olhos buscando forças para continuar. –Outras mulheres gràvidas estavam aqui. Elas diziam que alguém teria levados os filhos delas.

–E como aconteceu?

–Eu não cheguei à ver nada acontecer. Foi uma mulher que me contou quando eu acordei. Tantas mortes em uma só noite. –lamentou, cruzando os braços e esfregando seus próprios ombros.

Ângelo a consolou abraçado à ela.

–Não se culpe Fátima. E os maridos das mulheres, eles te procuraram depois da morte do seu marido e das mulheres deles?

–Não. Eu não os conheci.

–E o bebê?

–Eu não tenho coragem de entrar no quartinho dele.

–Onde fica?

–Lá em cima. –de costas ela apontou para o segundo andar.

Ângelo apossou do lampião e se põe à subir a escada. A falta de luz no ambiente e o medo fizeram com que Fátima fizesse companhia à ele. Com o luzeiro à frente e no alto, ele seguia decidido. Fátima agarrou firme com as mãos a mão esquerda dele, desocupada.

–Ângelo, por que a gente não vai embora daqui?

–Se você quiser, pode voltar.

Parados no patamar do meio da escada.

–Então me entregue o lampião.

–Assim eu não enxergo. Fique calada, eu estou ouvido barulho lá em cima.

Num golpe de cabeça Ângelo esquivou de algo que veio em direção à luz.

Fátima gritou estridente, e quase fez com que os dois rolassem escada à baixo.

–Era só um morcego, sua medrosa.

Superaram os degraus alcançando o hall de acesso aos cômodos do segundo andar. O primeiro quarto era o do casal. Ângelo girou a maçaneta esférica dourada, mas a porta estava trancada. A luz do lampião estava jà se esvaindo, pouca claridade ele proporciona. O quarto do bebê ficava ao extremo de onde eles estavam. Não daria tempo de eles chegarem lá tendo o trajeto iluminado, com ele andando lento e cuidadosamente para não esbarrar em móveis e Fátima tentando puxà-lo para tràs à cada passo dado, à menos que eles corressem. E foi o que eles fizeram.

Ângelo chegou primeiro à porta estre entreaberta. Quando enfim os dois entraram no quartinho, por poucos segundos o lampião clareou fracamente o cômodo, mas antes da escuridão total, Ângelo viu no canto do lado berço, um punhado de terra, uma vela e uma bacia.

Terra, àgua, ar e fogo. No quarto do bebê só faltava o ar. – disse ele a si mesmo.

–Fátima, pra que essas coisas e remédio foram colocados no quarto do neném?

–Talvez fosse para realizar o meu parto... cadê você?

–Estou aqui detràs do guarda-roupa.

–Não fique longe de mim. Venha para cá.

Ângelo foi tateando o que encontrava pela frente. Quando ele tocou o corpo de Fátima, ela se assustou e esbarrou na porta, e a fechou sem querer.

Um gato surgiu de algum esconderijo, miando assombrosamente.

–Aiiiiii! –Fátima gritou sapateando. –Ângelo cadê você?

–Estou aqui. É só um gato faminto. Chaninho vem cá, vem. –chamou, e o gato foi roçar as costelas na barra da calça dele. –Está só os ossos, coitado. Vou dar ele para a Darlene. –disse ao pegà-lo nos braços. –Agora fique caladinho bichinho magricela. –captou outro barulho, agora no andar térreo. –Fique calada Fátima. Tem mais alguém nessa casa.

–Meu pai santíssimo! Pra que a gente teve que vir aqui em cima?

–Silêncio. Encoste-se à parede e fique quieta.

Fátima respirava, decapitado. O pavor roubava-lhe a força para se mover, e petrificou-se ereta escorada às junções das duas paredes no canto do quarto. Prendeu a respiração evitando emitir o menor sinal de sua presença ali, contendo o medo e o impulso de gritar. Teias de aranha grudaram no rosto dela. Ela ignorou o desconforto mais por medo que resiliência ou equilíbrio psicológico.

Ângelo deitou-se com o gato e colou a orelha no piso. Ouvidos atentos aos ruídos das passadas sendo dadas cautelosamente. O som era fraco e estucado como a ponta de um taco de sinuca tocando o piso cerâmico.

Calculando o impacto da sola do calçado em atrito com o assoalho.

Fátima esperava seus sentidos se acentuem, até que, um respiro prolongado emprestou-lhe coragem para espalmar as mãos à parede e se movimentar andando de lado, roçando as costas na parede para alcançar a janela cortinada. Na primeira oportunidade ela daria um jeito de abandonar o quarto.

–Fique onde você está Fátima. –ele ordenou ainda deitado.

O gato cheirava o nariz de Ângelo, ele sentia cócegas e teve que se esforçar para não deixar escapar um espirro.

Os sons das pisadas cessaram bem próximo à porta. A qualquer instante a porta seria aberta. Ângelo permaneceu deitado no piso alisando o lombo do gato. Estava chegando o momento da aparição.

Fátima mantinha os olhos bem abertos, – embora o sentido da visão não fosse útil na intensa escuridão do quarto, ela avançou um pouco mais para perto da janela.

A maçaneta foi forçada, mas parecia estar emperrada, a porta não abriu. Mais força foi aplicada e houve o destrave.

–Ângelo, é o espírito da empregada, que quer se vingar de mim. Eu vou pular...

–Fátima, nãooo. –ele gritou se levantando abruptamente e lançando o gato na porta. Ele a abraçou por tràs, e alisando a barriga dela beijou-lhe a nuca. Fátima se encolheu toda e sorriu em silêncio.

–Fátima, eu não sei o que seria de mim se eu não tivesse te alcançado à tempo.Ela considerou que jamais esteve com alguém carinhoso e gentil como Ângelo. Virou-se para ele e o abraçou por sobre o pescoço, para então agradecer.

–Hum. –disse ela segurando-o pela nuca fazendo-o perceber que ela estava gostando de ser abraçada por ele daquela forma. –Obrigadinho por não ter me deixado pular.

-Só não deu pra eu ir atrás passadas rápidas descendo a escada.

–Ângelo, era o fantasma que me persegue. Na noite que eu dei a luz, esse fantasma apareceu e levou o meu filho. –disse abraçada à ele de modo à forçar as partes traseiras do corpo dela à dianteira do dele.

–Não Fátima. Fantasmas não usam tamancos Luiz xv. Leve o lampião para a dona Dasdores. Eu buscarei e levarei o gato para alguém que saberà deixà-lo com a aparência melhor.

–Eu te amo Ângelo. Será que você é um anjo?

Suas suspeitas variavam entre querubins, serafins, anjo Miguel e outras deidades.

–Se você é um sonho, eu não quero acordar para não ter que enfrentar o pesadelo real que me atormenta acordada quando recordo de Augusto me chamando de mulher vadia no dia em que eu contei à ele que eu estava gràvida.

Com uma lanterna ele voltou ao sobrado para averiguar um detalhe percebido por ele no momento. A porta do primeiro quarto estava fechada quando os dois chegaram lá em cima. E, ele não à abriu. Mas, ao iniciar à descer escada à baixo, ele notou que a mesma porta, naquele momento estava aberta. O visitante misterioso teria entrado no quarto, e se entrou, algo importante havia sido por ele deixado ou levado de lá?

Vasculhou o enorme guarda-roupa de madeira roxa, começando pelas dezenas de gavetas, e nada encontrou. Nos compartimentos das roupas masculinas e femininas, nem sequer uma camisa ou um Babydoll estava ali. Fátima havia queimado tudo anos antes. Na gaveta aberta do criado mudo ele encontrou uma pasta com receituàrios médicos, cronogramas de consultas, um frasco de remédio e até o endereço da maternidade com o nome da médica que fazia o acompanhamento pré-natal de Fátima. Tratava-se de Valquíria. Eram jà quase nove horas da noite. Ele voltou à casa dele, ligou na maternidade e foi informado de que Valquíria não era médica coisa nenhuma, sim a amante do médico gestor da maternidade no ano 1966. E que ela teria rapado pés de São Paulo desde o referido ano. –informou a simpàtica recepcionista baixinha, de voz rouca e sobrancelhas emendadas uma à outra. Ele a agradeceu e desligou o telefone.




















                                                     *


Depois do banho Ângelo vestiu uma calça de moletom e camiseta, e pôs-se à afinar as cordas do novo violão que Fátima havia comprado para ele.  O telefone tocou, atendeu e se surpreendeu com a voz do outro lado da linha. Darlene falava quase gritando, que ela estava sozinha na casa dela, bebendo vinho tinto, ouvindo músicas românticas e com vontade de estar dançando com um gato de cor morena clara, olhos e cabelos negros e muito, mas muito envolvente. Mas, era uma pena que ela não conseguiu e nem poderia prendê-lo na casa dela. Em dado momento da conversa, Darlene pediu à ele que esperasse um pouco em linha, pois ela estaria indo lá fora para verificar se alguém havia chegado ao portão da casa dela.

Não passou mais de trinta segundos, ela voltou à falar com ele novamente.

-Ângelo, eu acho que alguém tentou destrancar o meu portão. Quando eu fui lá fora, um carro preto estava saindo...

-Eu estava na janela da sala e também o vi passando. Estou indo aí.

Quando ele à encontrou no portão ela estava à espera dele. Na noite anterior Darlene dormira na casa da vizinha Dasdores, por razão de mais uma aparição do estranho no portão da casa dela. E a velhinha à aconselhara à passar um tempo morando com Ângelo porque ele seria um rapazinho de confiança, frio feito gelo e não tinha medo daquelas bobagens que Darlene dizia sobre as aparições de um fantasma que não conseguia superar um portão trancado para ir ter com a assombrada.

–Entre, Ângelo. –disse ela completamente apavorada.

–Conte-me como foi que aconteceu. Pediu abraçando-a de lado e a conduziu para dentro da casa.

–Tem um gato que eu o deixo solto porque ainda não tenho uma gaiola para ele. De repente, eu o escutei miando forte lá no portão e depois ele veio correndo e passou todo arrepiado pela garagem, indo para o fundo do quintal.

–Você foi até lá fora, e o que você viu?

–Não sei, eu...

Ângelo se sentou do lado dela no mesmo sofá. Darlene não quis perder a proteção do abraço dele, e ela continuou entrelaçada ao corpo dele sem poder encontrar a forma correta para explicar à ele o que ela, talvez tivesse pressentido, imaginado ou realmente visto com seus olhos, ouvido com seus ouvidos e sentido com seu órgão olfativo.

–Da porta eu vi o vulto de alguém que saía do portão. Quando eu cheguei ao portão, ele jà tinha entrado no carro. Você não sentiu o cheiro de Dama da noite?

–Não. Eu ainda não vi essa planta por aqui.

–Podia ser o cheiro de um mau agouro.

–Superstições não combinam com a sua natureza de mulher sensata.

Ela não havia bebido muito vinho. O copo estava sobre a mesinha de centro, e o tinto pela metade.

–Eu sempre sentia aquele cheiro todas as vezes que eu e o meu marido íamos à casa da Fátima. E depois que nós voltàvamos de lá o cheiro ficava em nossas roupas.

–E você não suspeitava de nada entre ele e Fátima?

–Eu tentava entender a razão de o cheiro ficar impregnado em minha roupa, mas não conseguia compreender nem o que tínhamos feito na casa dela. Ele dizia que era o cheiro do perfume do Augusto, e dizia que eu o estava traindo com ele. Mas a roupa do irmão dele também exalava o perfume que Fátima usava.

Tudo levava Ângelo à crer que poderia estar havendo troca de casais entre Augusto e Fátima, Darlene e o marido dela. Embora ele acreditasse que Darlene e Fátima não tivessem noção de tamanha imoralidade cometida pelos casais, Ângelo não teria a mesma opinião em relação à seu esposo e Augusto.

–Fátima também alega ter perdido a memória durante o período da gravidez dela. Estariam Augusto e o seu marido dopando vocês duas para, ah, deixa pra lá.

–Eu sei o que você quer dizer. Mas eu não posso garantir que fosse assim.

–Tudo bem. Você conseguiria me passar mais algum detalhe de algo físico que você pôde ver...

–Eu acho que eu vi a sombra dele, e, ele usava um gorro de papai-noel.

–Darlene. –disse ele se levantando, deixando ela sozinha no sofá. –Agora me deixe expor algumas questões. Você e eu trocamos algumas frases de cunho iniciàtico. Contudo, você disse não ter conhecimento do meu nível e grau filosófico. Isso é compreensivo, porque eu não faço e nunca fiz parte de nenhuma ordem secreta. Porém, o homem que me adotou conheceu todas as ordens secretas existentes no Brasil e em outros países. Mas, ele não se submeteu ao controle de nenhuma delas, por achar que tudo não passa de desvarios daqueles que não conseguem aceitar a finitude de suas existências. Mas a pergunta é: você ou o seu esposo fazia parte de alguma sociedade secreta, ocultista ou não? Eu preciso que você me fale sobre algum fato envolvendo você, ele, o Augusto e a Fátima, à pratica de satanismo. Qualquer tipo de ritual de ocultismo ou...

–Tà bom, mas sente aqui. – e o puxou para junto dela.

–Tanto medo assim, me faz esquecer a mulher independente que eu conheci...

–Cale a boca e me abrace.

Ele à satisfez.

–Isso. Assim está melhor. Eu sou ateia, mas me interessava por tudo que dizia respeito à ordens secretas, mas era apenas por curiosidade... só leituras de livros.

–Nunca adentre ao desconhecido apenas para satisfazer a sua curiosidade. –a alertou apertando o nariz dela. –Como se chamava o seu cunhado?

–Eu não me lembro.

–E onde ele morava?

–Eu fui casada por poucos meses. Quando eu dei a luz ao nosso filho ou filha, não sei, ele foi morto. Mas, como eu te falei, eu sofria de amnésia durante todo o tempo que nós vivemos juntos.

–Foi a primeira vez que esse chapeludo veio te assombrar?

–Eu estou... estava quase me relacionando com outro homem. A gente só se vê duas vezes por semana.

Ângelo à desabraçou e se levantou para despedir dela.

–Você quer que eu passe a noite aqui com você, ou prefere ir para a minha casa?

–Não seria bom que você ficasse aqui, e nem que as pessoas vissem você saindo daqui amanhã. Eu vou para a sua casa. Lá tem duas mulheres como eu.

–Ambas medrosas. Và se arrumar, e vamos.

Darlene não se vestiu de modo saliente, para ir para a casa dele. Vestiu calça Jeans e um suéter creme com listras verticais pretas. Nos cabelos uma tiara firmando-os no alto da cabeça deixando ainda mais em evidência o belo rosto quadrado dela sem maquiagem.

–Sente-se Darlene. –disse ele arredando o violão para o canto do sofá. –Sinta-se em sua casa.

–Oh Ângelo, me desculpe por te incomodar, é que não dà mais para eu continuar em minha casa sozinha.

–O que mais te aflige, ou te amedronta? –perguntou se sentando.

Ela se sentou colocando a nécessaire no colo.

–Além do visitante maldito, a solidão. Eu não quero mais viver sozinha para o resto da vida. –falou decida, cruzando os braços em cima da bolsa.

–Darlene, eu tenho dificuldades me manter uma relação de amizade com uma mulher igual à você. E, francamente, jà está sendo difícil o meu convívio com duas mulheres vivendo comigo. Eu jà estou perdendo o foco daquilo que eu procuro aqui em São Paulo. – disse para testar a pessoa dela e saber quais eram as suas reais intenções.

–A Fátima e Débora te provocam sensações difíceis de segurar?

–Bem, eu sou homem...

–Não tem problema. Eu serei para você o que você quiser. Sua amiga, empregada, qualquer coisa, mas prometo que eu não vou te assediar. Eu jamais faria isso. E se você me disser de qual das duas você gosta, ou se elas gostam de você, eu prometo que não chegarei perto de você nem para receber ordens. Elas podem ser as minhas mandantes em seu lugar. –falando ràpido e sem gesticular com as mãos e nem desviar o olhar do olhar dele.

Para Ângelo o elemento representativo da natureza de Darlene era terra. Determinada, e firme em suas convicções. Personalidade forte, sem rodeios, definida como o baixo.

–Não há necessidade para tanto. Você não leva jeito para empregada...

–Ângelo, eu tinha emprego e fui demitida por ter falhado dois dias nessa semana. Eu posso ser sua empregada doméstica. Por favor, Ângelo, eu vou perder a minha casa...

–Como assim, Darlene, que história é essa? –perguntou indo se sentar do lado dela.

–Quando o meu marido morreu, outro homem quis se casar comigo. Mas, ele dizia que eu tinha uma filha. Ele levou o dinheiro do seguro que eu recebi pela morte do meu finado marido e ainda deixou a minha casa hipotecada. A seguradora me enviou um comunicado hoje. Eu fui conferir. Ele conseguiu um alto valor em dinheiro por ela. Sem emprego eu não vou conseguir pagar a dívida. São quase seis anos de atraso. –continuava falando sem alteração no tom de voz e expressão de fala.

–Mas que canalha ele era, hem!

–Eu sempre pensei que ele tivesse morrido, mas agora eu acho que ele devia ter uma sem vergonha que morava com ele. Por isso desapareceu.

–Mesmo assim você parece que não está nem aí...

–Eu fui rica e fiquei pobre. Não adianta chorar o leite derramado. Eu aprendi com os meus gatos.

–Concordo. Você é guerreira. Sinta-se em sua casa.

Ela se levantou disposta, mas sem esboçar reação de agradecimento.

–O que você quer que eu faça agora à noite?

–Nada. Por mim, você apenas abrilhantarà essa casa com a sua presença.

–O Paulo me diz que eu sou uma joia mal polida.

–Paulo... uma jóia mal polida... sei. –disse Ângelo meneando a cabeça.

–Eu posso dormir com a Débora ou com a Fátima?

–Você pode ficar no meu quarto, eu durmo no sofá.

Ele esperava vê-la transpirando medo, mas se surpreendeu com a aparência dela. Nada sedutora, somente sua notàvel beleza ao natural.

Darlene o chamou para uma conversa em particular no quarto.

-A Fátima te contou que o Augusto fez sexo comigo após uma festa?

-Não. Como foi que aconteceu?

-Ele me levou para uma casa estranha com curiosidade de saber o que eu havia contado à Otero sobre ele. Eu disse que eu e meu esposo não tínhamos conversado sobre ele. Eu, eu acho que devo ter bebido demais na festa e, de repente, nós dois estávamos sem roupas na cama.

-Darlene, você não estranhou ele fazendo sexo com você como se ele fosse seu marido? E por qual motivo ele te levou para uma casa estranha?

-Não sei Ângelo.

Ele à consolou com um abraço terno deslizando no sentindo vertical nas mãos nas costas dela.

-Você esteve com o Augusto antes de Otero seu marido, Norato e Ferreira serem mortos. Diz pra mim que você não tem nada à ver com as mortes de todos eles. – pediu ainda abraçado à ela.

-Melhor nós não falarmos sobre isso agora. Eu e Otero não vivíamos como à marido e mulher. Mas, eu não confiava no Augusto. Como eu jà falei, eu não estava sóbria. Só me lembro de que ele me pediu para eu arrumar alguma coisa no quarto dele e, ele trancou a porta do quarto. Daí aconteceu.

–Por que você deixou que ele trancasse a porta do quarto?

-Não sei... quando eu dei por mim, o Augusto estava saindo de cima de mim.

-E, você engravidou na primeira e única vez que ele te violentou?

-Eu não sei se me engravidei de um filho dele, mas se engravidei, não foi dessa única vez. Otero me dizia que o Augusto era meu amante dele à algum tempo.

-Não tenha medo Darlene.

Ele foi à cozinha e trouxe um copo d àgua e comprimidos e entregou à ela.

-Ângelo. - ela quase gritou. –O Augusto me deu alguma coisa pra eu beber, e... daí, eu só me lembro que ele estava em cima de mim, sobre a cama no quarto.

-Bem, Darlene, o que eu posso fazer pra aliviar a sua preocupação?

-Eu sei que não há necessidade de te dizer. Eu estou gostando de você. Você consegue me entender?

-Eu entendo o que você está passando.

Ela o abraçou novamente e por alguns segundos sentiu-se segura sendo abraçada por ele. Ele fechou os olhos e parecia penetrar no consciente dela.

-Você teve um filho que talvez não fosse do augusto?

-Eu não sei o que acontecia comigo e com ele antes daquela festa, se é isso que você quer saber.

Ângelo cruzou os braços e a olhava com seriedade. Darlene se aproximou mais dele arrastando a cadeira para o lado.

-E você sabe do que aconteciam com Fátima, as demais mulheres e com os filhos delas e o seu marido.

Darlene sentia a cabeça à ponto de explodir de dor. À cada lampejo de memória as imagens projetadas em sua mente lhe trazia recordações antigas que ela em vão tentava comprimi-las dentro de seu cérebro.

-Não Ângelo, não me torture trazendo de volta essas lembranças. –implorou abraçando-o.  -O meu marido me julgava de ser infiel à ele, e que o filho que eu esperava era do Augusto. Eu nem me lembro de ter me engravidado...

O olhar penetrante dela nos olhos de Ângelo demonstrava que ela não sabia do que estaria falando, se falasse de algo relativo à todas as pessoas envolvidas naquela tragédia.

-Eu preciso que você me conte tudo que você sabe. Por favor!

-Duas pessoas me levavam para dar à luz na casa de Fátima. Quando eu desci do carro, de repente, tudo ficou escuro em minha cabeça. Quando eu acordei, eu não sei o que foi que aconteceu...

-Tudo bem. Tome o remédio para a sua dor de cabeça.

Extremamente descontrolada, Darlene engoliu dois comprimidos de uma só vez. Em poucos segundos ela sentiu tudo girar ao seu redor, e não encontrando forças para continuar em pé ela se deixou cair sobre a cama.







*


A vizinha Dasdores o esperava no portão. Ela tinha um sorriso contente e, em seus olhos transparecia toda sua alegria por estar recebendo Ângelo na casa dela. O vestido de algodão na cor creme, comprido, largo e sem divisor de cintura, sugeria uma roupa de dormir de uma senhora gorda e sedentària.  Mas, o aspecto dela era de quem acordara em uma manhã de domingo de sol radiante e aproveitaria o dia para ir um piquenique.

–Vem. Eu estava te esperando para o almoço. –disse, estendendo a mão à ele, que a segurou com suavidade. Mas, a velhinha vigorosa pressionou a mão dele e o puxou para conduzi-lo ligeiro para dentro da casa.

No alpendre Ângelo notou a falta dos utensílios que eram usados por Dasdores. Não havia mais o recipiente com a terra, a vela e o copo com àgua. Mas estava ali um ventilador desligado. As plantas não tinham a mesma vivacidade. As flores e rosas pendiam sôfregas, murchas.

–Não vai me dar um abraço antes de entrar na minha casa?

Ele à abraçou.

“Amiguinho. Um aperto de mão revela o que a pessoa espera de você. Um abraço revela o que ela deseja de você. Um beijo revela as suas reais intenções.” Ele recordou de seu Cândido lhe dizendo.

–Agora entre, acanhadinho bonito. –disse ela ganhando a sala antes dele.

Ângelo arrastou cada pé por três vezes no tapete de retalhos coloridos na entrada.

–A casa não está tão limpa assim.

Ele olhou para o piso encerado vermelho e constatou que a senhorinha mentiu, ou fora simplesmente modesta com a objeção.

A mesa quadrada estava posta com arroz, feijão, frango ao molho, macarronado, angu de milho e salada maionese. Cardàpio domingueiro, muito simples, porém o cheiro da comida era apetitoso. Para Ângelo existia algo de familiar entre os que comeriam a refeição. Oito pratos, talheres e lenços estavam postos na mesa com quatro pares de cadeiras de assentos e encostos almofadados, com revestimento sintético preto, tacheadas nas laterais e armação de madeira marrom. A copa não era tão ampla, mas era ocupada apenas pela mesa com as cadeiras e um armàrio de cerejeira com portas em madeira e vidro.

–A senhora me permite fazer uma pergunta. –ele perguntou antes de se sentar.

Dasdores puxou uma das duas cadeiras que formavam um par,

–Não se acanhe. Sente-se e pergunte. – disse ela tocando os ombros dele, fazendo-o se sentar.

–Antes, muito obrigado pela hospitalidade.

–De nada. –disse e foi se sentar na outra extremidade da mesa. –Estou pronta.

–A senhora receberà alguns casais de amigos, alguém íntimo da senhora, e um parente para juntos comemorarem alguma data importante em suas vidas?

Dasdores sorriu desconfiada.

–Então, a Alicinha te contou, não foi sabidinho?

–Não, eu não a vi. Eu na estava em casa. Ela deixou o recado com a Fátima. Mas disse bem ràpido: é para o Ângelo ir almoçar lá em casa hoje. Parece que ela não gosta da minha amiga.

–Alicinha é uma criança ainda, mas muito inteligente também, viu. Como você, que acertou sobre os meus convidados, são casais de amigos e o meu irmão. Como você soube?

–Os lenços do lado esquerdo da mesa foram dobrados de forma triangular. O par de lenços do lado direito recebeu dobras quadradas. Fátima disse que a senhora não teve filhos...

–Mas tenho a Alicinha que eu à considero minha neta, viu. Eu a adotarei, com direito à testemunhas... mas continue.

–Isso complementa o meu raciocínio. Os lenços de quatro quinas indicam que nas duas cadeiras se sentarão os padrinhos da Alice. Os de três pontas serão usados pelas madrinhas. Do lado da senhora eles formam losangos, para uso dos avós, ou seja, a senhora e seu irmão, jà que a senhora é viúva. Daqui do meu lado, um dos lenços está enrolado feito massa de biscoito cônico de ponta bem fina. Esse alguém não jà teria terminado com a refeição, porque a comida não foi mexida ainda. O outro lenço, suas quatro pontas se encontram no meio do lenço. Mas, por que a ponta do lenço cônico está entremetida no centro entre as quatro pontas desse outro lenço? Se eu me sentei aqui, quem se sentarà do meu lado?

A senhorinha ficou com todo o rosto umedecido de suor frio, e levou a mão direita, – nessa hora jà trêmula –, à testa, como se uma febre repentina a estivesse ruborizando e a deixando febril.

–A senhora poderia me responder, dona Dasdores?

–Besteira, filho. Quem se sentaria desse lado seríamos eu e o meu cunhado. Desde quando o meu marido se foi, ele vive tentando ocupar o lugar dele. Olha, eu tenho o amor da minha vida, e ainda espero um dia estar com ele, viu.

–O que houve com ele?

–Ele lutava ferrenhamente contra a opressão militar. Quando o governo soube de quem era a ideologia que punha em risco a estabilidade do sistema governamental, por fazer com que a multidão fosse às ruas protestando contra a ditadura, eles se viram na obrigação de mantê-lo em seu seus domínios.

–Então ele foi preso pelos ditadores?

–O meu cunhado era coronel do exército e propôs à ele um acordo para livrà-lo da cadeia. Após o golpe militar ele se foi, e, eu ainda espero vê-lo chegando.

–É lamentàvel, mas, notícias ruins chegam logo e, jà se passaram vinte anos.

–Sim. Espere um pouco aí. –e se levantou.

Ângelo a observou chegando à geladeira azul com um forro muito alvo cobrindo a parte superior. Debaixo do tecido, ela introduziu a mão de dedos finos e longos para pegar uma folha de papel.

–Ele está vivo e me manda cartas. –disse ela desdobrando o papel. –Esa foi a última carta que ele me enviou. Você poderia ler para mim? –pediu passando à ele.

–Com todo prazer, senhora Dasdores. “Querida, meus dias têm sido tristes e vazios. As noites são solitàrias e frias. O que me motiva à continuar vivendo é a esperança de um dia poder estar ao seu lado, sentados em nossas cadeiras, no alpendre de nossa casa, de mãos dadas. Distante de você eu sou apenas mais um dos muitos que ocupam um espaço na terra. Sou mais um soldado desarmado no meio da guerra. Sou perambulante, viajante sem saber o destino de chegar. Sou erva do tempo que o vento me força à voar. Sou um andarilho seguindo leste à oeste, norte à sul. Sou metamorfose ambulante, como disse o Raul. Sobretudo, eu posso afirmar que a distância separa nossos corpos, mas une nossos corações. Do seu eterno esposo” – finalizou. –Ele não diz o nome. –Ângelo observou devolvendo à ela.

–Não. E no envelope não tem endereço de remetente e nem de destinatàrio. Eu sinto que ele ainda vive aqui em São Paulo, talvez usando outro nome. –e foi guardar a carta no mesmo lugar.

“Faz sentido. Pode ser que ele mesmo deposite as cartas na caixa de correios”

–E a Alice, onde ela está senhora Dasdores?

–Ela não virà almoçar aqui hoje. Os dois casais que virão são os padrinhos e madrinhas dela. Estamos programando uma surpresa para o aniversàrio dela. Ela gostou muito de você, e eu gostaria que você fosse o par dela na festa que nós faremos para ela.  Do seu lado, quem se sentarà é a minha irmã. Como eu te falei, a colocação dos lenços foi aleatória.

O telefone tocou e Dasdores foi à sala para atender a ligação. Olhando para o relógio na parede Ângelo conferiu que jà era exatamente uma hora da tarde. Não seria a fome que o incomodava, sim, a não presença dos demais convidados. Quando Dasdores regressou trouxe a notícia de que os convidados não viriam para o almoço.

–Bom, então eles perderão a oportunidade de comer uma comida caprichada no tempero. O cheiro está muito agravàvel. –disse ele se servindo. –A senhora parou de tomar ar no alpendre. –escolhendo o pedaço de frango ele falou.

–Não filhinho, eu ficava era me precavendo para não ser pega de surpresa pelo vento forte que, quando ele passa por aqui, deixa rastro de destruição e muita desordem na vida das pessoas, viu.

–Ah sei! –disse se sentando. –Por falar em desordem na vida das pessoas, e a coitadinha da Fátima, que coisa hem! – e abocanhou a primeira garfada.

–Sabe, menino, quando a gente se mistura à quem não presta, coisas ruins acontecem com a gente. O Augusto sempre foi uma pessoa sem prestígio e mulherengo. O pai de uma das muitas mulheres dele tinha pacto com o mal e devia sangue à ele. Augusto e as demais sofreram as conseqüências por ter se associado à Ordem mais diabólica que jà se teve notícia.

–Eu gosto desse tipo de conversa. Enquanto eu como, a senhora prossegue.

Depois de fazer o prato dela, Dasdores deu prosseguimento ao assunto.

–Augusto tinha riqueza e muitas mulheres, mas ele queria mais. Foi quando ele encontrou a filha de um Monsenhor da Ordem Mensageiros do tempo. O que aconteceu fazia parte do acerto de contas que ainda não foi quitada. E o preço dele é alto. Sangue, sangue e sangue.

–A senhora fala com tanta propriedade que, me faz pensar que a senhora tenha sido bem próxima dessas pessoas.

–Alguém havia profetizado os nascimentos de uma última criança prometida para o mês 06–06–1966, mas o profeta não chegou à ver as crianças porque ele desapareceu.

–O Padre também me contou essa história, mas eu jà à conhecia.

–A tragédia na casa da Fátima aconteceu em que mês e dia do ano?

–06–06–1966. –Ângelo respondeu depois engoli uma porçãozinha de angu. –Podemos considerar que tudo aquilo foram crenças na profecia de um charlatão dos anos trinta ou quarenta. E em 66 o patife à levou ao cumprimento.

–Não teria sido ele um charlatão. Monsenhor Olavo conheceu um jovem muito sàbio e calculou que ele seria o pai da primeira criança prometida. Monsenhor e mais três companheiros foram em busca do sàbio, e nunca mais eles foram vistos.  Surgiram boatos de que outros homens deram continuidade ao segmento em busca da criança iluminada.

–Dona Dasdores, não se pode enganar o mal?

–Não. Mas você pode anteceder os feitos dele e evitar que ele dê cabo de sua maldade. Desde que você seja uma pessoa do bem.

–Que assim sejamos. Mas, como se pode saber que ele virà receber as parcelas?

–Quando finda o prazo de um total de anos divisível por três, e cada um desses três períodos de tempo acontece uma tragédia com alguma pessoa do círculo dos incluídos no pacto. Com isso, o líder da Ordem Mensageiros do Tempo vai adquirindo mais riqueza.

–E qual é a soma total do tempo à ser dividido.

–Se eu soubesse tentaria evitar a mortandade que virà.

“Três maridos mortos à dezoito anos atrás. Seis mais seis são doze, com mais seis são dezoito. 6, 6, 6. Está expirando os dezoito anos. – ele pensou.”

–Quem são os integrantes dessa Ordem?

–Os remanescentes formam a sociedade do mal. O líder é o sumo deus que inspira aos outros, todas as bestialidades praticadas por eles. Os homens seduzem as mulheres para ter filhos com elas, ou conquistar os filhos delas para os oferecerem em sacrifícios satânicos. Se forem filhas, as mulheres seduzem os homens para com eles terem filhos, ou se faz de boa madrasta para os filhos desses homens, e depois de apossar-se de todos os bens deles, eles são mortos. Eles vão renovando o grupo de seguidores, mas permanece tudo em família. Mas, quem procede com a matança dos que são sacrificados é sempre o iluminado... e, ele também é sacrificado em seguida.

-Mas então, ele não poderia ser chamado de iluminado.

-Ora, rapazinho, depende muito do seu ponto de vista em relação aos mortos. Agora coma.

A história do profeta sempre fora um tanto quanto absurda na opinião de Ângelo. No entanto, em relação ao que mata e também morre, e de todos os que morrem, o infeliz assassino assassinado seria liquidado por um maldito mentor traidor desalmado em pleno exercício de crueldade.

–Bom apetite para mim e para a senhora. –disse ele repetindo o prato.

Depois do almoço veio a sobremesa de queijo fresco e doce de leite. E uma receita simples de doce de mamão, escrita com carinho, por Dasdores.  Ângelo guardou-a na carteira e deixou a casa.




                                                      *


Ângelo pousou os cotovelos na soleira da janela aberta deixando os antebraços fora do cômodo e entrelaçou os dedos das mãos.

Débora andava dentro da casa procurando uma porta para abrir, caminhando lentamente indo em direção ao corredor de acesso ao quarto de Ângelo. Seus movimentos eram cuidadosos, e seus passos calculados não emitiam qualquer som de pisadura ou ruídos de deslizes.

–Entre Débora. –disse ele abrindo de uma vez a porta e acendendo a luz.

Ela respirou profundo enquanto girava a chave na fechadura para trancar a porta.

–Eu perdi o sono e vim passar a noite conversando com você.

–Como está o senhor Amaro?

–Eu soube que ele anda meio deprimido por causa de sua vinda à São Paulo. Eu disse à ele que você só veio passar uns dias e voltaria em breve. Se você pretende ficar nessa cidade por muito tempo, eu te aconselho à não continuar morando com a Fátima. As moças não se aproximarão de você. Vamos embora para Goiânia para vivermos juntos, só eu e você. –disse acarinhando os cabelos lisos e negros dele, que jà lhe cobriam a testa.

Ele se lembrou de todas as garotas que ele podia ter se apaixonado por uma delas, e ao pensar na frase: ter se apaixonado, ele percebeu que realmente o termo era este. Ele estava apaixonado pela desconhecida estudante de música. Mas havia tanto à ser resolvido na vida dele, e, não seria o momento ideal para embarcar numa paixão.

–Eu agradeço pelo conselho. Se você tivesse um filho ele teria uma ótima orientadora. –e voltou à olhar a escuridão da noite.

–Eu só espero encontrar a pessoa certa para eu poder me entregar à ele para nós constituirmos uma família juntos. –disse e o abraçou por tràs, colou o lado do rosto nas costas dele e alisava-lhe os braços. –Eu jà não sei se conseguirei continuar sendo evangélica. Pode ser que eu jà esteja cometendo pecado por estar estando gostando de um não crente.

Ângelo não dizia nada, mas deixava que ela levasse as mãos dela ao pescoço dele e passasse os lábios detràs de sua orelha. Irresistível tentação, sentir o hálito quente dela percorrendo por toda sua nuca e os seus seios fartos massageando suas costas.

–Eu posso te satisfazer e te fazer feliz. –ela prometia com voz aveludada e com as mãos dentro da camisa dele. Estava pronta para sofrer as conseqüências de uma possível consumação de um ato pecaminoso.

Ele a virou de frente para ele e segurou na cintura dela. Demonstrou estar seduzido por ela ao puxar o corpo dela de encontro ao dele. Débora arrancou-lhe a camisa e fez sua camisola deslizar lentamente para baixo até cair aos pés, proporcionando à ele a liberdade de poder saborear ao gosto dele a perfeição anatômica de seus peitos volumosos e tudo o mais que o corpo dela o apetecesse.

Então, Ângelo tinha à sua frente a mulher que Cândido lhe apresentou como sendo sua criadora. A pele dele ia se afogueando com o calor do corpo nu de Débora roçando ao dele. A ereção foi inevitàvel. Ela sentiu e se prontificou a fechar a janela às costas dele. O movimento dela inclinando-se sobre ele para unir as partes da janela levou os seios dela à contato com o rosto dele. Por fim, janela fechada, Débora sorriu marotamente e começou à baixar as calças dele.

–Débora. –disse ele segurando as mãos dela.

–O quê? –perguntou mordicando o queixo dele.

–Eu tenho uma fantasia para realizar na minha primeira noite de amor.

–Do jeito que você quiser eu quero.

–Jogue os cabelos para frente do seu corpo.

Sem pestanejar ela o obedeceu.

–Assim está bom? -ele vislumbrou o lençol capilar cobrindo os seios. –Ficou muito bom. –deu o aval e a abraçou, fazendo-a andar para tràs.

Quando Débora sentiu as panturrilhas de suas pernas tocando a lateral da cama, ela se sentou sorrindo afastando o telefone sem fio para o canto da cama e reiniciou à despi-lo.

–Espere, eu quero aproveitar cada minuto com você. Deite-se.

Imediatamente ela se deitou refestelada, ansiosa para tê-lo na cama e finalmente dar à ele os momentos mais prazerosos da vida dele, e se esbaldar de gozo com o garoto que ela nunca o considerou como à um filho, mas, o companheiro que ela sempre o quis para suas noites de núpcias.

Ele se deitou ainda vestido de moletom. Débora, ao natural como veio ao mundo o abraçou acochando o corpo dele ao dela e pondo a perna dele entre as dela. O contato à fez arquejar gemendo de prazer intenso. Naquela posição ela se remexia toda enquanto beijava todo o rosto dele, se deleitando com as sensações de orgasmos antes mesmo de sentir o membro dele tocar sua alcova jà à ponto de lambuzar moletom e coxa de Ângelo.

–Jura pra mim que você será só meu. –pediu quase em desespero e com as unhas riscando o couro cabeludo da cabeça dele.

–Então me chame de Augusto. –ele foi cruel, com intenção nem tanto.

Ela se ergueu e se sentou sobre a cama. Muito decepcionada tentava juntar os cabelo e formar com eles um ninho no topo da cabeça.

–Não consegue me chamar de Augusto. Você não o conheceu, Maria Débora?

–Ai Ângelo, porquê, porquê? –angustiada, ela bateu com as mãos nas coxas dela e deixou que o silêncio e a tristeza em seu olhar falassem daquilo que ela talvez não pudesse falar.

Depois de cobri-la com o lençol, Ângelo encostou-se a cabeceira da cama e por ali ficou olhando para ela se labutando para dar um nó nos cabelos, mas a tarefa era impossível e, Débora desistiu, suspirou e se sentou do lado dele.

–Você teve um filho com ele, não teve Débora?

–Não, não sei se tive. E se um dia eu fui mãe, não seria de um filho do Augusto.

–Conte-me sobre o que houve.

–Eu não sei o que dizer à você sobre o Augusto. O meu marido garantia que se eu o conhecesse, eu teria um caso com ele. Eu dizia que nunca dormiria com homem nenhum, que não fosse o meu esposo.

–Como o seu esposo se chamava?

–Otero. Mas, eu não me lembro do Augusto. Otero viajou para o Paranà, e, eu estava gràvida, mas quando ele voltou, ele me abandonou.

-Por quanto tempo você foi casada?

-Oito meses.

-Você estava esperando um bebê que não seria filho do Otero. Seria do Augusto?

-Não, Ângelo. Eu nunca tive contato com Fátima e nem com o Augusto.  Eu não sei o que aconteceu comigo durante o final da minha gravidez, e, numa noite eu acordei, na casa do senhor Amaro. Ele me disse que eu havia dado a luz à uma criança, mas alguém à levou. Depois eu fui morar em Goiânia.

-Eu, eu não posso me casar com você. O senhor Cândido não aprovaria...

-Tudo bem. –disse ela enxugando as lágrimas. –Nós continuamos morando juntos, como se eu fosse a sua criadora, e ninguém saberà que nós somos marido e mulher.

-Não. O senhor Amaro desconfia da gente. Ele contarà para o senhor Cândido e...

-Ele não vai atrapalhar nossos planos. –e o abraçou forte. –Eu quero ter você por inteiro e serei sua para sempre.

Ângelo a abraçou de modo à permitir que ela descansasse a cabeça no ombro dele, enquanto que ele escorria a mão nos cabelos dela tentando amenizar a dor e sofrimento que, ele próprio a submeteu outra vez. Com cuidado, à pôs sentada no assento e foi à delegacia.

***

O delegado Valdir o escutava e considerava as colocações.

-Me acompanhe até à minha sala. Eu quero beber um pouco do café. –Valdir o convidou.

-Eu preciso fazer algumas perguntas à você sobre os infelizes mortos naquela noite.

Passaram discretamente pelas pessoas e policiais que ali estavam.

-Fátima perdeu o marido num acidente de carro, que colidiu em uma àrvore e se incendiou. Havia mais três homens com Augusto no bar antes do acidente.

-A autópsia revelou que o Augusto fazia uso de substância alucinógena. Ele havia usado droga e dirigia imprudentemente. Homens amigos dele também morreram.

-Os laudos poderiam ter sido forjados. Fátima estava em trabalho de parto na casa dela, e mais mulher estavam lá para também darem à luz à seus filhos. Só que três mulheres que ficaram viúvas no passado, acabaram ficando sem nem ao menos ter onde morar.

-Menos mal, elas estão vivas.

-Mas, outras três mulheres morreram de mortes estranhas num ritual macabro. O ritual aconteceu porque as vítimas não tinham noção do que estava acontecendo naquele momento. -Ângelo sacou um frasco do bolso. -Conhece essa droga?

-Extrapola menina. Os laboratórios desconhecem a fabricação dela.

-Mas os contrabandistas ainda às fabricam.

-Nós do departamento sabemos que ela é muito usada por prostitutas. -pegou o frasco, fez um sinal nele e o devolveu à Ângelo.

-Foi essa substância que eu encontrei na casa da Fátima.

-Pode ser que fosse esta mesma droga que Augusto dava às mulheres para elas terem relações sexuais com ele.

-Ou vice e versa, delegado. –Ângelo observou com segurança em o que ele dizia.

-Mesmo que você esteja coberto de razão, jà se passaram dezessete anos, e não se pode levà-las à prisão usando essa droga como elemento de prova. Ainda que eu soubesse quem são os suspeitos, não se pode prender alguém que cometeu assassinatos à dezessete anos atrás, tendo contra ele apenas um frasco de droga bastante comum para prostitutas e travestis de hoje em dia. Mas, se você conseguir fazer com que elas caiam na armadilha...

Um cabo entrou no gabinete, em busca de uma xícara de café. O delegado tratou logo de entregar a garrafa ao homem de idade avançada que o agradeceu com um movimento de cabeça e saía com a garrafa, mas Ângelo lhe entregou uma xícara esmaltada. Ele sorriu exibindo os dentes, os quais uma presa era de ouro.

-Valdir, eu só quero que você entenda o seguinte: um sacrifício satânico foi oferecido naquela casa. Inocentes foram sacrificados. As pessoas que realizaram o tal sacrifício, começaram à morrer, começando pelo pai da amiga da sua enteada e o pai dela também. Isso, porque foi descoberto que ela não é filha do Augusto.

-Você está querendo insinuar que quem o matou o fez por saber que as meninas não eram netas de Cândido Plates Rivera, pai do Augusto?

-Corretamente. Supostamente os envolvidos esperavam que a moça fosse a herdeira. E você mesmo me contou que ex-marido da sua namorada foi morto assassinado. Com certeza não houve uma investigação minuciosa nesse homicídio também.

-Espere aí. –disse Valdir engolindo o último gole de café. -Assim você está querendo afirmar que a Arlete também teve um caso com o Augusto. Ela nem o conheceu.

-E é justamente isso que me intriga. Se as mulheres que estavam na casa da Fátima naquela hora, estão vivas, outras três mulheres morreram em lugar delas.

Valdir ficou pensativo. A mente dele estava confusa. Ângelo embaralhava as ideias dele.

-O Augusto vivia com Fátima e mantinha casos com mais mulheres, sem que nenhuma delas desconfiasse da situação de poligamia que elas estavam envolvidas. Eram freqüentes os encontros dele com as amantes. Às vezes, ele às recebia na casa dele, outras vezes, ele às visitava em suas casas. Os maridos delas providenciavam para que elas pudessem ter relações sexuais com ele. Antes de cada encontro, as mulheres eram drogadas por seus maridos.

-Correto, delegado. Fátima me contou que entre as três que morreram não estava a empregada dela...

Valdir levou as mãos à cabeça e depois às desceu com força à mesa.

-Droga. Arlete teve uma empregada indecente. O ex-marido dela à estava traindo com a falsa doméstica.

-Por que você esconde de mim o nome da sua enteada?

-Eu vou te apresentar à ela. Só me prometa que você não envolverà a mãe dela e nem à ela. Arlete ainda não se recuperou do trauma.

-Eu jamais faria uma coisa dessas. Fique tranqüilo.

Valdir permaneceu sentado, e, com a cabeça em parafusos.

-O acidente que matou o Augusto foi premeditado pelos maridos das mulheres amantes dele. Mas, eles também morreram na mesma noite, de mortes supostamente acidentais. Tempos depois, três pessoas receberam as apólices dos seguros dos três parentes mortos. Otero, Norato e Ferreira, morreram antes ou depois de elas irem dar a luz aos bebês na casa da Fátima?

Valdir pensou um pouco para responder à Ângelo.

-Ela disse que começou à sentir fortes contrações e se agachou ao pé do portão. Dali para frente, ela não se lembrava de mais nada. Quando Débora pôde relatar o ocorrido, jà havia se passado três dias. –disse o delegado.

-E o que foi que ela contou?

-Ela disse que o Norato a recomendou ir dormir cedo porque ele não sabia à que horas voltaria. Fomos informados de que algo estranho teria acontecido em uma casa. Homens foram para lá e de lá não saíram. Quando chegamos à casa, ele jà estava morto, com um punhal cravado no peito, que perfurou até o sofá.

-E como foi que o marido da Darlene morreu?

-Da mesma forma, no mesmo lugar.

-Ferreira teve o mesmo fim?

O delegado assentiu.

-Tendo como certo de que você não poderia ser considerado culpado pelas mortes daqueles vermes, eu sugiro que você deixe essa cidade e và viver a sua vida.

-Estou indo, delegado.

Um abraço, desejos de boas sortes e um até mais vê. Para Ângelo seria coincidência demais ter sido usado as mesmas armas nos assassinatos cometidos por homicidas diferentes. Concluiu que todos foram mortos por um mesmo matador.

Estava ficando perigosa aquela busca e, ele não temia por sua vida, pois para ele, viver dezessete ou cem anos não faria diferença. Mas, Fátima, Débora e Darlene não precisavam correr o risco de serem mortas. As mortes misteriosas não teriam posto um ponto final naquele caso de tragédias e mortes de inocentes do passado e do presente, Ângelo tinha plena convicção desse fato. Todavia, ele deixaria São Paulo sem a absoluta certeza de que nenhuma das três mulheres seria a mãe dele ou não, mas do fundo de seu coração ele às amava e às queria junto dele por toda vida. Rápido. Tudo na vida de Ângelo era intenso e rápido.
















































                                                            *


                                                 De volta á Goiânia


Assim que Ângelo voltou para Goiânia, ele foi ter com Amaro e pediu à ele que usasse de benevolência para com suas novas companheiras de lar. Não haveria qualquer dificuldade que impedisse Amaro de amparar as mulheres. Ele sempre desfrutou de grande influência no meio jurídico e entre os magistrados dos órgãos tutelares. Amaro alegou que ainda precisava acertar-se de alguns assuntos referentes aos principais envolvidos naquela tragédia. No entanto, assegurou à Ângelo o direito de proceder como ele bem entendesse em relação às mulheres. Amaro fora irredutível ao tomar a decisão de não ter as custódias das mulheres, diante da prerrogativa de que elas deviam ficar desamparadas e viverem como à filhas bastardas que nunca conheceram seus pais, e, sobretudo, conviverem com o estigma das mães malditas.

Quando o ônibus parou no ponto, ele desembarcou e foi à galeria de artes.

Com um cortês gesto de mão ele o convidou à andar pelo salão.

–Os seres humanos expunham seus segredos mais ocultos através da arte. Você sabe por que eles agiam assim, Ângelo?

–Era a forma de eles revelarem seus medos, paixões e anseios somente àqueles que possuíam discernimento e sensibilidade para os compreenderem.

–Você é magnífico. –disse soltando o ombro do sábio garoto. –A arte nunca deixará de existir. Os artistas sempre estarão entre nós. Os segredos se ocultarão ainda mais dando lugar à mentiras e enganos.

Ângelo considerou a observação. Tinha a ver com a própria história de vida dele, desconhecida por ele, mas talvez conhecida por Amaro e por todos da Ordem.

–O senhor tem algo a me contar sobre tudo que realmente ocorreu aquelas mulheres em São Paulo?

–Há tempo para tudo, meu rapaz. –disse Amaro fazendo com a mão um sinal de silêncio.

Alguns passos dados com suavidade para não perturbar os que estavam ali, os dois pararam de frente à três monumentos onde alguns visitantes os contemplavam de modo mais admirado que curioso. Ângelo sabia que nem todos ali compreendiam o significado de três estátuas de bronze, mas, ele compreendia o que era representado pelas esculturas de homens. Amaro tocou no ombro de Ângelo fazendo-o conter as palavras.

–Você se tornou um rapaz de alto nível. Será que eu tive alguma participação em seu desenvolvimento como ser humano exemplar?

–Sim senhor, e obrigado por todo apoio que o senhor me deu. –agradeceu e silenciou-se para recordar de tudo que ele aprendeu com seu mentor Cândido, para então ele chegar até ali diante dos três monumentos que representavam juntos, um ser humano completo em sua essência.

–Você sabe o que significa o homem com a tocha na mão? –Amaro perguntou.

–Representa o ser humano esportista. É sempre bom praticar esportes.

–Faz bem para a saúde do corpo. –Amaro afirmou. –E este com uma pena–caneta na mão?

–Representa a inteligência daqueles que buscam a evolução intelectual.

–Isto é fundamental para tornar-nos mais inteligentes. –falou o que era óbvio.

–Mas à que isso nos leva, senhor Amaro?

–Tudo bem, eu serei mais claro. Durante um tempo você foi competitivo nos campinhos de futebol, mas não sabia que uma bola de couro seria mais pesada e de menos maciez. Ao chutá-la e machucar o seu dedo do pé, você adquiriu habilidade para dominá-la e chutá-la de modo correto. Ao ler o livro você adquiriu inteligência para compreender os temas da vida.

Ângelo percebeu que dois homens retiravam do local uma terceira estátua de um homem com a cabeça baixa, olhos fechados e as mãos cruzadas sobre o coração. Lembrou–se do boneco dado à ele em seu aniversário de doze anos.

–Eu acho que o senhor Cândido deixou ao senhor a missão de me explicar que devemos buscar ainda mais aquilo que aquela terceira estátua representa. –apontou para o lado direito na outra extremidade da sala.

–Eu não consigo vê-la, filho.

–Perdão, senhor Amaro. –pediu brandamente. – É que o senhor tateava o rosto da estátua ali agora à pouco. Era o homem de cabeça baixa.

–Pode ser que não a tenha examinado o suficiente para compreender o significado.

–Eu sei que o senhor perdeu a visão outra vez. Mas sua audição está em perfeitas condições. Só me responda uma pergunta: o senhor Cândido me deserdou?

Amaro tentou não demonstrar-se surpreendido diante da pergunta, mas não daria para disfarçar de modo que Ângelo não o decifrasse.

–Entenda, filho, você se envolveu com as mulheres que foram as causadoras do maior de desgosto que Cândido pôde experimentar nessa vida. Ele deu à você tudo que qualquer garoto queria ter. Mas, você não soube administrar bem os seus privilégios.

–O senhor Cândido sempre desejou ter um neto. Acontece que, aquelas mulheres podiam ter um filho com o Augusto. Elas podem ter tido filhas, não filhos, e, por isso não foram aceitas.

–Não é isso. Ele tinha o Augusto. No tocante à herdeiro, sendo homem ou mulher, o Cândido assumirà e darà à ele ou ela todo o direito à seus bens. Eu estive no hospital e vi uma relação de pessoas do sexo feminino, codificada em símbolos da notação musical, para serem inclusos no testamento dele.

-Não era um testamento. Tratava-se de um escopo de liberação para quem se aventurasse à ir em busca dos elementos que formam o tesouro do rei.

-E você se fez voluntàrio à essa busca. No entanto, o que você encontrou foram algumas mulheres que simbolizam as desgraças do rei.

Ângelo respirou olhando para a pintura em relevo da galeria de artes.

–Eu não posso dizer acertadamente que elas sejam mães de filhos do Augusto. O senhor esteve na casa naquela noite. O senhor Cândido mataria as próprias mães de netos ou netas dele?

–Cândido me ligou avisando do que aconteceria lá naquela casa. Quando eu cheguei, alguém tocava uma música fúnebre sendo executada por piano. Adormeci na passarela de acesso à entrada da casa. Quando acordei vi aquela mortandade toda. Faltou luz elétrica, mas, eu às toquei... três mulheres e três filhos, todos estavam mortos. Os pais morreram em outras circunstâncias.

–Obrigado por me dar tamanho esclarecimento, senhor Amaro. Mas, as mulheres que eu às trouxe comigo não podiam continuar desamparadas. Eu as mandei para outra cidade. E prometi que eu encontraria os filhos ou filhas delas.

-Eu comunicarei à outros de nós e terei uma resposta sobre essa questão. Mas jà adianto à você, que não se preocupe com as tais mulheres.

-Obrigado, senhor Amaro.

Ele saía do salão de exposições quando Valdir o viu. O delegado deu duas tapinhas nos ombros de dois homens que falavam com ele e foi ao encontro de Ângelo.

-Ângelo. –disse ele ao se aproximar.

Os dois se cumprimentaram de modo desordenado no aperto de mãos.

-Desculpe-me Valdir, eu não sabia que você havia vindo para Goiânia.

-Eu me apeguei demais à sua causa e não posso deixar você sozinho nessa.

-Então saiba que o tempo urge, e eu tenho muito que fazer ainda.


Maura chegou com jeito de executiva de multinacional com cabelos presos formando um enorme rabo de cavalo e óculos de lentes de cristal bem transparente, mais para dar-lhe um ar de mulher de negócios do que para enxergar melhor. Ângelo e ela foram para uma mesa afastada do movimento da lanchonete.

–Bem Ângelo, no que posso te ajudar? –ela perguntou ao se sentar.

–Bom, primeiro, eu quero te agradecer por ter vindo ao meu encontro.

–O meu gerente deu boas referências suas. –disse tirando os óculos.

–Ele é um bom homem. Se você não se importa que eu mude um pouco o rumo de nossa conversa, eu gostaria de dizer que você fica muito bem, com, ou sem os óculos.

–Não, não me importo, e obrigada. –ela sorriu, e emudeceu.

–Você me faz lembrar a Vanessa, uma colega de trabalho...

–Ela também usa óculos?

–Não, mas é tão bela quanto você. –disse encarando-a.

–Você é sempre assim agradável, ou será que sou eu quem não me vejo assim tão bela? –perguntou pegando os óculos.

–Sem respostas. Vamos ao que interessa. –disse se ajeitando na cadeira.

–Como quiser. Estou à sua disposição. –disse ela pondo os óculos.

Maura não parecia se importar que a conversa entre os dois tivesse tomado outro rumo, pois, do modo que Ângelo falou, fez com que ela esquecesse que os dois estavam ali para tratar de assuntos sobre apólices de seguros.

–Eu quero aderir às apólices de seguro de vida. Sou um rapaz que não têm parentes e, eu gostaria de pagar seguros de vida para mim e para algumas pessoas que são muito importantes para mim.

–Eu posso dar início às adesões. Esse é o meu ramo de trabalho.

–Eu percebo que você é bem influente.

–Tento estar à frente dos concorrentes? –falou tirando os óculos.

–Estou disposto à pagar alto pela segurança dessas pessoas. Como eu jà falei, elas são muito preciosas para mim.

–Bom, a cobertura terà que ser coletiva por se tratar de algumas pessoas. Dependendo do número de segurados, e do tipo do seguro.

–Eu quero um modo de seguro que cubra até a queda dos cabelos dessas pessoas se for possível. Sem carência também. Anuidades quitadas de uma só vez. A quantia mensal que eu estou disposto a pagar é o dobro da normal.

Maura ficou espantada com a proposta dele.

–Será um custo muito alto para você, e provavelmente a seguradora não conseguirá indenizar o beneficiário no caso de algum sinistro. Desculpe-me por interrompê-lo, mas, quem serão os beneficiados?

–Eu não quero que tenha nomeações, por enquanto. Mas tudo bem, você já me esclareceu o bastante. Pegue esse bilhete e repense na minha proposta. Você poderá ganhar uma boa comissão se fecharmos um negócio com essa quantidade em dinheiro sendo paga de uma só vez.

Maura leu o escrito e percebeu que a cifra era muito alta.

–Ângelo, se um segurado por essa modalidade de seguro de vida vier à sofrer um arranhão sequer na pele, a seguradora irá à bancarrota.

–E, ela pode entrar com uma investigação minuciosa contra o causador da lesão no segurado?

–Sim. Esse procedimento é natural e legal a todas elas. E havendo provas de o que o sinistro aconteceu de modo doloso pelo algoz da vítima assegurada, ele terà que arcar com toda a verba indenizatória. E se o culpado por uma simples lesão ou homicídio, for o próprio beneficiado, então ele será preso, e não podendo pagar, os seus parentes em primeiro grau como pai ou mãe, terão que se responsabilizar no lugar dele.  Quanto à essa soma exorbitante, é preciso que a segurador tenha até fundo de capital estrangeiro. Tente o banco Safra, o Bradesco, o Itaú...

–Talvez o tipo de apólice que eu quero seja difícil de conseguir. Tudo bem. Que tal a gente mudar de conversa?

Antes de responder, ela desabotoou um botão da camisa de seda de cor cinza e ajeitou a calça preta de brim na cintura.

–Eu gostei desse lugar. Ambientes ao ar livre me deixa mais à vontade.

–Ainda mais num final de tarde como à esse. –Ângelo emendou.

Maura sentiu o vento manso que anunciava o cair da noite. Lentamente ela respirava sendo observada por Ângelo.

–É impressão minha, ou você é uma mulher romântica? –perguntou tocando a mão dela sobre a mesa.

–Quando estou apaixonada eu sou meio melosa.  –disse cruzando a mão dela com a dele.

E os dois ficaram se olhando como se trocassem carinhos por telepatia.

–A gente podia sair qualquer noite dessas, pra falar de nós juntos com os meus amigos e as suas amigas. –ele sugeriu. –Eu posso te ligar? –perguntou.

Antes de responder, ela o beijou brevemente nos lábios.

–Vou esperar a sua ligação. –disse ela colocando os óculos e se levantando. –Vamos deixar pra outra oportunidade. –O beijou. –Só nós dois ok?

–Como queira. –disse Ângelo.

–Prometo à você que vou te ligar pra te dar uma informação.

–Sobre?

–A proposta que você me passou, eu a aceito, e você jà pode contar com a cobertura dos seguros à essas pessoas.  Eu te ligo para informar o lugar onde eu quero que você vá comigo.

–Já estou ansioso. Estarei resolvendo outros assuntos e, assim que eu tiver um tempo livre, entrarei em contato com você.

-Vou estar te esperando.
























                                                      *


Do alpendre de sua cassa, sentado em uma cadeira de fios tipo espaguete, Ângelo observava o vai e vem das pessoas que passavam na rua. Como sempre, acordara bem cedo e depois de preparar um café adoçado com rapadura que ele diz ser mais saudável que o açúcar branco de cana, pôs-se a tomá-lo usando sua caneca esmaltada como recipiente da bebida matinal. Antes desse momento contemplativo, ele jà havia varrido o quintal, estendido algumas peças de roupas no varal e colhido laranjas do seu frutífero pomar do seu quintal.

Ao se levantar da cama, olhou para o alto e agradeceu ao Deus de sua compreensão por mais um dia de vida concedido à ele. Algumas pessoas que passavam diziam bom dia, Ângelo apenas erguia a caneca em resposta a formalidade. Particularmente, para ele todo cumprimento formal é demonstração de vazio sentimental, mera cordialidade verbalizada. As pessoas que o cumprimentavam o conheciam bem, e algumas delas eram belas mocinhas na sua faixa de idade, dezessete anos. -cumprimento carregado de interesse para namoro.

Um garoto passou carregando outro na garupa da bicicleta, levando uma bola.  Fizeram-no lembrar-se dele com seu Kichutinho puído indo para o campinho de terra para jogar bola com seus amiguinhos. Depois do futebol ele estudava música com o senhor Cândido. O cumprimento de Cândido, sim, tinha sentimento. O aperto de mão, o olhar nos olhos, o convite para sentar e conversar um pouco antes da aula, demonstrando interesse no bem estar do aluno.

Um casal de jovens parou em frente a sua calçada. Eles discutiam a relação. Pelo tom de voz e a expressão corporal, Ângelo percebeu que o fim do casamento era inevitàvel. Duas vidas que se separavam pelo simples fato de a mulher não concordar em morar na casa dos sogros, o fez tentar lembrar-se de seus pais, mas ele não os conheceu. Nos seus dezessete anos de idade, ele jà tinha visto muitos amigos que vinham e ficavam um pouco de tempo e depois partiam, e outros que vinham e não chegavam à ficar um pouco de tempo e também partiam. Ele se levantou da cadeira e desceu lentamente a avenida e foi visitar o velho barracão. Tudo estava do mesmo jeito. O velho e solitàrio sofá de assento duplo no canto do que ele chamava de sala. A cama de campanha com papelão servidão de colchão, do lado do guarda-roupa manco e sem porta. Sentou no piso queimado à cimento natural e chorou um pranto doloroso ao se lembrar de sua infância solitària, suas noites clareadas à luz de vela, e, às vezes substituída pelos piscantes vaga-lumes que ele os aprisionava por alguns minutos dentro de um pote de vidro para com eles conversar e fazer perguntas sobre como os pequenos insetos adquiriram luz própria, e por que eles não se acendiam durante o dia. -Ah, eu era mais feliz quando me preocupava em fazer perguntas à àquilo que não podia me responder. – pensava com o queixo apoiado nos joelhos, sentado no piso, com as costas escoradas na parede de sua antiga moradia. Escorou a porta de madeirite do barracão e se foi cabisbaixo pela rua em direção ao ponto de ônibus.

O ônibus não estava muito lotado, e assim, sobravam alguns assentos vazios. Ao lado dele, uma senhora trazia uma criancinha em seu colo, de vez em quando o pequeno garotinho estorvava a leitura, mas Ângelo não se importava em ser interrompido pelo sapequinha que, vez e outra, ele ganhava tapinhas de sua mãe para deixar de ser espoleta.

Um homem atencioso e delicado passou o lenço em um assentou para sua mulher gestante se sentar. O esposo acariciava a barriga da mulher. Ela sorria, eles se abraçaram felizes. Ângelo também sorriu em silencio diante da cena digna de ser presenciada.

Uma estação de ràdio noticiava que uma garota de dezessete anos de idade fora encontrada desacordada e com sinais de abuso sexual, nas mediações do Bosque dos buritis. As autoridades investigavam se o crime tinha à ver com outros casos de mulheres que foram encontradas no mesmo estado que mocinha, e não descartavam a possibilidade de existir um criminoso em série que estivesse assombrando a grande Goiânia, jà que as outras vítimas não conseguiam se lembrar de quem as atacou pelo fato de elas terem sido dopadas com uma substância muito usadas por prostitutas e travestis.

O sol se punha no horizonte e seus últimos raios criavam uma espécie de aurora boreal que deixava as nuvens com cores variadas. Dentro do transporte coletivo, Ângelo seguia para o centro de Goiânia. Ele lia o livro escrito por Candido, no capítulo O findar das ilusões. Sua mente vagava nas lembranças do seu passado repleto de ilusões perdidas. Muitas vezes ele seguiu em busca da realização de seus sonhos, tendo como meta conquistà-los e poder ser feliz. A cada conquista, um novo ideal de vida. E assim ele foi descobrindo que não existiria fim a busca pela felicidade plena, e que ele apenas se iludia com suas conquistas, mas, que elas não eram suficientes para assegurar permanentemente seu estado de ser; feliz.

Os minutos passavam normalmente. Na opinião dele a noção de passagem de tempo dependia mais da ocasião do momento e do ponto de vista de cada um. Para ele, por exemplo, a passagem das horas, dias, meses e anos, não tinham muita diferença. Jà tinha habituado a rotina. De manhã: levantava cedo e ia para o trabalho. Ao voltar para casa, jantava, dormia, disciplinarmente, dia após dia. Agora ele via sua vida mudada desde que ele traçou seu novo objetivo de vida.

Tirou um tempo para estar com os amigos e se distrair um pouco.

A clientela observava a algazarra da Vanessa, a mais bonita, a mais alegre e feliz.

-Um, dois, três. Viva o Ângelo. Viva!

Os copos de cervejas foram erguidos, menos o do Ângelo que não bebe, e o de Jorge que ia ter que voltar para casa dirigindo.

–Eu tenho algo à dizer. –disse Vanessa. –O Ângelo voltou de São Paulo casado com três mulheres. Vamos beber pra comemorar esse feito.

–Aí... Que tal à gente cantar uma música?

“É isso aí Ângelo!” Todos concordaram.

–♪Não posso ficar nem mais um minuto sem você♪–Jorge começou.

♫Sinto muito amor mais não pode ser. Moro em jaçanã, se eu perder esse trem que sai agora às onze horas, só amanhã de manhã. ♫♫♫

Enquanto todos cantavam juntos, alguns que ocupavam outras mesas, também os seguiram cantando e batucando em suas mesas.

–Ângelo, deixa eu te perguntar um negócio. Chega aqui. –Jorge o chamou para um lado. –O que vai rolar aqui hoje?

–Se vire... Eu vou ficar na minha.

–È... Mas eu quero ficar na de qualquer uma dessas obras de artes. E eu vou tirar foto.

–Então chega junto e fotografe...

–Qual delas é a mais difícil? –perguntou para provar o potencial.

–Todas. Você trouxe o seu remédio?

-Trouxe.

-Entregue-me a sua carteira. Quando você está com dinheiro...

Jorge sacou a carteira do bolso.

-Pega, e vê se não gaste tudo, amante interesseira. –brincou ao entregar.

-É isso aí. –disse embolsando. -Faz o seguinte Jorge, vamos nos sentar antes que elas percebam que estamos falando delas.

Jorge acatou a ordem do Ângelo e os dois foram se sentar. O Vinícius jà estava de cochicho com uma delas.

Beleza. As únicas que eu sei os nomes delas são a Clarice e a que está falando ao ouvido do Ângelo. Ela é a Eduarda. Se eu vacilar, a única coisa que vai sobrar pra mim é a conta pra eu pagar. –Vinícius pensou.

Galerinha animada. Além de serem lindas. –Murilo pensou.

A Gisele nunca me falou que na empresa dela trabalhasse tanta mulher gostosa assim. E, eu não viria aqui com essas boazudas pra ficar dando bobeira. – Jorge pensou.

–Aí você de uniforme... –disse Jorge. –todas estavam de uniforme azul e preto. –Você aí de cabelo preso com uma caneta. Qual é o seu nome?

–Eunice.

–Será que eu posso me sentar ao seu lado?

–Claro, vem!

Ela aceitou abrindo espaço. Jorge ficou entre Eunice e Vinícius que parecia estar mostrando como era que ele mudava à marcha do carro.

Murilo achava que não iria perder a Eunice para o Jorge, mesmo sabendo que ele era filho do marido da patroa Gisele. Jorge jà havia se apresentado aos dois amigos paulistas, de Ângelo, dizendo à eles que ele era filho do patrão daquelas beldades.

–O que o Ângelo estava falando de mim pra você Jorge?

–Nada Eunice.

–Eu vi vocês dois conversando e olhando para mim.

–Eu acho que você se enganou. Nós estávamos olhando para todas vocês.

–Vamos nos sentar mais afastados. –Eunice arrastou a cadeira.

Jorge fez o mesmo.

Bebendo um gole de cerveja, Eunice olhava para Ângelo.

–Ele tà todo se achando. Deve ter te falado alguma coisa sobre eu e ele.

–Olha, eu não sei o que rolou entre vocês dois...

–Não rolou nada, mas ele acha que qualquer uma cai na conversa dele.  Ele deve estar paquerando a Gisele. Ela vivia chamando ele no escritório dela, e, nem vai descontar os dias que ele deixou de trabalhar. Com certeza os dois têm um caso. Eu não sou boba. –secou o copo e juntou os cabelos jogando-os para tràs.

Eunice não estava satisfeita. Jorge se corroia por dentro por saber que o seu amigo conquistador podia estar sacaneando o pai dele.  Nenhuma das funcionàrias tinha intimidade com ele e não fazia caso de que ele fosse o enteado da patroa Gisele.

–Você está a fim do Ângelo?

–Nunca. Eu não gosto de rapaz mulherengo. Aliàs, eu nem sei o que estou fazendo aqui.

–O Ângelo nunca arrumou garota nenhuma.

–Você é que pensa. –disse, com a borda do copo no lábio inferior e com o olhar fulminante em Ângelo. –Eu acho que eu vou embora.

–Mas tà legal a gente aqui conversando, se conhecendo, eu acho que você é que não está num astral legal.

–Desculpe, é que eu não suporto vê-lo dando em cima da Clarice. Ela está noiva, e ele conhece o noivo dela. Licença, eu preciso falar com o Murilo. A minha prima mora perto da casa dele. –Eunice se levantou para servir-se de mais cerveja e se sentou do lado do Murilo. Jorge ficaria na berlinda se ele não tivesse resolvido voltar para e mesa e ficar sentado na cadeira com o queixo na borda superior do assento e com os peitos grudados no encosto.

–Clarice, você vai se casar quando? –Ângelo perguntou.

–Ah Ângelo, nem sei viu! –respondeu colocando o copo na mesa. –Temos um ano e meio de noivado.

–Ele deve gostar muito de você...

–Ou então ele tà me enrolando.

–Eu acho que não Clarice... É que pra nós homens, a responsabilidade é muito grande, então a gente precisa se preparar.

–Jà namoramos à mais de três anos. Mas eu acho que você está certo. A gente se entende muito bem.

–Eu torço por vocês dois. O Agnaldo é um cara muito legal.

–Ele gostou de você... Só me deixou vir à esse bar porque eu falei pra ele que você viria com a gente.

Ângelo conheceu o noivo da Clarice antes da viagem dele à São Paulo, quando eles almoçavam no refeitório e, Agnaldo foi deixar um buquê de rosas para ela. O gesto fez com que Ângelo percebesse que ele era um noivo apaixonado e seguro do seu sentimento, pois Clarice palitava os dentes apoiando o cotovelo no ombro de Ângelo na ocasião, e Agnaldo foi muito gentil e educado, não demonstrando nenhuma suspeita e tratando–o como se jà fossem velhos conhecidos. Antes de sair disse à Ângelo que ele era um garoto bacana.

–Ângelo, aquele rapaz da mesa perto da porta está me olhando muito e piscando pra mim.

–Eu percebi. Por isso eu vim ficar perto de você.

–Então não saia de perto de mim, por favor, segura em minha mão.

–O que deu no Alceu, para ele resolver investir em São Paulo? –quis saber Ângelo.

–O que eu soube foi que o Alceu recebeu proposta de sociedade com um grande escritório de advocacia de lá.

–Aí, a Gisele pegaria carona. –disse Ângelo.

Vinícius e Isabela conversavam do outro lado da mesa.

–Eu sou estudante e estou aproveitando a greve pra me divertir um pouco com os meus amigos. E você, o que você faz, além de trabalhar? –quis saber Vinícius.

–Eu estou cursando contabilidade. –respondeu Isabela.

–Então hoje você não foi à faculdade.

–Eu estudo por correspondência...

–IUB. Instituto Universal Brasileiro, não é?

–Isso aí! Como você sabe?

–Essa forma de cursos faz o maior sucesso lá em Minas Gerais.

–Você é mineiro? –perguntou enchendo os copos dos dois.

–Sim. Nasci entre as serras de contagem minas gerais. Contagem.

–Dizem que goianos e mineiros são meios aparentados.

–Eu sou louco pra namorar uma goiana.

–Você jà deve ter namorado muitas, Vinícius!

–Eu sou meio tímido... Mas vem cá! Você jà namorou um mineirinho?

–Ainda não. –Isabela respondeu bebendo e olhando de modo suspeito para o rosto dele.

“Como diz o Ângelo. Tà no papo”. – Vinícius pensou.

Murilo, o mais malandro de todos os amigos de Ângelo, engambelava Eunice naquele momento.

–Me empresta a sua mão. –ele pediu, Eunice deu. –Dà vontade de não devolver. Suas unhas parecem porcelana de suíte presidencial. –falou.

Ela sorriu. Quando Murilo pegou na mão dela, os olhos do Jorge faiscaram.

–Vamos beber gatinhas! Essa chegou agora. Tà geladinha. –disse Vinícius, de mãos dadas com a Isabela.

–Um dia eu quero ir à sua casa. –Isabela se ofereceu enquanto Vinícius enchia os copos.

–É só dizer quando, que eu vou te buscar na empresa.

–Vocês me dêem licença... Eu acho que eu tô sobrando aqui. O Ângelo tà paquerando a Clarice? Eles estão de mãos dadas. –Vanessa quis saber pra não entrar em disputa com a amiga.

Mas Ângelo escutou a pergunta dela.

–Estamos não, Vanessa. Pode chegar. O bicudo jà foi embora.

Quando o rapaz viu Ângelo dando a mão à Clarice, ele pagou a conta e foi se embora.

–Ângelo, bebe um pouquinho! –Vanessa ofereceu pondo o copo dela na boca dele.

–Bebe você um pouco da minha Coca–Cola.

–Me dà o seu copo. –Vanessa pediu.

–Aí... Engole... agora vem cá... –Ângelo deu um selinho nos lábios dela. – Pronto. Sua boca fica mais saborosa sem o sabor de cerveja. Diz que não gostou que, eu te dou outro.

–Foi péssimo. –Vanessa o provocou.

–Vem cá, sua ingrata insaciàvel.

–Ih, ó o Ângelo beijando a Diana Prince. –Murilo notou o carinho.

–Deixe os dois pra lá. E quem te disse que a Vanessa é a mulher maravilha?

–Ela pode ser o que for. Mas pra mim, a maravilhosa aqui é você, Eunice.

–Acho bom mesmo.

Na empresa, Eunice cercava Ângelo por toda parte, e quando ela soube que ele acha a Vanessa o xodozinho dele, Eunice deu um tempo de pegar no pé dele. O negócio dela era entrar em disputa com outras mulheres, Mas teve que pensar duas vezes, pois, a Vanessa era um espetàculo de mulher. Mulher maravilha foi o apelido que Ângelo deu à ela.

–Ângelo, você tà tendo um relacionamento sério com a Fátima, Darlene e Débora?

–Sim Vanessa, a nossa amizade é coisa séria.

–Tomara que não passe disso.

O clima frio de junho em Goiânia juntamente com as cervejas geladas fazia com que as goianas procurassem um pouco de calor humano. Murilo tratou logo de se servir de agasalho para Eunice abraçando-a e friccionando a mão no braço dela. Ela levava o copo à boca dele. Ele se sentia um pobre rico estando com uma mulher tão bonita como Eunice. Vinícius e Isabela trocavam afagos um pouco mais íntimos. Beijos eram trocados pelos dois. Mineiro e goiana estavam se dando muito bem.

Jorge não se contentava em ficar entre Clarice e Eduarda sem poder aquecer–se com nenhuma delas.

–Aí galera, eu vou ter que ir embora. –anunciou se levantando.

–Qual é Jorge. Fique mais. –Ângelo pediu.

–Não, eu tô indo nessa. Tchau meninas.

–“Tchau Jorge” – em uma só voz.

Ângelo insistiu, e até as colegas pediram para que Jorge ficasse para mais uma rodada que estava longe de ser a saideira, mas ele não considerou os pedidos e se foi. Ângelo analisou o jeito de ele sair procurando a chave do carro, sem saber se andava ou se corria. Um cliente que ali estava, mas que não era amigo de nenhum deles e nem delas, olhou para Ângelo e assoprou. –a morenaça bonita deu um fora nele. –Ângelo apenas deu de ombros.

-Murilo, vai lá e busca mais uma. –disse Ângelo, e piscou para o amigo.

Murilo obedeceu de imediato.

-Eunice, alcance o Jorge e entregue a carteira dele. Faça-me esse favor...

Eunice não pensou duas vezes.

-Você fica me devendo essa. –disse ela pegando a carteira e foi-se.

Vanessa repousou a cabeça no ombro esquerdo de Ângelo e ficou girando o copo de Coca–Cola, vazio sobre a mesa.

–Vanessa. –disse Ângelo coçando o alto da cabeça dela. –Você faz parte do departamento financeiro...

–Faço. –disse ela prendendo a longa franja dos cabelos detràs da orelha.

–Então me diz qual foi a proposta que Alceu recebeu para ir para São Paulo.

–Ângelo, eu cuido da ordem financeira da empresa da Gisele, mas não posso te responder sobre a proposta recebida pelo Alceu, mas, o senhor Cândido solicitou a presença da Gisele na enfermaria do hospital e, eu tive que ir com ela. O senhor Cândido não falou muito. Apenas nos alertou sobre a busca pela riqueza, contando à nós um trecho de uma espécie de paràbola.

–Você consegue repeti-la para mim?

–Ao pé da letra não, mas o que eu entendi foi mais ou menos assim: “As pessoas se puseram à procurar o baú que representava à felicidade. Todos foram pelo caminho pisando e deixando pra tràs as pedras preciosas que eles encontravam por onde passavam, achando que o que importava era encontrar o baú que daria felicidade eterna. Muitos dos que saíram à procurar o baú e o encontraram não podiam apossar–se dele por causa do peso das inúmeras jóias que ele continha. Ao tentarem removê-lo, o baú caiu sobre eles e os soterraram.” Eu entendi que ele se referia à recompensa da ambição. –Vanessa comentou.

Ângelo massageou sua nuca e assoprou para o ar.

–O que foi Ângelo, você tem outra interpretação dessa história?

–Esse foi o primeiro manuscrito que o senhor Cândido mandou que eu o lesse até o fim. É uma longa história contendo mais pàginas do que à Bíblia. Mas é muito bela. Inspiradora e tràgica. Tenebrosa e também brilhante.

–É, deixe eu te falar. O Alceu soube que você tem ficado muito tempo no escritório dela, com ela. Teve discussão por telefone. Ela me contou que ele estava pensando que vocês dois tinham um caso.

–O Alceu me conhece e sabe que a Gisele é uma mulher honesta. Eu estive conversando com ela sim, no escritório dela, mas eu apenas à escuto contar suas desventuras e aconselho-a bastante.

–Ciúmes cegam as pessoas, Ângelo. A Gisele é muito bonita, e convenhamos, o Alceu...

–Você é linda, eu sou feio, mas não tenho ciúme de você. E você também não sente ciúme de mim.

–Mas, nós dois não somos namorados e nem casados, espertinho!

–Mas eu te amo assim mesmo. –disse, trazendo a cabeça de Vanessa de volta ao seu ombro.

-Ângelo, cadê a Eunice? -Murilo perguntou, com a garrafa de cerveja pairando sobre o tampo da mesa.

-Jà era. Você perdeu.

-Pode crer Ângelo. Eu saquei a parada. Você é foda.

-A propósito, Vanessa, você conhece os sócios do Alceu?

-Eu conheci os irmãos-sócios dele. A Gisele me falou, que se ela fosse a parteira que realizou os partos na mãe do Alceu, Mathias e Paulo, ela teria cortado as gargantas deles, ao invés do umbigo.

-Bobagem.

-Bobagem nada. Quando ela conheceu  o Alceu, ele tinha uma amante que trabalhava num consultório de pediatria na Vila Mariana em São Paulo.

-Vila Mariana... você me passa o endereço dela...

-Ela veio trabalhar e morar em Goiânia, ao lado do comitê do Alceu.











                                                           *


Com gentileza Valquíria puxou a cadeira para ele e o pediu para se sentar.

–Você aceita água? –perguntou abrindo a porta do frigobar.

–Não, muito obrigado.

–Água. –disse ela enchendo um copo descartável. –É o meu líquido preferido. –e bebeu.

Ela deu um sorriso para ele. Indo se sentar detrás de sua mesa ela tentava adivinhar o que Ângelo estaria querendo no escritório dela.

Ele não arriscaria um galanteio mesmo depois de vê-la se insinuando toda para ele daquele jeito e sabendo que ele não teria nada à perder.

O telefone no lado esquerdo da mesa tocou.

–Alô, é a doutora Valquíria...

-O seu filho quer que eu và aí para pegar dinheiro com a doutora e ir comprar um par de tênis...

-Não Vanuza.  Diz para ele que eu não tenho tempo para as amolações dele. Se eu tiver um tempo de sobra, eu comprarei esse par de tênis e levarei para ele... Tà, trinta e nove, eu sei.

Ângelo à ouvia falar, e decifrava a personalidade dela através do tom e extensão de voz em soprano dela. Ele à considerou, consistente e decidida, pelo menos com pessoas subalternas à ela.

–Era a empregada. –disse ela devolvendo o telefone ao gancho. –Em que eu posso te ajudar? –ao se sentar Valquíria perguntou, suavizando a expressão facial.

Ele a analisava, agora por contato visual. O olhar dele fez com que ela o encarasse com uma estranha sensação de estar sendo hipnotizada. Seus olhos verdes, – um detalhe à mais que garantia à ela o título de uma das empresàrias mais bonitas de Goiânia, – emitiram um brilho radiante, antes que as pàlpebras preguiçosamente os escondessem. Estava sentindo todo o corpo arrepiar, e movimentou a cabeça como se estivesse evitando entrar em um transe hipnótico. Então, Ângelo à diagnosticou uma mulher de temperamento regulável e modulável.

–Tudo que eu preciso saber não será difícil pra que você me revele.

Valquíria reagiu com naturalidade, se dispondo à dar à ele esclarecimentos de cunho profissional relativo à pediatria. Mas não pôde esconder que ela fora pega de surpresa diante da observação que ele fez: Não será difícil.

–Eu farei o que estiver ao meu alcance. –disse ela se mostrando pronta para a conversa.

–Eu não venho falar de mim, mas de uma mulher que você fez o acompanhamento pré–natal dela no ano1965 à1966 em São Paulo.

–Foram tantos. Eu era uma médica experiente em casos de gravidez de risco e situações delicadas para a gestante e que exigia perícias médicas no tratamento físico e psicológico das pacientes em questão. Seja mais específico.

–Fátima, a considerada maldita. Mas, você e ela eram amigas de longa data. Com ela eu não consegui obter relatos seguros do que houve naquela noite. Todas as lembranças dela eram esporádicas, e às vezes desconexas, mas, eu não às considerei paranoias pós-parto infeliz em uma noite fatídica.

À princípio, Valquíria se sentiu perplexa, mas logo uma emoção satisfatória tomou conta da mente dela e a deixou serenamente contente.

–Alegro-me muito em ter conhecido você e por ter você. –segurando as mãos dele sobre a mesa, ela disse, com voz carinhosa.  –Eu conheci Fátima um pouco antes de ela se casar e engravidar. Ela se casou ao concluir o ensino médio, eu fiz faculdade e me formei em ginecologista obstetra, à dois meses de completar 25 anos de idade.

–Parabéns à você por sua determinação. À propósito, Valquíria. –disse ele chegando mais perto da mesa. –Eu quero entender a razão de o filho ou filha dela ter nascido morto.

–Eu acompanhei todo o desenvolvimento de uma gravidez tranquila para ela e o bebê. Até hoje eu me pergunto e às vezes eu me responsabilizo pelo que aconteceu. Mas o quadro clínico de Fátima não apresentava debilidade nenhuma, infecções internas, ou qualquer tipo de mà formação fetal, nem deformação ou alteração na anatomia da bolsa amniótica. Na ordem fisiológica, ela passava por uma gestação normal.

–Você foi avisada de que ela estaria tendo a criança naquela hora da noite?

–Não. E não fui eu que realizei o parto dela. Ela jà estava na última semana de gravidez, disso eu tinha plena certeza. Só não compreendo o motivo pelo qual ela não ia mais à maternidade. Eu telefonava sempre, mas na casa dela ninguém atendia ao telefone. Pensei até que, ela jà havia dado a luz e se mudado de São Paulo. Aí então, tudo aconteceu... –havia consternação expressada no semblante dela.

–Não se culpe Valquíria. Na primeira noite dividindo o mesmo teto com ela, nós dois passamos a noite acordados. Fátima me falava à respeito da convivência entre ela, o falecido esposo e uma suposta mulher, a qual ela não sabia dizer se era alguém muito próxima aos dois ou se era uma amante do Augusto. Alguma vez Fátima comentou com você sobre isso?

–Ela tinha uma empregada que tinha alguns conhecimentos sobre gravidez, e também estava gràvida. Mas, não pense que você possa ser filho da Fátima ou da empregada.

Ângelo recordou de Amaro dizendo à ele que as crianças estavam mortas. Fátima disse ter ouvido os choros de crianças. Ocorreu na mente de Ângelo a possibilidade de que Fátima estaria sendo levado à acreditar em uma fantasia criada pelo consciente dela que não aceitava a realidade de ter perdido o filho. Porém, ela não disse nada sobre a gravidez de sua empregada.

–A doutora me falou que sabia que eu não sou o filho de Fátima. Por que tanta certeza?

–Porque você está vivo e é um rapaz de saúde perfeita.  –um sorriso se formou nos lábios dela. –Eu sabia que a concepção embrionária em Fátima não se deu através de relação sexual entre ela e Augusto.

–Talvez eu seja a criança que foi levada por alguém.

–Você não é filho da Fátima.

Ângelo à esquadrinhou.

–Obrigado por tudo...

–Espere. -disse ela, impedindo-o de sair.

Todo sem jeito depois de um beijo frenético recebido dela, Ângelo evitou a ardência de uma preliminar sexual. Porém, Valquíria, ofegante deslizava as mãos no corpo dele enquanto o beijava. Terminando o beijo, Ângelo se pôs ereto, ela também. Em pé, ela colou o corpo dela ao dele e procurava tirar-lhe a camisa. Ele sentia o ar quente do respirar dela e, escutava os suspiros excitados e excitantes que ela dava ao seu ouvido à cada pausa de beijo. Sensações recíprocas. Sentimentos mútuos. Autocontrole dele, de Ângelo.

-Eu te quero agora! –ela sussurrou. –Você também me quer? –perguntou excitada e beijando-o levemente nos lábios.

-Valquíria, vamos deixar para um momento mais propício. –disse ele segurando os braços dela. No momento em que ele deu a mão à ela para se despedir dela, ela o puxou e o jogou sobre a mesa com os objetos e materiais de escrita.

Era nítido o desejo que ela tinha de se entregar à ele sem limitações, mas com jeito, Ângelo ia fazendo com que ela se controlasse e esperasse o momento certo. Valquíria não desistiu e começou à fazer uma cena de sedução infalível. Vagarosamente tirou a camisa, e requebrando ia passando a mão em seu corpo em movimentos lentos. Sensualmente, ela tocava as alças da calcinha vermelha tipo fio dental, prefigurando um striptise.

-Vem pra mim. Faça de conta que eu sou a sua namoradinha louca pra me perder com você.

Parado com a mão tateando seus próprios lábios, Ângelo observava a linda mulher se exibindo só para ele ali no escritório. Seu corpo pedia o corpo dela sobre o dele. Talvez os dois fizessem sexo no escritório. Era quase impossível resistir à tentação, vendo aquela mulher sedutora com os cabelos agora soltos caindo sobre seus seios, e a boca de lábios úmidos molhando os dedos de uma mão enquanto a outra deslizava sobre barriga e virilha dela seminua e com ânsia louca de ser toda dele naquele início de manhã.

-Faça amor comigo agora. –disse ela arredando os objetos para os lados da mesa e se sentando sobre ela. –Vem. –puxou ele e o colocou entre as suas pernas em chamas. Ângelo sentia as mãos dela escalando todo o seu corpo e sua boca beijando-lhe a nuca, orelha e todo o pescoço num desejo louco de ser possuída por ele. Com jeito, ele a pôs em pé e a beijou suavemente.

-Deixemos para outra hora.

-Eu te entendo. –disse ela sentando-se e pondo os papeis sobre à mesa.

-Esteja preparada para responder o que eu vou perguntar à você.

-Tudo bem, eu estou pronta.

–Você conheceu Darlene quando vocês estudavam na mesma escola?

–Sim. Nós nos conhecemos na faculdade, mas por alguma razão, ela também desistiu dos estudos por causa da gravidez. A relação entre nós ia além de simples consultas. Existia entre nós troca de experiências vividas por mulheres que já se conheciam desde o oitavo ano colegial.

–Foi quando vocês se reencontraram e as quatro formaram o quarteto das amigas que se tornariam mães em breve. –disse afirmativo, sem ao menos pestanejar.

Valquíria se via descoberta e sem alternativas para escapar das perguntas feitas por Ângelo, que parecia não querer obter as respostas, por ele já às tê-las, antecipadamente.

–Por que quarteto?

–Você, Fátima, Darlene e Débora. Elas estudavam no mesmo ano e curso da faculdade e todas vocês engravidaram na mesma época.

Ela correu os dedos em volta dos lábios como se estivesse corrigindo o batom vermelho morango, e arqueando as sobrancelhas balançou a cabeça em sinal de concordância com o que ele expunha.

–Quando eu me tornei à médica das três eu também estava gerando o meu primeiro e único filho.

–Quanto à isso eu já estou ciente.

–Elas falaram de nós para você?

–Não. Eu apenas deduzi. Afinal de contas, vocês estudaram juntas. Elas engravidaram e deixaram os estudos, e escolheram fazer o pré-natal com a grande amiga recém-formada. E você disse que entre vocês havia trocas de experiências vividas, e, eu acredito que vocês confidenciavam uma à outra os prós e os contras de uma gravidez.

Valquíria recostando-se à cadeira ficou em silêncio e digitava o tampo da mesa. Ela estava pasmada. Ângelo acompanhava o dedilhado coordenado feito uma escala diatônica.

-Me fale do seu filho.

–O nome dele é Jorge, e você o conhece.

–Conheço alguns Jorge aqui Goiânia.

-O Alceu não podia ser o pai do Jorge. O meu filho pode ser o filho do Augusto. Ele era um homem muito conquistador, e... eu acabei caindo na conversa dele também.

Ângelo preferiu não comentar sobre o que ela o revelou.

–Você era uma mulher casada na época. Débora, Darlene ou Fátima têm algo à ver com o fim do seu casamento?

–Acredito que não... oh meu Deus! Na noite que o meu marido se suicidou, ele me culpava de ser infiel à ele e mencionou a nossa empregada na discussão. Eu estava transtornada e não dei atenção ao que ele dizia. Eu pensava que ela tivesse morrido na noite daquela tragédia na casa da Fátima, e que ele só estivesse se sentindo culpado por tudo. Maria. O nome da minha empregada era Maria. Ela trabalhou para Augusto e Fátima também.

–Esqueça a empregada. Quando foi que seu marido se suicidou?

–Na noite das mortes dos bebês, o Otero deu um tiro na cabeça dele mesmo.

–Esse foi o seu primeiro marido. E o segundo?

Valquíria sentiu todos os seus nervos retesarem ao se dar conta de que ela estava sendo interrogada por alguém que parecia ter conhecimento de toda sua vida pregressa. Cruzou os braços em x, pressionou os ombros com as próprias mãos, e de seus lábios espremidos escapou um gemido comprimido. Ela começava à entrar em histeria, mas antes do descontrole total, responderia a pergunta.

–Ai, Ângelo! –disse ela pressionando as fontes do rosto. –Você me deixa perdida com as minhas próprias ideias. –assoprou para cima e o encarou. –Foi o Norato. Alguém o matou com um tiro e o jogou numa vala na beira da Via anhanguera. Ele foi assassinado na noite em que aconteciam as mortes dos bebês na casa da Fátima.  –disse aos berros, tirando a camisa para com ela cobrir o rosto. Da cintura ao pescoço de Valquíria, tudo ficou à mostra. No vínculo entre os seios empinados dela de anatomia quase cônica, Ângelo pôde ver uma pequena marca esverdeada como se houvesse sido tatuada na pele. Ele à tocou com a ponto do dedo circulando-a com suavidade. Aos poucos Valquíria foi recuperando a serenidade e conseguindo restabelecer-se tranquila e emocionalmente equilibrada. O toque dele à levou da agonia à excitação. –O que você tem que me deixa assim? –perguntou aparentemente excitada.

–Desculpe-me por eu ter deixado você em situações tão extremas.

–Você acha que eu corro perigo de uma delas me matar?

–Vamos raciocinar. Para eles terem se separado de você, eles teriam de estar cientes de que o seu filho não era filho do Augusto...

–Então, eles se casaram com as duas mulheres.

–Isso, Valquíria, estamos chegando lá. Darlene se casou com o seu primeiro ex. Débora se casou com o segundo. O que aconteceu foi o seguinte: Quando Otero e Norato descobriram que as suas respectivas mulheres não eram mães de filhos do Augusto, eles às deixaram. Só que, ao final eles descobriram que nenhuma e nem outra, teve a criança do Augusto. Então concluíram que seria você a mãe, e as mortes começaram.

Valquíria vestiu-se e sentou para correlacionar melhor uma coisa com outra.

–Ângelo. –disse ela estalando os dedos das duas mãos. –O primeiro com quem eu me casei foi com o Otero. Norato o matou para se casar comigo...

–Não, Valquíria. Ele morreu na mesma noite que o Otero morreu. –disse ele se sentando no outro lado da mesa. –Agora me diz com sinceridade. Você teve outro marido que possa ter sido ele o assassino do Otero e do Nonato?

Ela titubeou por alguns segundos, abotoou a blusa até ao pescoço e correu as mãos nos cabelos. Estava temerosa. Ângelo segurou nas mãos dela para assim transmitir confiança à ela.

–Pode falar. Eu sei que você é uma mulher muito cobiçada, e ninguém perderia a oportunidade de ter você como mulher. Pra ser sincero, eu não perderia a chance. Mas o que estou passando nesses últimos dias tem me deixado um pouco frígido.

Ela fez cara de lamentação.

–Sim, Ângelo, eu tive outro marido. Antes de Otero e Norato. Era o Ferreira. Alguém o apunhalou pelas costas e botou fogo na casa onde nós morávamos em 1966. Eu não estava lá naquela hora. Todos eles tinham caso com outras mulheres.

–Se ele morreu antes de Otero e Norato, não seria ele que mataria os dois. Valquíria, o senhor Cândido nunca quis que eu fizesse teste de sangue porque ele espera que quem o fizer estará sendo induzido por alguém que tenha envolvimento com a tragédia na casa do Augusto e Fátima. Não havendo feito teste de comprovação da paternidade, um serei herdeiro de tudo que o senhor Cândido possui, e, o seu filho receberá a parte dele. Portanto, não faça teste de sangue do Jorge, senão, você será levada à prisão e o seu filho perderá tudo.

–Ah meu Deus! É por isso que o Alceu o tirou de mim.

–Eu já não estou nem ligando para os bens do senhor Cândido.

Valquíria se levantou num rompante e foi desabotoando a blusa mais uma vez.

–Se você quiser, a gente faz amor sem que ninguém saiba. Você pode usar preservativo. –disse puxando a cabeça dele para os seios dela. –Passe o dia comigo aqui no meu escritório. Eu preciso de alguém que me ajude a estabelecer um raciocínio mais claro sobre tudo isso...

–Conte comigo. –disse levando a mão direita à nuca dela, trazendo a boca dela à dele, e a beijou.

–Gostoso! Você podia ter um tempinho só pra nós dois. –sugeriu depois do frenesi do beijo. –Eu soube que uma menina pode também ser neta do senhor Cândido.

–Pensaremos nisto depois. 


















                                                         *

Vanessa entregou à Ângelo um bilhete. O bilhete dizia que era para ele ir se encontrar com Paulo em um escritório na Avenida Araguaia. Abraçado à Bianca, Ângelo seguia andando lentamente pelo calçadão. Pelo caminho ele ia pensando no que estava acontecendo entre os dois. Ele não tinha nenhuma vontade de namorá-la, mesmo ela sendo uma garota legal e bem bonita, porque na verdade, todas as garotas e mulheres mais experientes que ele se relacionou, nenhuma delas despertou nele o desejo de se envolver em uma relação mais séria. Se existia uma garota a qual Ângelo queria que fosse a sua namorada, com certeza não seria Bianca.

–Ângelo. –disse ela parando e encostando à uma parede de uma loja. Ainda está longe? –perguntou puxando-o para abraçá-lo. –Vem cá. Abraça-me. –pediu sussurrando.

As pessoas que passavam na calçada naquele momento tiveram que desviar-se de Ângelo que estava com o braço esticado e as mãos sendo puxadas por Bianca, querendo que ele colasse o corpo dele ao dela.

Ele hesitava em abraçá-la.

Os pedestres os olhavam com estranheza, talvez pelo estilo de Bianca em um suéter colorido em vermelho e preto, amarrado à cintura, em contraste com o estilo de Ângelo que calçava tênis, calça jeans e camisa de algodão branca com gola pólo. Ângelo a abraçou e escondeu seu rosto entre o pescoço e o ombro dela, deixando que os cabelos dela escondesse seu rosto. Ela acariciava com as mãos os cabelos dele.  Ângelo sentia seu corpo arrepiar novamente ao lembrar-se das palavras de Cândido ensinando a ele como reconhecer e lidar com situações iguais aquela.

–Vamos, Bianca. –disse ele desfazendo o abraço.

-Ainda falta muito pra gente chegar? –perguntou, segurando a mão dela.

–Não. É a terceira sala ali ó! –ele apontou com a mão desocupada.

Eles andaram mais alguns metros e chegaram ao comitê do candidato. Os dois entraram na sala que era mobiliada apenas por um banco preto de três assentos individuais, alguns cartazes estampando o rosto do candidato, um bebedouro d’água ao canto da sala e uma mesa de fórmica e metal próxima ao bebedouro no final da sala. Atrás da mesa um homem forte, alto e branco, ocupava uma cadeira de bar tipo abre e fecha de ferro e lata pintada de vermelho. Ângelo jà o conhecia, pois, era Paulo, o cunhado de sua patroa. Só não entendia o porquê da presença dele ali e nem pelo qual motivo ele o olhou com desprezo. Ângelo prestou serviços voluntários à Alceu, irmão dele, ainda que indiretamente, por ter firmado compromisso de cooperação entre os dois, através do contato entre eles, ter sido Vanessa, a secretária da empresa de transportes aéreos onde Ângelo trabalhava.

–Boa tarde. –disse Ângelo ao se aproximar.

–Boa tarde. Você deve ser o Ângelo. –confirmou, pegando uma folha debaixo de uma madeirinha redonda com um pedaço de ferro fino e pontiagudo espetada na madeira.

Ângelo não gostou do modo que ele olhou para as pernas de Bianca.

–E ela, quem é?

–Ela é minha acompanhante.

–Qual é o seu nome princesa? –o sujeito perguntou.

–O nome dela é Cassandra. –mentiu. –Mas pra que você quer saber o nome dela, se quem foi chamado aqui sou eu? –vociferou irado, encarando Paulo. Bianca segurou no braço e no ombro de Ângelo, ficou calada.

Paulo se levantou da cadeira espalmando as mãos sobre a mesa, tomando fôlego para dizer alguma coisa.

–Olha aqui Ângelo...

–Olha aqui o caramba. Qual é a sua? Você sabe que sou eu quem foi chamado aqui.

–Por favor, Ângelo. –Bianca pediu entrando na frente dele.

–O caramba, Bianca. –confessou o nome. –Senta ali naquele banco. –ordenou pegando-a pelos braços, fazendo-a se sentar.

–Se acalma Ângelo. Você está nervoso atoa. –disse, ajeitando a madeira com o espeto sobre as folhas de papel.

–Solta essa merda aí.

Ângelo tirou da mão do sujeito, a madeira com o espeto.

–Seu pilantra safado. Eu te conheço.

–Ângelo, vamos embora daqui. –disse Bianca apavorada.

–Os seus pais não te deram educação?

Foi como se ele tivesse cravado um punhal no coração de Ângelo.

–Opa, opa. O que tà acontecendo aqui? –Alceu quis saber. –Boa tarde, Ângelo. Boa tarde, garota. Parece que está havendo um desentendimento entre vocês.

–Você é um covarde Alceu.

Paulo não disse mais nada e se sentou novamente pegando os papéis demonstrando descontrole nas reações psicomotoras. Estava confuso sem saber se ajuntava os papéis, ajeitava a cadeira ou se levantava.

–Se acalma Ângelo. Você é o rapaz que a Vanessa o indicou à mim, não é? –perguntou segurando nos ombros dele.

Ângelo não disse nada. Ele estava muito nervoso.

–Alceu, ele está levando as coisas para o lado pessoal...

–Tudo bem, pode se sentar aí Paulo. –ordenou gesticulando com a mão. –Ângelo, venha comigo.

O ambiente bem iluminado por lâmpadas fluorescentes no teto de pé direito alto. Uma mesa de leitura particular, com uma luminária de pedestal curvado para o tampo. Todos os móveis são de cor ocre. Contava também com um barzinho abarrotado de bebidas destiladas. Jogos de sofás encostados às paredes e uma mesa quadrada com seis assentos almofadados com tachas douradas nas bordas laterais dos encostos.  O dono do lugar é Alceu Vidigal, o bonachão do ramo de empresarial.

Pondo-se ereto sobre a cadeira, Alceu exporia o parecer dele em relação aos rumores de que Ângelo poderia estar tendo um caso com Gisele.

-Eu sei que a Gisele não teria coragem de me trocar por você. E acho também, que você não faria uma coisa dessas comigo. Mas, eu não confio no sentimento dela por mim. Ela agora cismou que é evangélica e até disse ter se batizado na igreja do Mathias, pelo Mathias, o pastor evangélico.

-Sério, Alceu, quando?

-Anteontem.

-Eu também, quase me perdi com uma evangélica.

Alceu fez uma carranca, desconfiado, e correu os olhos por toda a sala, sentido o desconforto causado pela informação recebida.

Ângelo conteve o riso para não perder a postura intransigente.

-A Darlene, sua nova empregada, me contou que você tem se declarado para ela.

-Ângelo, você tem que entender como as coisas funcionam. Ajude-me com o meu relacionamento com ela. Eu sei que o que faço ainda é pouco para agradà-la.  Mas eu quero que você seja o meu porta-voz para com ela. Eu me apaixonei por ela. O Paulo me contou sobre o seu poder de influenciar as pessoas.

Ângelo desdenhou.

-Se você à quer, será preciso que dê à ela a certeza de que você é um homem saudável. Uma mulher precisa se sentir segura em relação a sexo. Eu provei à ela, que eu tenho boa saúde, através desses exames médicos.

Alceu assimilou bem a sugestão.

-Amanhã mesmo eu estarei num laboratório médico.

-Sabe o que eu tenho estranhado Alceu? –Ângelo perguntou pondo os cotovelos na mesa e cruzando as mãos.

-Não sei. - Alceu respondeu movendo os ombros para cima.

-Eu acho que você e os seus apoiadores estão me retalhando. Os meus amigos perderam as vagas de empregos porque eles foram denunciados como sendo os autores de roubo em um supermercado de um de seus apoiadores. Você é muito desconfiado. Até de mim com a sua mulher, que você mantém em segredo o seu casamento com ela, você desconfia. E agora me pede para ser o pombo correio entre você e Darlene.

Alceu se viu forçado à admitir que realmente ele não pusesse a mão no fogo por Gisele. Desde que Ângelo começou à trabalhar na empresa dela, ela passara à não ter relações sexuais com ele e também o tratava com indiferença.

-O Amaro me falou que você exigiu que eu providenciasse toda a minha documentação pessoal e de minha empresa para que você se sina mais seguro em relação às cláusulas contratual referente à Darlene.

-E?

-Jà estão nas mãos de minha nova funcionária... com a sua aprovação, é claro.

-Eu jà estou indo. –disse Ângelo se levantando.

-Você não vai esperar o meu parceiro Mathias?

-Diz à ele que eu estou fora. E, tome cuidado com o seu modo de conquistar uma mulher. –e foi saindo.

Ângelo não estava feliz com os últimos acontecimentos. Dois anos antes, ele levou alguns dias para terminar com a empreitada de ficar nos sinaleiros das ruas distribuindo panfletos da empresa do Alceu, mas ele não estava contente com o descumprimento da promessa do empresário que o garantiu melhor as condições de trabalhos à seus ex-colegas engraxates. Alceu entregou aos engraxates, os uniformes e as caixas de graxas e mandou instalar algumas enormes caixas de fibras, todas elas vermelhas e fixadas no calçadão da Avenida Goiás.

Chegando à porta, um homem alto, branco, de rosto anguloso e nariz fino se pôs à frente. Ele tinha um olhar expressivo e um sorriso dental se formou na boca de lábios tão espessos quanto às bordas de suas narinas bem finas.

-Jovem Ângelo. –disse Mathias estendendo a mão à ele. –Fique mais para conversarmos sobre nossos planos.

O aperto de mãos entre os dois foi frouxo, e, Mathias olhava para Alceu sentado no mesmo lugar. Ângelo fez um gesto indicando que Mathias tomasse a frente em direção à mesa. Nesse intervalo, ele, indo atrás de Mathias, não deixou de notar pelas costas os ombros caídos dele. Aquela deformidade física não teria sido pelo peso da obra de Deus que, Mathias, para Ângelo, não parecia carregà-la sobre seus ombros.

Ao se sentarem, Mathias começaria a conversa.

-A Débora foi ter comigo assim que eu voltei da igreja em Catalão. Conversamos à respeito do fim do nosso noivado e chegamos à conclusão de que será melhor assim.

Ângelo considerou a questão um tanto quanto fora da alçada dele, jà que a pessoa em questão não estava presente ali e também não estaria mais sendo a noiva do pastor.

-Eu o agradeço pela compreensão de sua parte. Mas, eu e ela estamos em fase de adaptação e adequação à ideia de sermos parentes em primeiro grau.

-Você se sairá bem ela. Afinal de contas, você e ela já passaram nos primeiros testes de convivência até para casamento.

-Você a conhece melhor do que eu, Mathias. Ainda sou neófito em termos de relacionamento amoroso.

Houve uma pausa para as primeiras considerações do que fora dito pelos dois. Alceu se mantinha calado e neutro no seu lugar. Ele sabia do que estaria em jogo ali, e qual dos dois estaria ganhando ou perdendo com a troca. Ele conhecia bem à Débora, portanto, sabia que seu irmão deixaria escapar um espetáculo de mulher.

Mathias admitia que Débora fosse uma mulher e tanto e, ele não acreditava que Ângelo tivesse perdido a oportunidade de conhecer as preciosidades dela escondidas dentro dos vestuários sempre decentes e modestos que ela usava. Mas, ainda cria que Ângelo teria que ser um grande conversor de estados psicológicos para conseguir mudar a cabeça de uma mulher traumatizada e convertida de que homem nenhum mereceria o amor, o respeito e a confiança dela.

-Bom Ângelo, eu não tenho muito que dizer da relação de vocês dois. Só estou aqui para contar com a sua ajuda à uma causa direcionada aos jovens e adolescentes daqui de Goiânia, que nós podemos fazer com que eles não vão para o mundo das drogas. Eu sei que você não tem religião definidas, e talvez não creia no poder de Deus, mas a igreja é o melhor caminho. –Mathias propôs e o prejulgou, com aquele ar de quem assumisse o lugar de juiz para condenar seus fiéis por um deslize cometido contra estatutos e doutrinas de sua própria igreja.

Ângelo se ajeitou na cadeira para com naturalidade expressar sua opinião.

-Mathias. -disse ele estalando os dedos. -Uma mulher foi levada para dar a luz em uma ilha onde não havia viventes humanos. Quando a criança nasceu ela foi deixada sozinha sem a presença da mãe ou de qualquer ser humano. A criança foi sobrevivendo e quando alcançou maturidade para distinguir o certo e errado, o valor de tudo ao redor dela ali naquela ilha, ela descobriu que não teria sido ela que fez a àgua do oceano que a cercava. A terra seca que ela pisava, o ar que fornecia a ela o fôlego de vida, e nem o fogo que ela conseguiu obter de uma forma ou de outra, para fazer bom uso dele. Então, ela concluiu que alguém teria sido o criador de tudo que existia ali à sua volta...

-Deus. –Mathias antecipou a concluiu. -Ela sabia que foi Deus, pai de nosso senhor Jesus Cristo.

Alceu espremeu os lábios e arregalou os olhos revelando que ele estava perdido na metáfora, mas arriscaria alguns palpites.

-O Deus de Maomé, Hindu, Judeu, Confúcio...

Ângelo meneou a cabeça negativamente.

-Não teve ninguém que tivesse ido à ilha para convertê-la à nenhuma dessas religiões. Ela descobriu que existia um ser superior que criou todas as coisas e deu à ela noção do que fosse certo e errado. E mostrou-lhe o caminho do bem o do mal. Portanto, Mathias, não me julgue de ser um ateu, pois eu não o sou. Agora me responda como você se sentirá se eu for o filho de Débora?

Foi a vez de Mathias afrouxar a gravata e se acomodar melhor na cadeira.

-Ela tem trinta e oito anos. Poderá ser uma boa mãe para você, ou sua esposa.

Ângelo deixou transparecer que o sangue dele efervesceu em suas veias.

-Você agora tem uma nova fiel na membresia de sua igreja. –disse para intrometê-los em rixas.

-De quem você está falando?

Alceu bateu forte a mão na mesa e se levantou.

-Ora, Mathias, ele está falando da Gisele, a ateia recém-convertida que receberà o batismo nas águas da igreja que você aprisiona as ovelhinhas desgarradas. –Alceu falou enérgico e voltou à se sentar.

Mathias manteve-se calmo. Ele nunca viu na igreja a mulher de seu sócio e irmão de sangue.

-Voltando a nossa conversa. –disse ele baixando o olhar para o tampo da mesa. -Eu quero contar com a sua boa vontade em me ajudar à levantar fundos para pôr em prática o meu projeto de evangelização em massa. Posso contar com o seu apoio?

-Tudo à seu tempo, pastor Mathias.

-A Débora jà está com formulários jà preenchidos com todos os nossos dados pessoais e registrados em cartórios como você exigiu como garantia de nossas palavras. –assegurou Mathias.

-Eu já havia me esquecido desse detalhe. –disse se levantando. -Estou indo senhores. –Ângelo anunciou a partida e saiu.

Alceu apontou o dedo indicador para Mathias, de modo ameaçador.

-A nossa parceria termina após à festa de pré-cerimônia das apresentações dos herdeiros. Mas, eu já vou logo te alertando. Não tente me passar para trás.

Passando pelo homem que Ângelo havia discutido com ele minutos antes, Ângelo tirou de dentro da camisa um envelope com diagnósticos médicos.

-Paulo, eu quero te deixar bem claro que eu ainda sou virgem em termos sexuais, e para te provar eu trouxe o resultado do meu último exame. –entregou a ele conferir o resultado. –Outro fato, é que a Fátima sua nova secretária, é uma mulher em pleno vigor sexual e já não suporta mais a vontade de fazer sexo com um homem de verdade que possa saciar a vontade dela, mas eu nunca à olhei com malícia, como você fez agora há pouco com a Bianca. Aí você poderá dizer que eu não perdi a virgindade com ela porque acho que ela seja a minha mãe. Mas, leia o tipo sanguíneo dela e do meu.

Paulo correu o dedo até os pontos indicativos dos tipos sanguíneos dos dois, e os lendo descobriu que ambos eram raros, porém, sem nenhuma compatibilidade genética que pudesse comprovar que Ângelo fosse filho de Fátima.

-Realmente, não há dúvida de que vocês dois não tem nenhum parentesco.

-Disso eu tenho certeza desde o dia que eu a conheci. Mas há outra informação nos exames dela, que você não conferiu. Fátima possui uma anomalia rara chamada de gene da procriação. Isso quer dizer que se eu tivesse feito sexo com ela uma única vez, seria o suficiente para engravidá-la.

Paulo moveu a cabeça para os lados e fez cara de quem estaria diante de um mancebo ingênuo. Rindo ele colocou os papeis dentro do envelope e o devolveu à Ângelo.

-Basta usar camisinha, garoto. –disse ele ajeitando a calça na virilha.

Ângelo pensava, considerando o conselho.

-Eu não havia pensado nisso.

Paulo arranhou a garganta, ergueu os ombros estendendo as mãos de palmas para cima.

-Eu só quis te ajudar com a sua virgindade.

-Fique longe de mim e da Bianca. –Ângelo o alertou e se foi.













                         Terceira parte - Morte dos homens


                                                        *


O outono estava em seu meio ciclo e as folhas das árvores despencavam dos galhos. Ângelo tirou o dia de sábado para subir no telhado e fazer a limpeza das calhas coletoras de água da chuva.  No finalzinho da tarde, vestido de camiseta cavada da cor de cenoura e uma bermuda Jeans, pôs mãos à obra.

Do alto do telhado ele olhava o tráfego dos carros nas ruas, a movimentação rápida dos pedestres nas calçadas. Paralisou o olhar em um garoto que corria atrás de outro para que fosse dividido com ele um saquinho de refresco. Havendo torcido e partido o saquinho de suco congelado, cada um com a sua parte atravessaram a avenida, contentes.

A cena trouxe-lhe lembranças de sua infância, de quando ele era engraxate, e os colegas mais velhos e maiores não deixavam que ninguém encostasse as mãos nele de modo violento. Mas, sempre era Ângelo quem dava um jeito de descolar um lanche para a turma toda. O Supermercado Cobal era um dos muitos locais comerciais do gênero alimentício, que ele conseguia ganhar pães de forma, presunto, muçarela e alguns salsichões defumados para variar o cardápio. “come aí, seus jogadô de barai. – e jogava a sacola cheia de comestíveis no centro da roda onde seus amigos jogavam cartas, apostado. – Eu vô ganhar uns litros de leite Gogó agora e traço procês.” – trago para vocês, Ângelo. – o estudioso da turma o corrigia com educação.

Minutos depois ele desceu do telhado e catou as folhas do quintal. Embora a casa pertencesse a ele, e as três mulheres morassem nela também, era ele que se encarregaria de dar fim às folhas que se esparramava pelo piso todo cimentado do quintal. Ele juntou as folhas em montes separados, Fátima cuidou de atear fogo só para ver as labaredas ardendo e não ser preciso que ela usasse o carrinho de mão para levá-las ensacadas para frente do quintal.

–Ângelo, eu não vou carregar lixo em carrinho de mão nenhum. Logo eu que você diz que eu sou linda e maravilhosa. Não vou empurrar carrinho com sacos pretos cheios de folhas.

–O que tem se você se sujar? –perguntou escorando ao rastelo. –Os ricos de beleza também sofrem.

-Cadê a Débora e a Darlene?

-Débora está na igreja. A Darlene deve estar voando pela cidade. Sobrou-me apenas você.

–Olha só a cor do meu vestido. Era amarelo, ficou vermelho de sujeira. Se jà terminamos, então vamos para dentro. Eu vou tomar banho e me trocar.

–Espera. –disse ele segurando no braço dela.

–Fala, meu príncipe. –chegou o rosto bem próximo ao dele.

Ângelo olhou com muita atenção os traços e o aspecto daquele rosto bonito.

–Eu jà sei. Você quer saber se eu estou tomando o chá de limão sem açúcar.

–Eu ia perguntar, mas jà deu pra eu perceber que você continua linda, maravilhosa e saudável.

–Obrigadinho, meu docinho! –Fátima falou com o nariz dela riçando ao dele. –O médico disse que eu estou ótima. Daquela maldita doença eu não morro.

–Acho bom. Agora vamos nos banhar.

Fátima montou nas costas dele e o fez de cavalinho.

Seria demorado o banho de Fátima, pois, ela tinha algo à fazer além do banho. Coisas de uma mulher em abstenção de prazeres que se obtém através de intimidades entre um homem e uma mulher. Só de toalha enrolada no corpo ela foi à porta do banheiro onde Ângelo estava.

–Rodrigô. –falou, manhosa. –O que você está fazendo?

–Escovando os dentes.

–Então abra a porta.

Abriu.

–Vai vestir roupa, sua imoral. –disse ele ao vê-la enrolada à toalha cor de rosa.

–Me deixe fazer uma pergunta, primeiro.

–Faz. –permitiu chacoalhando a escova e abrindo o armarinho.

–Sabe o que é? –ela iniciou com as duas mãos unidas entre as pernas.

–Pergunte logo Fátima. Eu até imagino o que será. –disse ele, colocando o cotovelo no portal, a mão na orelha direita, esperando a indagação.

–Você se masturba? Não minta. –falou acochando mais as mãos entre as pernas.

– Fátima, mas que pergunta,... dà licença viu!

–Ai Ângelo, é que eu quero saber se é errado ou pecado fazer isso. Eu ando com muita vontade daquilo. Tem noites que eu nem consigo dormir direito. –confessou chacoalhando as mãos.

Sem responder, Ângelo seguiu para o quarto dele. Fátima o acompanhou.

–Vire para lá. Eu vou me vestir. –disse ele abrindo a porta do seu guarda roupa.

–Vai Ângelo, me responda!

Após vestir a calça Jeans, ele ficou reparando o corpo dela, antes de vestir a camiseta.

–Jà terminou?

–Falta a camiseta. Espere aí. –e continuou a observá-la.

Fátima, um corpo escultural, com cintura proporcional à largura do seu quadril não muito alargado, definindo bem suas nádegas arredondadas, arrebitadas e rígidas, nem parecia que depois de sua viuvez ela havia se tornado uma mulher de programas.

–Você está é me cobiçando pelas costas.

–Pode se virar, eu jà terminei.

Ela virou–se, sapateando e agitando as mãos.

–Então, me responda de uma vez. Você se masturba ou não?

–Fátima. –disse ele cruzando os braços. –Você teria coragem de fazer sexo comigo aqui e agora nessa cama?

A primeira reação dela diante da pergunta foi rir. Em seguida levou as mãos à boca e arregalou os olhos.

–Ah Ângelo! –disse se sentando na cama. –Que loucura! Você está falando sério?

–Vamos, responde. –falou sério.

–Meu Deus! –ela exclamou balançando a cabeça para um lado e outro bem devagar. –Ângelo eu... – cortou a fala e foi parar na escrivaninha. Com as mãos espalmadas no tampo da escrivaninha, Fátima continuava sem saber o que responder. Certo era que ela faria sexo com ele dentro da velha casa quando os dois se conheceram. E assim que ela tornou–se a moradora da casa dele, por duas noites ela se imaginou dormindo com ele. Mas, e agora?

–Tà bom Ângelo. – disse ela em fim, se pondo de frente à ele. –Você sabe da minha situação...

–Sei perfeitamente. –afirmou sério.

Fátima expirou o ar e depois o soltou de uma vez para em seguida responder.

–Eu tenho coragem sim de ir pra cama com você. Pronto confessei. –foi como um desabafo, mas ao mesmo tempo constrangedor para ela. Às vezes, ela se via à ponto de insistir que Ângelo ficasse para dormir com ela no quarto dela, mas como lhe doía a consciência por tal pretensão.   Fátima nutria um sentimento mesclado de amor afetivo e gratidão por tudo que ele fez e ainda estava fazendo por ela. Ainda com jeito de quem disse o que não deveria ter dito, Fátima esperava o resultado por ela ter revelado o que ela relutava em não externar à Ângelo.

–Oh Fátima, vem cá! Abrace-me. –pediu compadecido abrindo os braços.

–Você estava me testando. – o abraçou. –Eu caí na tentação e pequei. – a voz dela soou lamuriante.

–Não Fátima. Você apenas cederia aos seus desejos mais íntimos. Eu acredito que ninguém te condenaria por ter cometido o ato sexual com alguém que de livre e espontânea vontade concordou em cometê-lo com você. Nós somos solteiro, e, isso só implicaria à nós dois.

–E sobre a masturbação. Será que eu posso? Eu fui católica e nunca traí o Augusto.

–Na bíblia está escrito assim: confesse suas faltas ao senhor. Se você disser à alguém, pode ser que esse alguém te condene ou tire proveito da sua situação. Eu só sei dizer que se for pra eu fazer sexo forçado com qualquer mulher que seja, é preferível que eu me masturbe.

–E quanto à nós dois de agora em diante? –a voz saiu abafada porque ela ainda estava com o rosto entre o ombro e o pescoço dele.

Ângelo pensou por um instante em o que dizer à ela sem deixá-la ainda mais entristecida.

–Eu posso ser sincero com você? –perguntou tocando os cabelos dela.

–Pode.

Ele arranhou a garganta antes de dizer.

–Eu jà me satisfiz sexualmente fantasiando à nós dois.

Ao ouvi-lo, Fátima se afastou um pouco e se escorou à parede do quarto.

–Ângelo, seu mentiroso...

Ele saiu correndo para a sala, ela o alcançou e o cobriu de tapas, sobre o sofá.

–Você me paga, seu bobo. –disse ela apertando a toalha à cima dos seios.

–Vai vestir roupa, senão, eu tiro a minha e te arranco a toalha...

–Você não teria coragem. –afirmou se sentando de lado no colo dele.

Seus rostos ficaram frente à frente um ao outro. Ângelo enlaçou os braços à cintura dela. Fátima segurou o rosto dele com as duas mãos e o beijou carinhosamente na testa.

–Se a gente fizesse sexo, tudo mudaria entre nós. E, eu não quero que mude nada. –disse ele beijando a maçã do rosto dela. –Eu só farei sexo com uma moça ou mulher, se for com um propósito. E, eu espero que seja por um bom propósito.

–Eu entendo. –disse ela beijando-o novamente na testa. –Só de saber que estou em suas fantasias eu jà me sinto satisfeita.

–Beleza. Agora và vestir.

–Eu ainda não tomei banho...

–E está cheirosa desse jeito? Ah, mas, feliz daquele que tiver a sorte de ter um corpo aromàtico desses debaixo do dele, ou por cima...

–Sai logo daqui Ângelo. – e foi empurrando ele rumo à porta.  –Ah, antes que eu me esqueça, um amigo seu ligou, e disse que quer que eu và trabalhar no consultório dele, na Avenida Araguaia.

-Não và transar com o seu novo patrão.

–Cale essa boca, seu malicioso. –e ficou pensativa.

Ângelo entristeceu o semblante, pois ele sentia que Fátima não resistiria à tentação ao ser assediada por um homem, fosse ele quem fosse se oferecesse à ela amor, proteção e cuidado especial que ela merecia.

–Onde eu trabalho tem cinco funcionárias. Todas elas foram selecionadas através de fichas curriculares com fotos três por quatro. Eu estou no meio de um séquito de mulheres bonitas e bacanas. Se você me trair com outro, eu vou namorar uma das minhas colegas de trabalho.

Fátima o abraçou forte de modo à fazer com ele sentisse o corpo dela estremecer, levando-o quase à cair por cima dela.

–Eu jà te falei que eu não quero homem nenhum. Mas, se ele se interessar por mim, eu posso?

–Bom, Fátima, cada cabeça é seu próprio guia.

-Ele até jà me entregou os resultados meus exames médicos. Só que eu não entendo nada de diagnóstico. Ele disse que é pra eu entregá-los à você. –disse ela dando um beijo no rosto dele.

-Eu vou sair por aí. –Ângelo avisou e saiu.


















                                                     *




Débora vestiu sua camisola branca de tecido um pouco transparente e se preparava para ir se deitar, quando o não reuisitado orientador espiritual tocou a campainha. Achando que fosse o Ângelo que chegava jà às nove e vinte da noite, ela foi abrir a porta, mas apagou a luz antes de abri-la, na intenção de não deixar que ele à visse de roupa de dormir.

-Irmão Mathias. O que o senhor faz aqui à...

-Mas que escuro é esse, minha irmã?

-Perdão, eu pensei que fosse o Ângelo.

Na escuridão, eles viam apenas os vultos um do outro.

-Eu posso entrar? –ele perguntou levando a mão ao interruptor.

-Irmão Mathias, eu não estou preparada para te receber à essa...

Tarde demais, a luz se fez onde estava escuro.

A camisola não tinha decotes, mas a espessura do tecido deixa transparecer a beleza física de uma viúva bem nova com seus trinta e seis anos de idade. Sem demonstrar espanto, sim admiração por vê-la de braços cruzados sobre os seios, Mathias chegou à pensar que com certeza, quando jovem ela era um caminho de perdição para muitos homens. Corpo perfeito, embora ela sempre estivesse usando vestidos que mais pareciam roupas de freiras. A beleza do rosto dela, e - nesse momento, corado de vergonha-, com pele bem hidratada a faz continuar sendo uma mulher ainda muito bonita e sensual.

Por alguns segundos, Mathias desanuvia as ideias que ele fazia dela naquele instante, porque ele não estava ali para ficar reparando a beleza da mulher que ele admirava, respeitava, e sem dúvida era uma irmã decente e temente à Deus.

-O Ângelo não está em casa, por que você me chamou aqui. –perguntou, mas com os olhos vidrados no corpo dela.

Débora prende os cabelos atrás das orelhas. Ele cruzou os braços e a observava com seriedade. Ela parecia estar à ponto de sair correndo para o quarto. Sufoco, angústia e indecisão eram facilmente detectadas em seu rosto e na sua postura ao ver Mathias parado de frente a ela, mas ele segura em suas mãos como quem quer dar apoio à uma mulher em desespero que está pedindo socorro.

-É sobre o Ângelo. Eu vou me vestir...

-Espere irmã. –disse ele a conduzindo ao sofá. -Eu sei que você não confia nele. Vem aqui. Sente-se aqui perto de mim. Você não é mais uma mocinha que nunca esteve vestida desse modo na presença de um homem. Nós somos adultos.

Ela permanecia trêmula e calada olhando para os seus próprios pés, pois, ela não tinha coragem de olhar no rosto do ex-noivo que à assediava em sua casa sobre o sofá da sala.

-Tudo que a gente fizer aqui nessa noite, ficarà apenas entre nós dois. Eu sei que você sente falta de um homem para te dar prazer em suas noites.

-Não, eu não posso, e você é o primeiro à saber disso. –falou esfregando os braços num estado de profunda decepção.

Enquanto isso, Mathias alisava a perna dela sobre a camisola e a abraçava por sobre o pescoço.

-Eu tenho notado que você anda meio inconstante nos cultos. Sem dúvida, você quer fazer amor com alguém que saiba te proporcionar alguns momentos de carinhos íntimos.

-Por favor, pare com isso. –pediu ao sentir o ar quente do respirar dele em sua nuca.

-Você é um pedaço de bom caminho. –disse Mathias passando os lábios na orelha dela.

Por um momento, Débora se deixava levar pela carícia, e de olhos fechados, ela sentia um fogo incendiando seu corpo.

-Fique tranquila, eu saberei dar à você o que você merece, afinal de conas, jà compartilhamos à tanto tempo nossas alegrias e frustrações.

Aos poucos ela foi se deitando sobre o assento, tendo sobre seu corpo o corpo dele já sem camisa. A camisola dela não cobria mais as suas partes íntimas. As mãos dele deslizam por entre suas coxas.

-Você é uma mulher muito excitante.

-Mas, nós dois não devemos fazer o que você está querendo.

-Eu sei que você também quer e precisa.

Beijando suavemente a boca dela, ele foi se despindo por inteiro. Débora não conseguia dissuadi-lo de suas investidas, e logo ela jà estava toda nua estirada sobre o sofá. Com a respiração ofegante, ela não conseguia nem ao menos balbuciar palavras de negação ao ato que estaria prestes à ser consumado.

Sentindo o calor da pele dela misturando-se à ardência física de seu desejo de possuí-la, ele começou à fazer carícias mais íntimas nela antes de iniciar o ato sexual.

-O que estamos fazendo não é certo nem à nós dois e nem à Deus. –disse ela sussurrando.

-Se eu quero e você também quer, não há nada que nos condene. –disse ele com a boca entre os seios dela.

Num impulso heroico ela conseguiu evitar que ele à penetrasse e violasse a santa castidade dela.

-Vem cá, não fuja. –falou puxando-a pela mão.

-Não, eu não vou cometer esse pecado. Eu sou uma seva do senhor. –disse Débora já de pé. Imediatamente ela pegou a roupa de dormir e cobriu novamente seu corpo.

Decepcionado, porém ainda de membro sexual ereto, Mathias investiria com argumentações.

-Você é viúva. Está livre de qualquer moralidade imposta por doutrinas religiosas. Eu sempre quis descobrir seu lindo corpo que está sempre coberto por essas roupas de senhoras que perderam a vaidade feminina...

-Eu me visto como é uma mulher decente e crente.  Agora, vista a sua roupa e me deixe vestir a minha camisola. –bradou e se apoderou da peça de roupa e foi logo se vestindo.

-Não existe pecado quando há consenso entre um homem e uma mulher em respeito à sexo. –disse subindo as calças.

Escandalizada e desacreditando na conversa de Mathias, Débora procurava réplicas para rebater suas palavras.

-E o que você prega nos sermões? Por acaso não se deve viver do que evangelho de Jesus?

-Minhas pregações são coerentes e convenientes aos evangelistas. Tudo que fizermos deve ser feito por fé.

Débora não pôde fazer uso do seu direito da tréplica diante de tal afirmação, pois, sua mente fora condicionada à apenas ouvir e acatar as sugestões advindas daquele homem ao assumir a tribuna do púlpito de sua igreja. Sabendo que não poderia discutir posturas e regras de conduta pessoal cristã com o seu líder, ela decidiu ir até ao telefone na estante.

-O que você vai fazer irmã? –ele perguntou vestindo a camisa.

-Eu vou ligar para o Ângelo. Aí você dois poderão discutir sobre esse assunto.

-Misericórdia. Ele é ateu. –disse Mathias saltando do sofá. –Deixe que tudo isso fique em segredo entre você e eu. Essa tentação vai pisar. Tentação não é pecado.

-Mas cair na tentação é sim pecado.

Mathias ajeitou a camisa dentro da calça e, depois de apertar o cinto criticaria à Débora por ela ter se oferecido à ele e o feito cair em seu laço.

-Nós não caímos irmã. Ainda há esperança. Esqueçamos o que houve aqui hoje. Maldito o homem que confia em uma mulher. Se alguém ficar sabendo do que aconteceu entre nós dois, você será excluída da igreja, e o seu pecado não merecerá misericórdia. O satanás te usou para que você me derrubasse dos caminhos do senhor porque ele sabe que eu sou um homem valente que resgata as almas da perdição.

Abandonando a estante, ela foi para o sofá. Já não se importava mais com as suas vestes. De repente, Débora se via culpada por ter dado lugar ao infortúnio ao ir abrir a porta vestida daquele jeito. Sinceramente arrependida e com uma profunda expectação de jà ter cometido o pecado carnal, ela se sentiu a pior das irmãs religiosas. Sentada no sofá com os antebraços apoiados em seus joelhos, olha para o piso da sala e apenas escutava as justificativas para inocentar Mathias, e as acusações dele para encaminhar a alma dela ao inferno.

-A bíblia diz que a boca da mulher destila favos de mel para enfeitiçar o homem, mas no final é amargo como fel. Você me atraiu como Dalila fez com Sansão e, visto que o senhor me livrou de sua cilada, agora tentará me desmoralizar perante os a nossa irmandade. Mas, tudo isso está na presença dos olhos de Deus. Reconcilie com este seu líder que luta ferozmente contra o pecado, e coloca-se diante do altar do senhor.  –abriu os braços e esperou a reação dela.

Atordoada e confusa, ela se levantou de cabeça baixa e se aproximou dele.

-Perdão irmão Mathias, eu não tive a intenção de te fazer cair da fé. -pediu confessando seu erro desproposital com humildade e subserviência.

-Nós devemos perdoar aos que erram contra nós, por setenta vezes sete. Ainda que tivéssemos cometido essa desobediência, eu e o senhor te perdoaríamos. Agora me abraça e saiba que eu não ousaria causar-te nenhum mal.

Sem pestanejar, ela o abraçou e mais uma vez implorou pelo perdão e o pediu que não à delatasse à seus irmãos e suas irmãs de igreja.

-Vamos para o seu quarto.

-Não, não podemos cometer esse pecado.

-A intenção do erro jà é o erro. Então não se condene.

Ele à conduziu para o quarto. Alguns minutos depois, o ato sexual foi consumado.

-Amanhã terá culto. Esteja na igreja e continue contribuindo com a obra do senhor. O ministério do louvor ainda te pertence. –Mathias assegurou zipando à calça, caprichosamente.

Logo que Mathias saiu deixando-a sobre a cama arrependida e procurando esconder seu rosto com a camisola, Débora se perguntava por que foi que ela se preservou sem cair na tentação de se entregar à outro homem desde a sua conversão. No fundo da alma a religiosa sentia que o seu sacrifício valeria a pena, e que no final de sua vida receberia o prêmio por sua dedicação à tudo que se referia à santidade exigida pela sua instituição religiosa. Então, ela se levantou e foi se banhar. Debaixo do chuveiro, deixou que a água caísse desde o alto de sua cabeça e a via escoando no ralo. Ela chorava por saber que seu corpo estaria limpo ao término do banho, porém, sua consciência permaneceria manchada pelas nódoas do pecado da fornicação.

Pela manhã no supermercado onde Débora foi fazer compras de mantimentos, ela ouviu uma garota extrovertida e muito mal vestido em um shortinho de lycra preto e um bustiê pra lá de indecente, falando à outra garota que, qualquer dia ela iria sair com o Ângelo para um lugar onde os dois pudessem ficar sós, e então ela iria ver se ele resistiria às insinuações dela. Débora maliciou a conversa da menina faceira.  Por isso, ela pediu à Armelinda, esposa do vice pastor da sua igreja, para que ela fosse até a casa dela para poder orientá-la sobre como lidar com Ângelo, porque ela achava que talvez não fosse certo e nem seguro conviver com um rapaz tão assediado por inúmeras garotas que podia levá-lo à perdição. Porém, sobretudo, Débora leu nas escrituras que a luz não combina com as trevas. E, esse foi o mais recente discurso de um pregador visitante no púlpito da denominação evangélica que ela frequentava. Na ocasião, o homem que presidia o sermão falou que quem teme à Deus não deve se relacionar de modo nenhum com os não convertidos. Ansiosa, ela esperou pela chegada de sua irmã de fé, mas, ela ligou dizendo à ela que ela pudesse ir dormir que na manhã seguinte ela estaria na casa dela, pois, primeiro ela iria conferir nos livros bíblicos algumas citações que pudesse dar à ela, Armelinda, o esclarecimento necessário para à instruir sobre a luz da palavra. Então Débora disse à irmã, que talvez o Ângelo nem viesse para casa nessa noite, e por isso a preocupação dela com ele era ainda maior. Por ironia, quem veio ao encontro dela foi o lobo disfarçado de ovelha. Ela confiou na pessoa errada para que o rapaz que tanto a ama, fosse julgado por aquele que acabara de destruir a sua alma.

Voltando ao quarto, ela pôs uma roupa que a deixou bem bonita para que ao chegar, Ângelo não percebesse que ela estivesse em fel de amargura. Enquanto ainda estava se penteando e se excomungando em pensamentos na frente do espelho da penteadeira, ela fazia um exame de consciência. Em retrospecto Débora percebeu que mais uma vez ela errou por ter julgado precipitadamente e erroneamente as pessoas.












                                                          *


Foi um dia de tristeza para os membros da igreja evangélica dirigida por Mathias Norato Vidigal. Entre os muitos comparecentes no velório, estava Ângelo no canto da sala observando em silêncio, sem pesar algum, pois, ele entendia que Mathias tivera o fim que ele merecia. Sua ganância, ambição desordenada, seu espírito faccioso ali jazia com ele no lugar onde todas as paixões não dormitam, mas, findam-se para sempre.

Soube-se por intermédio de um membro da igreja dirigida por Mathias, que alguém não identificado entre a membresia da denominação Tempo de renovo em Cristo o interpelou no vestiário acusando-o de ter planejado a morte de Alceu Vidigal, seu próprio irmão, para receber um alto valor indenizatório de uma apólice de seguro a qual, Alceu era o segurado, e Mathias era o mantenedor e seria também o beneficiário.

Entre os muitos comparecentes no velório estava Ângelo no canto da sala observando em silêncio. Sem pesar algum, pois, ele entendia que Mathias teve o fim que ele merecia. Sua ganância e seu espírito faccioso, agora jazem com ele no lugar onde todas as paixões não dormitam, mas, findam-se para sempre.

Muitos fiéis esperavam pelo início do culto fúnebre, sentados nas cadeiras de material plástico que foram esparramadas pela sala. Outros se reuniam em grupos para discorrerem sobre o que poderia ter motivado alguém à tirar a vida de um homem perseverante na obra de Deus. Débora permanecia sentada do lado do caixão. Não havia lágrimas em seus olhos. Ela apenas recebia as condolências de todos, com cara de viúva triste. No âmago de sua alma, ela sentia-se, enfim, livre do fardo pesado demais, que ela suportou durante seis anos noiva com o homem que à fazia assediar Ângelo cometendo indecências que por ela não seriam cometidas se ela não fosse lavada à cometê-las sem ter noção do que ela estaria fazendo.

Ângelo olhou para Débora e fez sinal indicando que ele iria para um dos quartos da casa. Assim que ele entrou no quarto dele, duas batidas suaves na porta anunciou a chegada de Débora.

-Entre, Débora, a casa pertencia ao seu novo.

Ela entrou sem parcimônia.

-Eu tive que dizer aos comparecentes, que a irmã Valquíria queria falar comigo no quarto. Mas, eu tenho que voltar rápido para a sala.

-Débora, eu amo você, e quero que você entenda o meu jeito de te amar. Eu vou à despensa dessa casa para pegar uma garrafa de vinho. Sente-se na cama e me espere.

Sentando-se na cama, ela tentava controlar a emoção por saber que muitas mocinhas bonitas desejariam estar no lugar dela, mas coube à ela a oportunidade de estar ali no quarto, na cama que seria dela e do finado Mathias. Débora não estava preparada para ouvir de Ângelo o que ela ouvira na casa dele, mas, nem mesmo com o velório de seu noivo acontecendo na sala da casa que seria dela, a impediria de ouvir tudo que Ângelo tinha para dizer à ela.

Segundo depois, Ângelo entrou no quarto, trazendo com ele uma garrafa de vinho e duas taças de cristal. Timidamente Débora afastou para o lado da cabeceira da cama dando mais espaço para ele se sentar do lado dela.

-Antes de bebermos, vamos falar de nós. –disse ele colocando taças e garrafa em cima do criado mudo. –Você foi noiva do Mathias por quanto tempo?

-Seis anos.

-Vocês dois se conheceram aqui em Goiânia?

-Somos de São Paulo. Viemos para Goiânia à pouco mais de sete anos. Eu conheci você, quando você tinha dez anos de idade. –disse um pouco envergonhada. No fundo ela não queria estar ali com ele, sem medo de se arrepender depois, como antes esteve se dando toda à ele.

Ângelo abasteceu as taças com o vinho, e sorrindo entregou a bebida à ela.

-Débora, eu sinto que você não pensava em mim de modo sexual.

-Eu sempre gostei de você e faria de tudo para ficar com você. Mas, são tantas as maldições prescritas na bíblia para as mulheres pegas em ato de fornicação.

-E quanto à Fátima?

-É você acha que ela seja sua mãe? –Débora perguntou não se sentindo aliviada do sentimento de culpa. –Eu vivi cada dia durante dezessete anos, me amaldiçoando por não ter ido à casa dela naquela noite. Talvez se eu estivesse lá eu teria morrido também, mas, só assim eu não teria passado por tanta amargura de alma.

-O seu erro foi ter permitido que uma mulher levasse a culpa pelas mortes de pessoas que ela não as matou. As crianças saíram vivas de lá, e você sabia...

-Não Ângelo, eu soube que a outra mulher do Norato estava gràvida, e, ela e o bebê dela também morreram. Mas eu só soube depois que ele entrou com uma ação na justiça contra o pai do Augusto.

-Você sabia que eu poderia ser o neto do senhor Cândido?

-O Mathias vivia dizendo que você herdarà tudo que pertence ao senhor Cândido, mas eu sei que você não é o neto dele. Uma mulher chamada Valquíria me contou na igreja, que ela conhece o verdadeiro filho do Augusto, e me disse o nome dele. Ela me pediu pra eu não contar à ninguém à respeito dele. Mas, eu não posso guardar esse segredo de você e do senhor Cândido.

-Talvez ele esteja enganado também, pois pode ser uma filha. Bem, quanto à mim, você pode manter o segredo. Eu sei que não sou o neto que ele tanto sonhou ter. Acontece que, o senhor Cândido está doente, e não seria viàvel você dar essa notícia à ele. –Não beba o vinho, para não esqueça o que conversamos.

-Eu não posso deixá-lo morrer sem saber da verdade. E se ele souber que você não é meu filho, nós dois poderemos nos casar finalmente. Ou você prefere que eu não diga nada à ele, ainda?

-Débora. –disse unindo as mãos.

-Diz pra mim, pelo amor de Deus, se você se casará comigo quando tudo ficar esclarecido. O Mathias me disse dias atrás, que eu e você estávamos noivos, e que eu jà teria ido para a cama com você.

-Em partes é verdade. Mas ele mantinha você sempre sob efeito de uma droga chamada de extrapola menina. Você, Débora e Darlene, quando eram novas e casadas com aqueles trastes, eles administravam essa mesma droga em todas vocês.

-O filho do senhor Cândido não faria uma coisa dessas...

Ângelo levou as mãos à cabeça procurando estabelecer uma forma menos complicada para explicar à Débora, que Augusto poderia não ser filho de Cândido Plates Rivera.

Débora. –disse ele segurando as mãos dela. –Você conhece a história do rei que escondeu um baú com tesouro incalculável?

-Não sei. Talvez eu já tenha ouvido essa história, mas...

-Tudo bem, eu explico. O rei é o próprio senhor Cândido. As jóias são três filhas de três amigos dele, que tiveram que abandonar a cidade que eles viviam, para que eles não fossem presos acusados de terem matado um homem muito rico que se chamava Otero Olavo. O senhor Cândido também teve que deixar as propriedades dele naquelas terras, e não pôde encontrar as filhas dos três homens bons, antes que os filhos do Otero Olavo às encontrassem. Todos os membros da ordem Rivera sabem da história do baú do tesouro. Mas, apenas alguns saíram à procura do baú.

-Uma das mulheres perdidas significa o baú?

-Não. Todas elas são as joias. Provavelmente, o baú seja apenas um lugar onde as mulheres estejam. Ele não me deixou ler o final do manuscrito, porque a história ainda não terminou. Na corrida pelo tesouro, alguns morreriam nas mãos de concorrentes inescrupulosos. Augusto, Otero, Ferreira, Norato e Valdir jà morreram. Mas, outros morrerão...

-Mas o que isso tem à ver com nós dois? Você disse que me ama, e, eu também amo você.–ela o abraçou.

Ângelo conseguia sumarizar seus sentimentos por Débora para conviver com ela uma união longe de ser matrimonial, apesar de ele ter de vê-la chegando do culto e indo direto para o quarto dele e fazê-lo assistir à ela tirando toda a roupa para se embrenhar com ele debaixo dos lençóis.

-Eu só quero que você beba desse vinho. –entregou o copo cheio à ela. - Não tenha medo. Em sã consciência, você não cometeria o coito comigo ou com quem quer que seja. Quando você acordar não terá lembranças desse amor induzido à poder de entorpecentes.


Débora, ao acordar, foi para a casa de Ângelo, tomou banho e se vestiu com um vestido à caráter de luto. Os cabelos soltos com presilhas nas laterais da cabeça dela enfeitavam suas costas com uma samambaia ornando um precioso vaso de porcelana, delicado e bem forma. Leu alguns trechos bíblicos e deixou a bíblia aberta no Salmo 91, sobre a mesinha de centro na sala da casa de Ângelo. Em seguida foi à estante e pegou o porta-retratos com Ângelo sozinho na imagem. Sentou-se no sofá e ficou à deslizar a mão na pequena moldura. Ele trazia um sorriso encantador nos olhos e boca. Ela trazia no peito um coração cheio de amor pelo garoto que ela não conseguia esquecê-lo sequer por um momento, e continuaria cultivando o mesmo sentimento durante o tempo que fosse necessário. Débora deu-se conta de que Mathias não seria mais o empecilho para que ela realizasse os seus desejos mais íntimos de se entregar de vez à Ângelo.

Quando Ângelo entrou na casa a encontrou comprimindo a fotografia dele entre seus braços em cruz e os seios.

-Oi Débora, que bom que você continuará morando aqui. –disse ele um pouco meio sem jeito.

-Vem pra cá, sente aqui comigo. –ela o convidou com um sorriso angelical.

Ângelo correu as mãos nos cabelos os ajeitando no alto da cabeça e foi de encontro à ela. Reparou os ambientes da casa e sentiu o cheiro de lavanda usada no piso cerâmico. O ar sério do rosto dele se transformou em satisfação garantida pela constatação do esmero com que Débora cuidou da casa. Mas, havia uma sombra de preocupação no semblante dele, que deixou Débora sobremaneira preocupada também.

-Como foi o seu dia hoje? –ela quis saber.

-Normal. –disse ele beijando o rosto dela ao se sentar. –E o seu?

-Ainda estou um pouco atribulada com o que houve com o Mathias, mas vai passar, eu sei que vai. –Depois da fala, Débora ergueu o braço de Ângelo e o colocou em volta do pescoço dela. –Eu estava olhando a sua foto. Aqui você tinha dezesseis anos. Sorriso e olhar cheios de visgo para prender a gente em sua rede.

-Eu não me pareço com James Dean, como você dizia.

-Quando você tiver seus vinte e poucos anos, você verà que eu estou falando a mais pura verdade. Dà uma clareada nos cabelos. –sugeriu passando a mão nos cabelos dele.

Com o carinho, ele olhou direto nos olhos dela e percebeu que ela estaria escondendo algo muito importante dentro de si mesma. –O que foi? Fala pra mim o que é que te perturba.

-Nada. Eu só quero dormir mais cedo hoje.

Ângelo a deixou ir, mas esperou que ela no quarto para então ir até à ela. Percorreu o olhar nela e notou que ela vestia um longo preto, justo no corpo, deixando em evidência a silhueta do corpo escultural dela.

-O que foi? Você não gosta que eu me vista assim? É que eu senti que eu teria que vestir de luto, por causa do Mathias.

-Não, não é isso. Mas, eu acho que nós devemos fazer do jeito que a sua religião exige. Não teremos relações sexuais e nem dormiremos na mesma cama.

-E a Fátima e a Darlene?

-Eu vou falar com as duas.

-Eu vou com você. A Fátima está na cozinha.

Débora foi abraçada à ele até a cozinha.

-Fátima, o Ângelo quer te falar uma coisinha.

Sem jeito, Ângelo se aproximou de Fátima na pia lavando vasilhas.

-Fátima, eu e Débora estamos querendo privacidade...

-Eu jà sei Ângelo. –disse ela enxugando as mãos com papel-toalha. –Você não precisa me mandar embora... eu só preciso de mais alguns dias. – saiu muito triste.

-Fique aqui comigo, não và atrás dela. –disse Débora segurando os braços. –Falta a Darlene.


                                                 ***


Darlene ia de um canto à outro no quarto. Ela não gostou nem um pouco de saber que teria que arrumar outro emprego. Foi muito humilhante para ela, ter que ser demitida do trabalho por Débora que garantiu estar passando à ela a ordem de demissão feita pelo próprio Ângelo.

Colocou suas roupas dentro da mala, a zipou e saiu do quarto caminhando depressa e bastante decepcionada. No corredor ela topou de frente com Ângelo com os braços abertos e as mãos espalmadas em uma e outra parede.

–Olha aqui Ângelo. –disse ela pondo a mala no piso. –Você não precisava ter feito como fez comigo. Se não queria que eu trabalhasse mais na sua casa era só chegar a mim e me despedir de uma vez. Eu nunca fui empregada doméstica e talvez não estivesse fazendo o meu trabalho como você gostaria que eu fizesse, mas eu estava dando o melhor de mim. Se você achava que não estava bom, era só me pedir para eu me esforçar mais, e...

–Tà bom, amor meu. Eu sei que você é muito competente e...

–Tà bom nada. Eu estou indo trabalhar na casa do empresário Alceu que veio aqui no período da tarde. Ele vai me pagar muito bem. –pegou a mala.    –Fala para a Débora, que eu não teria coragem de tratà-la do jeito que ela me tratou. –botou a mala no chão. –Ângelo, ela me mandou ir procurar emprego em uma boate de streeptiesi. Eu quase a mandei ir tomar banho na soda. Eu não sei o que a Débora acha de mim, para ter tanto ciúmes de você comigo. Quem devia trabalhar numa boate era ela com aquele corpo de màrmore esculpido e com aquele cabelão, ninguém a veria pelada.Você acredita que ela me disse ontem, que eu seria uma pedra de tropeço na vida de um casal? ... O que foi Ângelo?

Ele olhava para o teto o tempo todo e mantinha-se sério.

Era compreensível a desconfiança de Débora em relação à presença de Darlene no convívio do lar. Darlene estava cada vez mais bonita vestindo roupas que caíam bem no corpo dela, e se maquiando regularmente de modo que ela pudesse se inscrever em um concurso seletivo para atrizes de telenovelas. A pele clara sem lourice artificial ganhara um tom de cor róseo. Elogios eram dados à sua beleza por onde quer que ela passasse nas ruas do bairro, ainda que fosse com seu caminhar ràpido e arrojado, os homens não a deixava passar despercebida. Débora conversou com alguns crentes sugerindo à eles, irem à casa de Ângelo para evangelizarem Darlene, e, quem sabe convencê-la à namorar um servo de Deus.

–Me dê a sua mala. –pediu pegando-a. – Você não vai trabalhar para Alceu nenhum. –falou e seguiu para o quarto.

Darlene fez a barra folgada da jardineira florada, esvoaçar em volta de suas pernas andando ràpido atrás dele no pequeno espaço do início do corredor até ao quarto dela. Ângelo jogou a mala em cima da cama e cruzou os braços, permanecendo calado e muito sério.

–O que significa isso, Ângelo. Ou eu vou embora, ou eu fico, porque assim não dà. –decretou  indo à mala sobre a cama. –Por mim eu ficaria aqui mesmo, mas...

–Darlene. – disse ele segurando a mão dela com a alça da mala. –Eu preciso de você aqui comigo. Não me abandone.

Toda a vida dela fora vivida em meio à pessoas que a abandou, quando recém, o abandono de seu pai a privara de ao menos ter sido balada por ele. Seu marido, nem se fala. E então, como ela retribuiria à Ângelo a atenção, o carinho e o afeto que somente ele à dedicou em toda sua vida marcada pelo abandono? Darlene pensava e soltou a mala. Abandono, não, ele não merecia. Ela se pôs cara à cara com ele.

–Olha, Ângelo, eu só não vou embora porque eu gosto muito de você, e acho que você deve gostar de mim também, senão não estaria aí com essa cara de quem pediu e não ganhou... –dizia ela prendendo os cabelos detràs das orelhas.

Ângelo levou as mãos nas aberturas laterais da jardineira dela fazendo-a se arrepiar ao sentir as mãos dele se encontrarem e estacionarem na espinha dorsal dela.

–Ai, que mãos quentes. É a primeira vez que eu uso bustiê por baixo dessa jardineira. Ele ficou curto e, eu o usaria para dormir. Mas fiquei com tanta raiva da Débora que resolvi vestir qualquer roupa por cima dele e ir logo para a casa do Alceu. Só que agora eu não vou mais. Ângelo, eu me lembrei. Qualquer noite dessas eu terei que dormir no apartamento dele. Ele disse que foi você quem disse à ela que eu conheço os melhores restaurantes e casas de festas aqui em São Paulo. Mas eu só irei quando você puder me deixar na casa dele e no outro dia ir me buscar. Ele me disse que o filho dele vai passar uns dias com ele, por isso eu não precisarei ficar dormindo lá sempre...

–Tà, Darlene, tà. Agora me abrace e me deixe pensar um pouco em nós dois, sentindo o seu cheiro, o calor de sua pele, o aconchego de seu abraço...

–Tà bom, pode sentir que eu estarei sempre perto de você.

Abraçado à ela Ângelo fechou os olhos e escondeu sua cara de choro. Darlene o cativou com toda a sinceridade e lealdade dela. Seria duro para ele, ter de deixá-la sair de sua casa e de sua vida. Ele à amava com todas as suas forças.

–Ângelo. –disse ela quase com um murmúrio de voz. –Eu queria dançar com você. Quando eu era solteira e ia às festas, eu não dançava com ninguém. Casada, foi que piorou. O meu marido me deixava sozinha na festa e não me deixava dançar com homem nenhum. Numa noite em uma festa, um homem me chamou para dançar, só que, ele disse assim: Ei gostosa, vamos dançar. Eu o mandei ir às favas. Não sei o que aconteceu depois. Na manhã do outro dia o Otero me encontrou cheirando à álcool e suor. Eu só me lembro disso, porque o ele vivia me dizendo que eu o estava traindo sempre com vários homens.

“Filho da mãe do caramba.” Ângelo o excomungava em pensamentos.

–Vamos para a sala antes que a Débora chegue. Eu posso dançar com a Fátima também?

–Pode. Eu gosto dela. Eu fui buscar os resultados dos exames dela. O médico me entregou pessoalmente. Ele me mandou te dizer que ele demorou um pouco à envià-los por causa de algumas explicações em pontos específicos do diagnóstico que você o teria pedido para esclarecê-los bem. Daí ele me pediu para dizer assim à você: Ângelo, o que se vê através do espelho é... é o quê, Ângelo? Eu não entendi. Ele te mandou um abraço.

“É sempre o oposto da imagem real” – pensou Ângelo.

–Não é igual à você. Linda sendo vista em qualquer ângulo, lugar, ocasião, momento, situação, por dentro por fora e...

–Tà bom, eu acredito. Pode parar de me conversar.

–Interessante, eu te escuto com paciência até você terminar sua fala. Mas, quando eu quero falar de você tudo que eu tenho para falar da sua importância em minha vida, você não deixa.

–Fale quando nós dois estivermos dançando. Agora vamos para a sala. A Débora parece uma maluca. Às vezes ela está boazinha com a gente, mas tem horas que... Ângelo, eu vou cortar os meus cabelos de novo. Uma vez, uma mulher cortou meu cabelo igual corte para homens. Eu acho que foi na época que eu estava grávida...

-Chegamos. Ligue o som.

–Tà bom. Ah, quem deu referências minhas ao Alceu foi o tal senhor Amaro que você fala tanto sobre ele.

-Então, você está sendo bem representada. O senhor Amaro está me fazendo um grande favor.


Sentada rente a mesa do escritório de Alceu, Darlene o esperava. Enquanto isso, ela considerava que eram dias de convívio domiciliar conturbado por razão da desconfiança e do ciúme exagerado de Débora em relação à ela e Ângelo.

Foi quando Alceu chegou acompanhado por Valquíria.

-Então tudo bem. –disse Valquíria. –Agora, eu vou contratar o pessoal para fazer a reforma da outra casa. Quanto à você, Alceu, cuide de voltar para o trabalho, e vê se não incomoda a empregada. -ela deu um beijo no rosto dele e o deixou no escritório.

-Doutor Alceu, eu aprecio muito as residências com aspectos grotescos. –disse ela não demonstrando entusiasmo algum em ver uma caveira de corpo completo no canto esquerdo da parede.

-Pode me chamar de Alceu apenas. Você não deve ser casada. Se for, o seu marido não se importa de ver você exibindo essa beleza toda? Seria impossível não sentir ciúmes de uma mulher linda como você.

Darlene sentiu-se apreciada, e isso à deixou lisonjeada por receber tais elogios. Com toda sua beleza, quando casada, jamais fora elogiada pelo marido dela. Tudo que ela queria era se vê livre do estigma da viúva mal amada. Mas, para não perder a fama de mulher de respeito, ela não se deitaria com Alceu e nem deixaria que ele à tocasse, pois, para ela, fazer sexo com ele estava fora de cogitação.

-Você está me assustando. –disse ela.

-Se não estiver gostando eu posso parar de te chatear. Mas, se, atenção e amor te fazem falta, eu posso lhe proporcionar sem nenhum embaraço.

–Meu Deus! –ela exclamou baixinho. –Você é louco, eu... – pensou em não dar resposta alguma. –Você é muito corajoso. –e continuou pensativa batendo a ponta da caneta na folha em branco. –Eu terei que me acertar de que não haja nenhuma cláusula que me impeça de eu me demitir quando eu bem entender.

-O Ângelo jà me pôs à par de seu profissionalismo. Assim que consentir que está tudo certo com a papelada, eu acredito que nos daremos muito bem.

-Vou ver o que posso fazer.

Alceu levou Darlene para o quarto com uma curiosidade louca de tirar prova do que Ângelo o havia contado sobre ela. Ele pediu à ela que fosse arrumar as roupas dele, que

estavam desorganizadas sobre a cama no quarto dele. Darlene estranhou a proposta, afinal de contas, ela não era empregada doméstica de homem nenhum, e, sobretudo, porque motivos ela estaria em uma casa estranha, com um homem estranho que, - na concepção dela, - a estaria dando ordens como se ele fosse o marido dela.

-Darlene se sentou na cama e o observou indo em direção à porta da sala.

-Pra que você fechou a porta? –ela quis saber.

-O quê? –Alceu fez que ele não entendesse a pergunta. -Pra que você... – ele ia devolver a pergunta. –Nossa! –exclamou vendo-a sentada de lado com as pernas cruzadas. –Que teteinha. –disse vendo-a se esticando para pegar uma camisa sobre a cama.

-Seu Alceu...

-Me chame de Alceu, somente.

–Por que você trancou a porta da entrada? –dobrando a camisa, Darlene perguntou.

-Por que está ventando e trazendo poeira pra dentro de casa.

-Você tem camisa de todas as cores.

-Essa cor-de-rosa deve ficar linda em você. Veste ela pra eu ver. –entregou a camisa à ela. - Tire essa roupa.

-Não.

-O quê que têm mulher? Tira. –ele insistiu querendo tirar a blusa dela.

-Estamos apenas nós dois aqui, e pega mal eu tirar a blusa dentro do quarto com você perto de mim...

-Eu fechei a porta.

-Mas só que eu vou abrir. Vai que chega alguém aqui e pense que a gente está...

-Fique aqui. -disse ele com voz forte.

Darlene voltou à se sentar e continuou dobrando as roupas. Alceu foi passando a mão na perna dela.

-Darlene, quantos anos você têm?

-Não digo. –respondeu sem olhá-lo.

-Você está namorando o Ângelo?

-Não. –respondeu tirando a mão dele da perna dela e se afastou.

-Senta aqui mais perto de mim. Por que você não que me experimentar?

-Porque não. –respondeu secamente.

-O seu ex-marido não pôde te fazer mulher? –perguntou pegando no queixo dela. Darlene nada respondeu e pegou a última camisa para dobrá-la. Ela estava com muito medo dele.

-Pronto terminei. –falou rápido e se levantou da cama.

-Então vamos para a cozinha.

Ela seguiu na frente, olhando para a porta da sala, sentindo vontade de sair correndo.

-Darlene, você sabe cozinhar muito bem.

-Eu sei que sei. –respondeu rudemente pra disfarçar o medo. –Aqui também está tudo limpo. - falou vendo-o abrindo a geladeira e pegou a garrafa de vinho e dois copos.

Ela observou que a chave da porta da sala não estava mais na fechadura e, começou à entrar em pânico.

-O que você está querendo fazer comigo?

-Nada, eu só pensava que você fosse uma mulher liberal. Mas, eu não iria forçà-la à nada.

-Eu quero ir embora. –disse Darlene apavorada.

-Não tenha medo Darlene. –disse ele terminando de encher um copo e o entregou à ela.

-Eu não quero beber mais nada. Eu quero ir embora. –falou quase em desespero.

-Tudo bem, tudo bem. Beba e eu vou buscar o Ângelo.

Acreditando na promessa ela pegou o copo d’àgua e, meio trêmula começou à beber.

-Isso. Bebe, bebe e se acalme. –Alceu falou alisando os cabelos dela.

-Eu não vou beber coisa nenhuma. –deu-lhe um empurrão e saiu correndo.


Valquíria encontrou Alceu sozinho, só de ceroula preta, sentado na cama dele. Ele respirava profundamente e mantinha os olhos fechados. Ela tirou o vestido e o sutiã, todos molhados, ficando apenas com calcinha, se sentou de costas entre as pernas dele e roçava o pescoço no rosto dele. Seria a preparação para outra extravagância sexual incestuosa, uma vez que, por toda a vida, ela não saberia ao certo, à qual dos três irmãos seus amantes ela devesse chamar de marido. Ela tinha a certeza de que conseguiria material de provas suficiente para garantir à Ângelo, que ela não era a mãe dele. Para ela, o tempo de vacas magras estaria chegado ao fim.

-O que você fez com a empregada que saiu feito uma louca, quase passando por cima de mim?

-Não te interessa. Você sabe quem é o mentor e protetor de Ângelo? –ele perguntou enquanto deslizava as mãos nas coxas dela.

-É o velho Cândido.

-Você ainda não foi informada à respeito dele.

-Então vamos logo com isso porque hoje eu quero me entregar para o Ângelo, sem a intromissão daquelas ciumentas. E vou me saciar de sexo com ele.

Alceu à encarou com seriedade, mas não disse nada à respeito da tara dela por Ângelo.

-Fale-me de Cândido Plates Rivera. –disse ela mordendo de leve os dedos da mão dele.

-Ele é um homem muito importante. Profundo conhecedor de todas as artes reais que todos conhecem apenas na teoria. Através da arte musical ele consegue influenciar pessoas. Suas falas contêm mensagens subliminares que induzem os ouvintes à se tornarem revolucionários, mesmo sem causas para defenderem, ou às tornam mansas e inofensivas. Muitos eruditos estudam as composições dele, mas à maioria ou, talvez todas elas, são censuradas e proibidas de serem tocadas nas ràdios brasileiras. Mas as autoridades não ousam tocar nele. Sabe por quê?

À ser interrogada, ela virou-se para ele e parecia ter se dado conta de que Plates Rivera não era apenas o homem rico que a trocou por outra.

-Não sei. –respondeu ajeitando para tràs os cabelos frisados.

-Porque ele é o grande idealizador e formador de conceitos sobre o desenvolvimento intelectual. Isso faz dele, o intocável. Através do seu conhecimento sobre psicologia humana, ele pode conhecer suas intenções mais ocultas, até mesmo pelo seu modo de andar ou ficar parado. O homem é mesmo um manipulador e controlador de mentes humanas, e repassou todo seu conhecimento ao pupilo de ouro Ângelo Ràusen Junior, que passarà à assinar pelo sobrenome Rivera, se nós não conseguirmos destituí-lo até o próximo dia 06 de junho, quando ele completar dezoito anos.

-Talvez eu consiga conquistar o Ângelo. Aí teremos mais possibilidades de nos abastar de dinheiro.  –disse ela alisando a barriga.

-Você não entendeu. Cândido sabe como decifrar pessoas. Na música ele decodifica sinais gràficos da escrita musical, e usou desse talento para educar aquele que ele captou honradez em seu caràter. Ângelo é o nome do privilegiado.

-Mas o que tem à ver todo esse privilégio dele com o meu caso com o Ângelo? -inquiriu mordiscando os mamilos dele.

Alceu levou as mãos na cabeleira lisa acomodando os longos fios no alto da cabeça, prendeu o ar e em seguida o soltou por vias nasais, para então responder.

-Acredita-se que Cândido seja um iluminado que recebeu dons do próprio Deus. Os elementos da estrutura terrestre são suas fontes de conhecimento. Quatro homens morreram no encontro com ele, incluindo Monsenhor Olavo I.

Valquíria segurou nas mãos dele e às levou à sua virilha em brasa viva, enquanto que as mãos dela apalpavam o membro dele sob a ceroula.

-Cândido não tem noção de quem eu sou. Eu e meus irmãos somos filhos de um pai só com mulheres diferentes. Temos genética produtora de embriões férteis, e todos de nossa família possuem histórico de poligamia. Contudo, eu terei que dar continuidade e ser o líder maior do clã dos Monsenhores. Serei o Grã-Monsenhor II. –disse abrindo os braços e serrando os punhos.

-Por que Ângelo é tão especial para Cândido Plates Rivera?

-Ninguém conhece a origem dos pais dele. Linhagem familiar, de onde ele veio. Cândido afeiçoou-se à ele, por achar que a origem daquele garoto, são sombras de sua própria origem.

-Eu não acredito em nada disso e, o que eu fiz naquela noite foi por dinheiro.

-Quem matou Otero, Ferreira e Norato, na noite em que as crianças nasceram foi você?

-Nenhum deles fui eu quem o eliminou. Outro alguém os matou. –Valquíria revelou.

-Eu os mataria para ter as viúvas sob meu controle. Ângelo não é filho de Augusto e Fátima.

-E se for? Quem o tirou vivo daquela casa, e, quem seriam os pais dele? Eu também perdi um filho do Augusto naquela noite. Talvez seja ele.

-Não sei. E não ousaria submetê-lo à um exame de sangue.

Houve uma pausa para carícias íntimas entre os dois. Valquíria embrenhou as mãos de dedos finos e unhas grandes e vermelhas nos pelos grisalhos do tórax de Alceu. Os movimentos de suas mãos eram vigorosos, respirações ofegantes e acompanhadas de balbucios de palavras torpes.

-Por que foi que você não entregou Jorge à mim?

-Você, seria suspeita.

-E os dois podem ser filhos de Augusto, não é isso?

-Sim. Faça você as análises com o sangue de cada um deles.

-Você sabe com quem você está conversando?

-Com a minha Valquíria.

-Acho bom que você não me subestime, seu, assassino.

-Não fui eu quem matou todos aqueles imbecis do passado. Foi você. E acho que você matou o Mathias.

-Chega. Já falei que não fui eu. Só me diga quem será os beneficiários dos seguros de vidas do Mathias morto e do Paulo ainda vivo?

-Não sei. Mas o neto ou a neta de Cândido Rivera me restituirá o meu dinheiro.

Valquíria se ajoelhou na cama para se livrar da única peça íntima que ela vestia.

-Não. –disse ele impedindo-a de ficar completamente nua. –Và tomar um banho. Eu estou cansado. Vou me deitar um pouco para um cochilo. Descanse também.

-Sim, futuro Monsenhor II. –disse e o beijou na boca.

Valquíria não se vestiu para ir ao quarto dela tirar a calcinha e voltar nua passando pela sala e indo à cozinha. Fuçou na gaveta do armário e pegou um objeto perfurante. Era um punhal com fio de dez polegadas. Com a arma em suas mãos ela voltou para o quarto dela.  Depois de guardá-lo debaixo do travesseiro, e se deitou.

Quando as lâmpadas não iluminavam mais, e a densa escuridão se formou no interior da casa, Alceu se levantou, entrelaçou os dedos das mãos e deu uma contorcida no corpo. Sem acender a luz do quarto ele enfiou a mão direita debaixo do colchão. Dali a mão retornou empunhando o punhal.

Na calada da madrugada, pés humanos caminhavam suavemente pela casa escura. De olhos fechados, mas conseguindo desviar das paredes e móveis que se punham à sua frente, uma sinistra figura ia lentamente se aproximando do quarto onde estaria a vítima de seu instinto assassino.

Na hora de maior silêncio, dois joelhos encostaram-se à travessa lateral de um leito, duas mãos erguidas seguravam firme um punhal para com ímpeto e peso suficiente estaqueá-lo no coração de alguém e garantir-lhe o sono eterno.

Um som opaco emitido pelo contato de um corpo caindo sobre o colchão de molas, antecipado por um grito horrendo quebrou o silêncio da noite.

Quando a luz do quarto se acendeu, se pôde ver um punhal de cabo da cor de cobra coral enterrado nas costas de um corpo debruçado sobre a cama. Agonizando e se esforçando para pronunciar suas últimas palavras, quem morreria em breves segundos ergueu a cabeça para então dizer: - Eu sou... –e morreu. O sangue fresco escorria encharcando os lençóis. Não havia remorso naquele espírito perverso, assassino. Apenas a sensação de ter feito o que devia ter feito desde o dia que os dois se envolveram numa relação de ambições, ódio e assassinatos.



                                                    *


Passaram-se dias, e Fátima não havia deixado a casa do Ângelo. Débora a humilhava bastante a tratando como à uma intrusa. Não bastasse o fato de ter que aturar as amolações de Débora, Fátima achava que Ângelo não poria Darlene para fora de casa. Ela sentia-se ainda mais desprezada. Darlene contou à ela algo muito confidencial. “O Ângelo tem uma doença transmissível. Eu o aceito com a doença. Você e a Débora não cuidariam dele como eu posso cuidar.” Fátima bateu os pés e assegurou que ela não deixaria Ângelo enfrentar a doença sem o acompanhamento feito por ela que saberia como cuidar de um doente portador de qualquer tipo e estágio de doença transmissível.

Fátima decidiu que ela poderia até não morar debaixo do esmo teto com Débora e Ângelo, mas, ela não voltaria para São Paulo enquanto não tivesse a certeza de que ele estivesse curado. Foi para o trabalho confiante de que ela conseguiria com o patrão Paulo, a garantia de sua estada permanente em solo goiano.

No final do expediente, Paulo convidou Fátima para ir até ao bar com ele para juntos, tomarem um drinque e logo mais irem à uma festa. Ela não estava se sentindo à vontade, pois, Ângelo não concordaria se acontecesse de ela se envolver com o patrão. Mas, desde a primeira vez que os dois fizeram sexo, - teria sido jà quatro vezes, - o argumento de Paulo foi convincente. - Usou a desculpa do homem rico que só se envolvia com mulheres que só queriam o dinheiro dele. E, ele só queria sair sem compromisso, para algum lugar com uma mulher bonita e, sobretudo descontraída, e que era muito quente na hora do prazer.

O ambiente não era agradável, a clientela feminina não era composta de mulheres que se possa confiar. Fátima começava a achar que Paulo também era alguém que merecia cuidado e atenção dela, além de sexo. Sobretudo, ela também precisava de uma casa para morar, pois, ela jà não suportava mais a implicância e o ciúme de Fátima em respeito à presença dela na casa de Ângelo.

Depois de flagrar algumas biscates dando piscadas para Paulo, Fátima resolveu ir embora sozinha, mas ele à acompanhou até a casa do Ângelo, alegando que a noite ainda era uma criança e que eles haviam combinados de irem à uma festa. Depois de muita insistência, ela decidiu satisfazê-lo, com uma condição. O Ângelo teria que ir junto. Ele torceu o nariz, mas aceitou a proposta. Para sorte dele, Ângelo não estava em casa. Saíra à passear com Darlene.

Havia um retrato na estante, era de Ângelo. Na fotografia o sorriso suave e o olhar profundo dele, com os braços cruzados sobre os peitos, jà revelava sua personalidade enigmática e extremamente perceptiva.

Paulo sentiu-se sendo vigiado por algo, ainda que inanimado.

-O que foi Paulo?

-Nada. É que agora, de repente me bateu uma lembrança de quando eu era mais jovem. Vendo a fotografia do Ângelo eu tive a sensação de que ele é um garoto excelente.

-Eu sei que você pode estar pensando mal de mim, mas eu não tenho nenhum interesse em dormir com ele.

-E comigo? Você gosta de passar a noite acordada?

-Não sei se estou fazendo o que é certo.

Paulo a abraçou sobre os ombros. Ela mantinha os braços ainda cruzados. E fica à pensar.

-Você é uma mulher maravilhosa. Eu jà estou apaixonado por você.

Fátima não estava convencida de que ele estava sendo sincero, mas por outro lado ela teria que arriscar e, estava arriscando permanecer em Goiânia, mesmo tendo que morar longe de Ângelo, porque ela não havia perdido a esperança de um dia tê-lo só para ela. Fátima fazia sexo com Paulo, mas o desejo dela era que fosse com aquele que à fez acreditar que o que era dela, ninguém o roubaria.

-Sabe, Paulo, nós não vamos mais à tal festa, e seria bom que você não ficasse aqui essa noite.

-A noite jà foi demasiadamente frustrante para você estando comigo. Eu não te causei boa intenção ao te levar naquele bar. Eu posso comprar uma casa pra você morar nela. Então, nós dois poderemos nos ver quando quisermos.

Era tudo que ela queria ouvir.

-Mas eu estou adorando essa noite. –falou tocando o rosto dele.

Fátima desconsiderou a possibilidade de o Ângelo chegaria em breve porque ela não tinha o costume de vir vê-la sem avisà-la por telefone.

Em pés no centro da sala, Paulo começou à despi-la. Ela olhou para o retrato na estante.

-Não, eu não consigo. –disse, ajeitando a blusa no corpo.

-Deixe acontecer. Apenas deixe acontecer como jà aconteceram outras vezes.

E ali mesmo, no carpete da sala, Fátima se entregou à Paulo para deixar que tudo acontecesse mais uma vez.

Não se podia dizer que houve entrega total da parte dela. Apenas o corpo dela fora entregue à Paulo. Sua mente foi tomada por um turbilhão de sensações desmotivadoras. Paulo desconhecia qualquer forma de sensação que não fosse insatisfação por estar possuindo uma mulher bonita e sensual, porém, momentaneamente frígida.

Depois da relação sexual, Paulo se levantou, vestiu-se e se jogou no sofá.

-Eu sei que o que passa na sua cabeça é muito confuso nesse momento. Mas eu não consigo encontrar razão para que uma mulher madura se veja tão incapacitada de se entregar inteiramente à um homem, simplesmente pelo fato de ela morar na casa do amigo do seu amigo.

-Essa casa é do Ângelo, não de um amigo dele. Eu devo respeitá-lo. –disse ela vestindo a blusa.

-Não Fátima, o que o Ângelo usufrui não pertence à ele. É do senhor Cândido Plates Rivera, que o tem como à um filho, por ele não ter um herdeiro...

Fátima sentou-se no sofá, vagarosamente e bastante intrigada com a descoberta.

-O Ângelo não me disse que ele era dono de propriedade alguma pertencente à Cândido, mas eu pensava que pertencia à ele.

-Sim, pertence, mas como usufruto. Enquanto ele andar na linha. Uma falha cometida por ele, ele perde tudo.

Fátima se levantou num impulso.

-Então, ele está... enganando... o senhor Cândido. –pareceu ter sido sem querer, pois Fátima tentou refrear a língua.

-Não. Ele é um bom garoto. – Paulo afirmou.

-Não é o que você está pensando. Ele é portador de uma doença e poderá morrer antes de alcançar a maioridade.

-Não diga asneira, mulher. –falou num rompante seguido de um levantar abrupto do assento.

-Eu sei o que estou falando.

-Você deve estar ficando louca.

-Não sou e nem estou louca. Paulo, a Darlene era enfermeira particular em São Paulo. Ela ficarà na casa dele porque ela não vai deixar que ele contrate uma enfermeira para cuidar dele. Eu o orientei à ir fazer alguns exames mais minuciosos, mas ele se recusou à fazer até mesmo um simples exames de sangue. Então eu o encorajei indo com ele ao laboratório. Fizemos juntos os exames, mas ele não quis me mostrar o resultado do hemograma realizado nele.

Atordoado Paulo se sentou novamente para ouvi-la.

-O que me causa estranhamento é o fato de ele não entregar à Darlene às prescrições médicas dele.

Paulo permanecia incrédulo, mas muito abalado.

-Isso não é nada bom. –disse Paulo preocupado.

Massageando as fontes do rosto, Fátima recordava de Ângelo dizendo à ela que ela não devia contar à ninguém a história de vida dele. Confusa, ela tentava entender o porquê de ter que manter sua história em segredo. “Por essa razão, talvez, ele teria me prometido que ele não faria sexo com Débora, e um dia teria eu de volta à casa dele para eu saber o quanto ele se esforçou para me ver feliz. “-ela recordou.

Chocada, ela pediu para que Paulo fosse embora.

-Que isso fique em segredo entre nós. –disse ele abrindo a porta para sair.


Seria muito constrangedor para Fátima, contar à Ângelo, que ela estava tendo um caso com Paulo. Queria culpà-lo por ter sido o responsàvel por ela ter se envolvido com o patrão. E também porque às vezes, ela se via à ponto de insistir que Ângelo ficasse para dormir com ela, mas como lhe doía a consciência por tal pretensão da parte dela. Fátima nutria um sentimento mesclado de amor afetivo e gratidão por tudo que ele fez e ainda estaria fazendo por ela. Mas no fundo ela admitia que o ônus da culpa pertencesse à ele também. Ele podia ter evitado que ela chegasse ao ponto de fazer sexo com o patrão intuindo que ele à acolheria, se caso, por força do que ela representasse à Ângelo, ela fosse despejada, -e foi, - da casa onde ela morava.

Jà aflita, ela viu o maço de cigarros que Paulo esquecera sobre a mesinha de centro e foi logo acendendo um. Havia ela deixado o vício desde a vinda para Goiânia. Fátima foi fumante por nove anos, após ter perdido o esposo e o bebê que ela nem chegou à vê-lo ao nascer morto e quase a levou à morte também.

Sua perna cruzada sobre a outra balançava numa demonstração clara que ela estava ansiosa. Sentia o peso da consciência lhe consumindo.

Quando ouviu o bater na porta, ela tentou se livrar do cheiro do cigarro, pensou em comer um pouco de creme dental, antes de abrir a porta para que Ângelo entrasse. Rodopiou pela sala, jogou o maço de cigarros em qualquer lugar e tomou a decisão.

-Ângelo, não entre. –disse abrindo e fechando a porta às suas costas. –Eu tenho que te confessar algo que talvez te faça me escorraçar dessa casa.

Com as mãos atrás das costas, Ângelo deixou que ela o abraçasse e aconchegasse a cabeça em peito.

-Está escuro aqui fora minha linda. E assim você não conseguirà enxergar o que eu trouxe pra você.

O sorriso gracioso Fátima não viu, mas sentiu o toque e o perfume do buquê de rosas, que Ângelo encostou ao rosto dela. Ao pegar o buquê, ela o acolheu nos braços, abriu a porta e convidou Ângelo para entrar na casa.

As rosas do buquê: brancas e singelas. O abraço dado por ele em Ângelo: forte e atormentado. Ela queria afrouxar, mas a indecisão relativa ao que ela pretendia dizer à ele, naquele momento atenuou-se mais.

Um leve fungar de Ângelo fez com que Fátima o desabraçasse.  Sentiu o cheiro de cigarro nela e no ar. Ele percorreu a sala e foi se sentar no sofá. Fátima ficou à olhar o buquê, como quem conversava com as rosas.

-Você voltou à fumar. -disse brandamente.

Ela assentiu com um espremer de lábios e foi se aproximando do sofá menor. Com cuidado pôs o buquê do lado dela no assento.

-São tantas coisas, Ângelo...

-Comece compartilhando comigo a que mais te apavora. –friamente ele falou.

Fátima poderia começar pelo caso dela com Paulo, a prostituta que ela era em São Paulo, ou pela culpa que ela carregava, de ter causado tantas mortes naquela noite macabra no dia 06 do mês de junho de 1966. Mas ela estava ali, diante do garoto que o que surgiu em sua vida para mostrar à ela que o que passou, passou, e era momento de recomeçar.

-Ângelo, eu quero começar tudo de novo. Não me mande ir embora.

-Fátima, teria como recomeçar se as cinzas do passado parecem fumegar em sua consciência jà chamuscada de dúvidas e inverdades? O Paulo acabou de sair daqui. Eu sei que foi ele que te deixou assim.

-Por que você não me leva para conhecer o senhor Cândido?

-Ele não está em condições de saber sobre você.

-Seria para evitar que ele soubesse que eu sou a mulher que merecidamente tem o direito de herdar todos os bens materiais dele?

O semblante de Ângelo permaneceu suave, mas seus olhos emitiram um brilho, de compaixão, talvez.

-Eu só não queria que você sofresse novamente todas as injúrias, calúnias e prejulgamentos das pessoas maldosas que sabem do que aconteceu com o filho e o neto do seu Cândido naquela noite.

Fátima sentiu seu coração comprimir-se dentro peito fazendo-a admitir a si mesma que, ela estava sendo injusta com suas arrazoações. No arroubo de sua sensatez, ela se conscientizava de que, a digna de descrédito ali seria ela.

-Essas pessoas vivem aqui em Goiânia?

-Não sei. Eu não às conheci. Sou muito novo ainda. –sorriu. –Você não consegue se lembrar de nenhuma das pessoas envolvidas e vítimas daquela tragédia?

Olhando as rosas, Fátima demonstrou insegurança para relatar o pouco que ela conseguia recordar. Ângelo se sentou no piso e à puxou para que ela se sentasse do lado dele.

-Esqueça o buquê. A rosa mais preciosa aqui é você. –disse ele segurando o braço dela.

-Obrigada pela observação. –agradeceu se sentando. Ângelo, eu estou tendo um caso com o meu patrão. -com jeito de quem disse o que não deveria tê-lo dito, Fátima, aguardava o resultado por ela ter dito o que ela relutava em não contar à ele.

-Você jà é bem crescidinha. –disse com naturalidade refrigeradora. –Mas, eu não vou te perder para ele. Você não vai mais trabalhar para ele e nem irà embora dessa casa.

Ela o abraçou com ímpeto que o fez cair para de lado no piso, e se deitou em cima dele.

-Eu te amo, eu te amo, eu te amo. Te amo, te amo, te amo. Te amo muito, Ângelo.

-Eu também, Fátima. Eu também. Muito.

-Então eu posso continuar aqui?

Ângelo se levantou erguendo-a com ele.

-A casa é nossa,e é você quem diz quem pode e não pode morar nela.

-Então và falar com a Darlene e impeça que ela và embora. Deixemos a Débora morar aqui também, se ela quiser. Eu não ligo para o jeito dela tratar as pessoas.

Ângelo acoplou a cabeça dela em seus peitos.

-Você é muito especial Fátima. Eu também te amo muito. -e beijou o alto da cabeça dela.








                                                      *

Paulo estava à beira da morte e pediu que João Pedro avisasse Ângelo para ir vê-lo em sua casa. Ele preferiu não ficar hospitalizado. Se tinha que morrer em breve, que fosse no conforto de sua casa. A sala era mobiliada semelhante à uma biblioteca residencial, com amplitude suficiente para dispor de uma estante gigantesca em largura e assombrosa em altura à ponto de ter uma escada abre-e-fecha com seis degraus para uso de quem queira ler um exemplar das centenas de livros, todos eles em capas duras que esteja fora do alcance das mãos. Uma mesa de leitura particular, com uma luminária de pedestal curvado para o tampo. Todos os móveis são de cor ocre. Conta também com um barzinho abarrotado de bebidas destiladas. Jogos de sofás encostados às paredes e uma mesa quadrada com seis assentos almofadados com tachas douradas nas bordas laterais dos encostos.  O dono do lugar é Paulo Vidigal, o bonachão do ramo de seguradoras.

-Bom, Ângelo, - disse Paulo se sentando com muito esforço em sua cadeira de leitura. –O nosso encontro aqui terá um caráter de confissão.

-Falemos sobre a sua participação naquela tragédia no Braz. Eu prefiro saber sobre você primeiro.

Paulo arranhou a garganta em frangalhos, afrouxou o nó da gravata e se ajeitou na cadeira colocando os cotovelos sobre a mesa e esfregou as mãos.

-Talvez eu não tenha conhecido você direito, mas estou ombro à ombro com Cândido Plates Rivera, o seu mestre...

-Eu sei muito sobre a sua representatividade para ele. Mas estou aqui pra falar de você no caso Fátima. –disse Ângelo incisivamente e sem querer delongar a conversa.

Paulo suspendeu as mangas da camisa deixando à mostra os braços finos e o relógio em ouro que parecia querer escorrer por sua mão. No enrubescer do rosto, as rugas se uniram umas as outras.

-Sabe o que eu estranhava? –Ângelo perguntou pondo os cotovelos na mesa e cruzando as mãos.

-Não sei. - Paulo respondeu movendo os ombros para cima.

-Eu achava que você tinha muito zelo comigo. Mas não respeitou à...

-Ângelo, Ângelo. –disse Paulo. –Você tem que entender como as coisas funcionam. Eu sou homem e não levo muito jeito para ser fiel à mulher nenhuma...

-Você não foi homem o suficiente para evitar que as mulheres e bebês fossem mortos à dezessete anos atrás.

Houve silêncio. O ambiente bem iluminado por lâmpadas fluorescentes no teto de pé direito alto. Por mais que Paulo quisesse disfarçar, não teria como esconder o rubor que ia se formando em sua face. Ângelo era muito pertinente em tudo que ele fala e trata. Paulo não estava enganado à respeito da personalidade e caràter dele, adquiridos nos anos de seu discipulado com Cândido Plates.

-No início daquela noite, Augusto, eu e meus dois irmãos voltávamos do trabalho. Íamos jantar na casa dele. Num dado momento, Ferreira sugeriu que nós fôssemos à um bar para comemorarmos a conclusão das tarefas naquele dia. Norato usou o telefone do bar para fazer uma ligação. Valquíria atendeu a ligação e disse que a esposa do augusto, Fátima, estava sentindo dores para dar a luz. Ao receber a notícia, Augusto deixou o bar imediatamente, e sozinho no carro, ele foi dirigindo até à maternidade. Augusto não chegou à ver o fruto do seu amor com Fátima. 

-E você, viu as crianças?

-Eu liguei em minha casa. Minha mulher me falou que ela e outras duas mulheres estavam indo para a casa do Augusto, pois o parto estava acontecendo lá. Então eu parti para lá sozinho também. Quando eu cheguei naquela maldita casa, tudo já havia acontecido.

-E o que você fez?

-Eu perdi o controle quando vi que a grávida estava morta.

-A sua mulher, também estava grávida do Augusto?

Paulo deixou transparecer todo o ódio que ele sentia por Augusto.

-Aquele maldito teve o fim que ele merecia. Mas, eu não o matei. –tossiu com dificuldade.

-Você ficou no bar. Não teria como provocar o acidente. Eu não te incrimino pela morte dele.

-Eu fui considerado suspeito, mas fui inocentado. Então eu entrei com processo...

-Foi justo. Você viu o bebê da Fátima, morto?

-Não. Faltava luz elétrica na residência, mas eu vi que alguém estava fugindo daquela casa naquela hora. Eu não o alcancei.

-Grande Paulo!

Paulo apenas deu tapas no ar. Ângelo sempre o chamava de doutor Paulo, mas depois que foi e voltou de São Paulo, ele o tratava como à uma pessoa qualquer.

Ângelo o analisou e percebeu que ele jà não apresentava mais a mesma feição em seu rosto que era redondo como uma bola de basquete. Sua pele, tempos atrás era como a de alguém que fazia cirurgias faciais reparadoras de rugas.

-Ângelo, tinha crianças dentro da cesta, e elas foram levadas para o senhor Cândido.

-Havia quantos bebês?

-Eram dois ou mais, três, eu acho.

-Quem são eles hoje?

-Não sei. Eu não convivi com eles. Eu temia ser acusado de tudo.

-Mas você sabe quem os trouxeram.

Paulo baixou os olhos e esforçou para responder, mas sua garganta parecia não poder mais liberar a voz. Seus cabelos já grisalhos e ralos o faziam parecer mais velho. Ele estava morrendo aos poucos.

-Valquíria pode te dar as respostas.

-Descanse. Eu jà estou indo. –disse Ângelo se levantando.

-E você com a Fátima? –Paulo quis saber.

-Em consideração à ela eu não a violei.

-A Fátima me contou que você é doente e vai morrer em breve.

-Era isso que você queria, não era? E queria que ela engravidasse de um filho meu, para ter o direito de matá-la e se tornar dono dos bens dela. Mas não foi dessa vez. Morra em paz, Paulo. E, não pense que eu sou o causador da sua morte. Você contraiu Aids por razão de seu apetite sexual desordenado. –e saiu deixando o moribundo sentado em sua cadeira esperando a morte. E morreu ali mesmo.


Ângelo chegou à casa dele e, ao entrar sentiu a atmosfera diferente. Fátima não foi recebê-lo na porta como de costume. Ao se dirigir para o quarto, ele ouviu um choro e soluços sussurrados.

-Fátima, o que aconteceu? –Ângelo perguntou ao abrir a porta e vê-la sentada no piso. Ela não estava nua, mas tentava cobrir os seios com os braços cruzados sobre eles.

-Me deixe sozinha, Ângelo. Eu não consegui cumprir o que te prometi, e fui causadora da morte do Paulo.

-Não diga tolices. Vem. Dê-me a sua mão.

Com muita vergonha e remorso ela deu a mão a ele que a ajudou à se levantar e, em pé, ela se jogou nos braços dele.

-Me perdoa! Eu falhei com você!

-Falhou nada. Agora deite nessa cama. Eu vou escolher uma blusa pra você se vestir com ela. Todo esse meio corpo monumental sem uma capa que o cubra, poderá me transformar em alpinista para escalá-lo. – falou abrindo o guarda-roupa.

Fátima ensaiou um sorriso sem graça, mas se sentou na cama, numa languidez deprimente.

Ângelo tirou do guarda-roupa uma camisa de seda branca, de mangas longas e com capricho a vestiu em Fátima, abotoando botão por botão até ao penúltimo deles.

-Até despenteada e sem maquiagem, você é linda. Naturalmente, a minha flor mais preciosa. Eu amo você, muito, sabia?

-Não sei. Você me entregou nas mãos do Paulo. Talvez você pense que eu sou mesmo merecedora de ser chamada de maldita e devesse morrer daquela doença maldita. Mas eu não sou mà, Ângelo, e, eu te amo tanto. Por que você fez isso comigo? –Fátima o indagou se deitando e fazendo o colo dele de descanso para sua cabeça atormentada. -O Paulo morreu doente. Você sabia da doença e mesmo assim me deixou fazer sexo com ele...

-Sim, eu sabia. Você possui imunidade à doenças sexualmente transmissíveis. Só que, eu disse à ele, que a sua genética te torna tão fértil, mas tão fértil, que, se você se masturbasse com um pênis de silicone, você engravidaria dele. Mas, na verdade, o seu tipo sanguíneo produz anticorpos de defesa à doenças crônicas, patológicas, venéreas e... quais mais são classificações das doenças?

Fátima se levantou com novo ânimo.

-Quer dizer que você não queria só se livrar de mim para sempre?

Ângelo também se levantou e segurou o rosto dela com as duas mãos.

-Jamais eu quererei perder você Fátima. De todas, você é a mais pura, a mais meiga e afàvel. Se eu te perder, perderei também a doçura do néctar contido dentro desse seu coração cheio de amor, o aconchego do seu abraço, a calma que me tràs a sua voz e a ternura do seu beijo. Não encare o meu modo de agradecer à você pela sua existência em minha vida, como o de um conquistador que quer conquistar uma mulher tão linda e inocente que ficarà muito rica em poucos dias. Eu te amo com todas as minhas forças e não deixaria que ninguém te fizesse sofrer mais do que você jà tenha sofrido.

-Pobre Paulo! –disse Fátima.

-Poucas pessoas comparecerão  no velório para prestarem suas últimas homenagens à ele. Ele não era homem de muitos amigos, suas relações com as pessoas não passavam de curtas conversas de negócios escusos fraudulentos, da parte dele. Não se culpe.

Fátima só queria que o tempo parasse naquela hora. Abraçada à ele, ela se sentia amada e protegida.

















                                                           *

                                                    Apólices


Com Maura, Ângelo se encontrou novamente para tratarem de assuntos relacionados à apólices de seguros.

-Eu soube que quando três homens morreram vítimas de punhaladas que lhes perfuraram os corações, indo varar nas costas deles, preliminarmente, alguém foi acusado de tê-los assassinados, mas a investigação levou os investigadores à concluir que eles teriam se suicidado. Isso aconteceu no ano 1966 em São Paulo, e os mortos eram os três irmãos, Otero, Norato e Ferreira...

-A Seguradora Rivera & Associados pagou altas somas em dinheiro à três mulheres que ficaram viúvas.

-Que ótimo. Você está à par dos trâmites dos processos relativos aos pagamentos das apólices de seguros de vidas desses três homens.

–Sim, eu era estagiária no departamento financeiro da seguradora em São Paulo quando Otero, Norato e Ferreira morreram em 1966. As indenizações foram as maiores de todos os valores indenizatórios que a seguradora pegou até então. Os seguros eram classe A ouro. No depoimento prestado à polícia, Valquíria, que representava as irmãs viúvas, declarou que antes das fatalidades, ela e os homens tiveram desentendimentos. Eles à acusavam de estar tendo um caso com um e outro, e que os supostos amantes dela teriam roubado todo o dinheiro da conta bancaria dela. Ela alegava que se alguém consumiu o dinheiro com amantes, este alguém seria o Otero, já que as contas bancárias dos dois eram conjuntas.

–Com a quebra do sigilo bancário do casal, foi encontrado um extrato de movimentação da conta corrente?

–Corretamente. Um alto valor em dinheiro havia sido transferido para a conta de uma empresa de seguros de vidas. Otero, Norato e Ferreira eram os assegurados. Mas, os seguros não cobriam mortes por suicídios.

–Então não houve o pagamento, e o caso foi encerrado em primeira instância?

–Havendo dado como encerrado o caso no ponto de vista criminal, Valquíria entrou com uma ação na justiça contra a seguradora requerendo indenização por danos morais e prejuízos materiais. A seguradora exigiu reabertura do processo em caráter criminalístico. E então se concluiu que os três foram assassinados por alguém que os apunhalou pelas costas.  Valquíria voltou a ser a principal suspeita de tê-lo assassinado. Mas, amparada judicialmente por advogados da melhor estirpe, ela seria inocentada outra vez. O proprietário da estipuladora de seguros, Cândido Plates Rivera determinou encerrar aquela questão antes de ser levada à fórum judicial e deliberou o pagamento. A fatalidade e o todo o processo jurídico envolvendo a seguradora e os sinistrados, Otero, Ferreira e Norato e as viúvas beneficiárias, foram iguais e tiveram o mesmo desfecho. –Maura respaldou se abanando.

Ângelo não considerou mera coincidência tais semelhanças entre os três casos judiciais dos esposos de Valquíria e de suas irmãs.

–Valquíria recebeu as indenizações sem nenhum empecilho?

–O diretor Amaro entrou com uma representação contra Valquíria, por ela ter sido culpada, ou no mínimo negligente à respeito das mortes das mães e seus bebês, as quais eram pacientes dela. Ela provou que ela esteve na casa de Fátima naquela noite, e que ela também poderia ter sido uma das vítimas à perderem a criança que ela esperava, e também ter morrido nas mesmas circunstâncias daquela hora. E confessou que ela não era médica profissional, sim, uma empregada doméstica do casal Augusto e Fátima, e que trabalhava na casa para conseguir pagar pela faculdade de medicina.

–A promotoria desconsiderou as apresentações feitas pelo senhor Amaro e decretou ganho de causa à Valquíria?

–Amaro não concordou com a determinação de Cândido Plates, e desfez a sociedade entre os dois. Valquíria não ficou com nenhum centavo do montante recebido. A consciência dela pesoum e ela doou o dinheiro para uma instituição de caridade e assistência à mulheres que também foram vítimas de algum tipo de impedimento para serem mães. É uma escola educacional para filhos e filhas órfãs de pais, aqui em Goiânia. 

-Tudo bem. Eu quero que a estipuladora seja a seguradora do senhor Amaro. O mantenedor serei eu. As seguradas serão algumas adolescentes. Eu passarei à você os dados pessoais delas numa outra oportunidade. Os nomes dos beneficiários estão escritos nesse envelope que eu te entreguei, junto com um singelo reconhecimento da minha parte à sua beleza e boa vontade.

Havia uma saliência no envelope, a qual, Maura a conferiu deslizando os dedos sobre o que seria uma pequena caixinha. Ela sacou-a de dentro do envelope e a abriu.

-Ângelo! –disse com voz sussurrada e olhar encantado. –É lindo Ângelo! Esse anel vale uma fortuna. - um solitário em ouro e diamante. O que isso significa? –quis saber após morder o próprio lábio inferior.

-Que tal a gente mudar de conversa?

-Para mim, um presente desses sugere um relacionamento mais íntimo entre nós dois.

-A minha intenção pode não ser tão romântica.

-Você me acende e me torna em cinzas ao mesmo tempo.

-Eu preciso que você faça o seu trabalho para eu me sentir seguro em relação à minha segurança pessoal, para então eu me envolver com você com maior confiança para um relacionamento mais duradouro. -Eu preciso que isso fique resolvido no mês passado.

-Engraçadinho. Eu jà disse que você pode contar comigo. –disse ela recolocando o estojinho ao envelope.

-Beijo, linda. –e selou os lábios dela.










*

Encontrando as moças

Do lado de fora da mansão, especificamente na piscina, três garotas de corpos esculturais, se exibiam ao sol. Uma delas, a Carina, de biquíni azul, ao ver Ângelo levantar para ir à cozinha, tentou se exibir para ele, tirando os óculos e indo até ele, pedido que ele apertasse o lacinho do biquíni em suas costas. Naquele instante ele jà havia chegado à porta da cozinha, a empregada Vanuza que jà estava vindo encontrà-lo na varanda, foi ela quem amarrou o biquíni da exibida, dando um nó cego só pra ter certeza que o biquíni não afrouxaria novamente. A dona do biquíni 

aceitou que a empregada amarrasse o micro sutiã, mas ficou batendo um pezinho no piso da varanda, com uma mão na cintura, a outra segurando os óculos e assoprando para cima. Quando Vanuza apertou bem o laço e disse “pronto queridinha”, ela disse “aiiii, obrigada” e voltou para piscina com cara emburrada, para garantir pelo menos o seu lugar ao sol.

E Jorge ali assistindo tudo que Ângelo fazia e despertava nas mulheres e também nas garotas.

Passou a manhã, as garotas foram embora, eles assistiram filmes na sala de àudio e vídeo, jogaram vídeo game Atari e tocaram teclado no quarto do Jorge. A palavra caramba era sempre dita por Murilo à cada cômodo visitado. Murilo teve que ir embora mais cedo e foi. Ângelo e Jorge fizeram muita coisa depois que as meninas foram embora.

Jorge resolvera ir para a casa do amigo para comentar com ele sobre à bem sucedida tarde de sàbado, afinal de contas, ambos, conseguiram aumentar a extensa lista de paqueras.

Decidiram não ir dormir cedo da noite, pois teriam que elaborar outras estratégias para abordar garotas. Ângelo foi excelente no improviso, pois as garotas surgiram num momento em que eles menos esperavam.

Ângelo providenciou uns pedaços de madeira, ateou fogo, e ambos ao redor da fogueira à beira da rua, sentados em tamboretes, sobre a calçada, faziam comentàrios sobre tudo que havia acontecido horas atrás.

-Ângelo, que história foi aquela de que você morava no Setor Marista, quando era criança antes de se mudar para o Setor Oeste?

Ângelo se levantou, fez pose de malandro velho para responder.

-Você acha que eu ia dizer que eu morava num barraco de madeira de piso de tàbua?  Jorge, você tà apaixonado? –brincou Ângelo jogando um pouco de brasa no tênis de Jorge. –Me fale aí da tal Fernanda.

-A Fernanda está sempre ocupada estudando piano. A Verônica está enchendo a cabeça dela contra mim.

Ângelo meneou a cabeça, encafifado.

-Fernanda, Verônica... sei. Deixe pra lá.

Fernanda era moça linda, inteligente e seria. Jorge temia se envolver com alguém com tantas qualidades. Lembrou-se do rosto macio, a boca de lábios rosados. Não. Ele não iria procurà-la.

-Que nada. Esquece. Quem apaixona é idiota. -disse num repente afastando das labaredas que começava arder-lhe o rosto. -Ângelo, agora nós só vamos paquerar as garotas da hora, falou? Eu não quero nem saber mais da Fernanda. -determinou jà em pé.

Ângelo imitou a posição de Jorge. Os dois fizeram o usual toque de mãos estalado e sentaram novamente.

–Ângelo, eu tenho que te mostrar uma coisa. –disse e mostrou à ele a fotografia meio estranha por se tratar de personagens irreconhecíveis.

Eram três mulheres vestidas de cortesãs, três adolescentes femininas e um músico trompetista encapuzado. E havia um pentagrama com sinais fermatas. –Você conhece esse que toca o trompete nessa fotografia?

–Não consigo reconhecê-lo. Jorge, você quer me esclarecer o que está havendo entre você e essas pessoas?

Jorge deu de ombros.

-E essas fermatas o que significam? –ele perguntou receoso.

–Jorge, o senhor Cândido preferiu à mim, e o senhor Amaro preferiu à você.

-Mas, nós dois continuamos sendo amigos.

-Só me explique por que é que esse instrumentista está tocando um trompete tendo essas mulheres e moças vestidas com vestidos negros e coroas de rosas nas cabeças delas.

–Eu não sei. O vovô Amaro comprou essas roupas e deu à elas, e pediu que elas as vestissem por alguns minutos. Aí o encapuzado pegou esse instrumento e se colocou entre elas e tocou uma música. No dizer do vovô, esse ensaio seria para a festa de apresentação dos herdeiros promovida pelo o senhor Cândido.

–Droga. –disse Ângelo preocupado. –Qual foi a música que ele tocava no momento?

–O silêncio. O que significa Ângelo?

–Silêncio para os mortais que ainda vivem e assistem à partida de um falecido, e anunciação da chegada do espírito do desencarnado ao mundo das almas.

–Ângelo, que coisa mais sinistra. Uma vez eu vi o vovô amaro e o senhor Cândido, vestidos em roupas tipo batinas de padres. Eles saíam de uma sala restrita à visitantes, que fica nos fundos da casa do senhor Amaro. Isso significa mortes?

–O seu avô não entende de música. Se quem a tocou foi ele usando esse capuz, foi por ela ser muito simples e fàcil de tocar. Jà o senhor Cândido é técnico e pràtico em relação à todo instrumento musical.

-De repente, ele quer impressionar os membros da Ordem Rivera que estarão presentes na reunião anual do conselho e na cerimônia de apresentação do herdeiro ou herdeira. –Jorge observou duvidoso ainda.

–Não há como saber se o músico é mesmo o senhor Cândido. Mas eu estou preocupado com essas pessoas e com todas essas sugestões contidas nessa fotografia.

–Eu não me preocupo nenhum pouco.

Mas, Ângelo se preocupou.

-R. C. Enarmônico. –disse Jorge analisando a fotografia. –Entendeu essas iniciais e a palavra? O imbecil nem sabe escrever inarmônico.

–Poderia ser: R de Rodrigo. C, de qualquer outro nome. Rodrigo foi o meu segundo nome.

–Então, o tal C não te considera como amigo dele. Inarmônico quer dizer algo negativo.

–Ele sabe escrever muito bem, Jorge. Essa escrita é do senhor Cândido. E a letra C é a inicial do nome dele.

–Ele diz que você é o menino de ouro dele...

–Será você ou eu. Você sabe disso. –disse Ângelo contemplando as labaredas tremeluzindo.

Ele entendia que trompete fosse sempre usado para a execução daquela canção em cerimônias fúnebres, por causa do timbre emitido por tal instrumento.

–Ângelo, diz mais alguma coisa sobre essa música.

–Jorge, quem possui conhecimento sobre música instrumental pode perceber que o som de todos os instrumentos de pistões agudos, em qualquer lugar que um deles esteja numa orquestra, ou até mesmo sendo tocado individualmente, ele soa distante, porém, muito discernido, como se as ondas sonoras emitidas por ele propagassem em linha reta para atingir um alvo invisível. No caso dessa música em especial, o músico almeja que o som desse instrumento viaje para outra dimensão e penetre o portal entre o mundo material e o espiritual. Mas, por que ela foi tocada entre mulheres e moças vestidas para ocasião de cerimônia fúnebre? Isto para mim é muito misterioso, funesto e parecido ao que eu li sobre sacrifícios de vidas humanas, no manuscrito que o senhor Cândido me fez lê-lo durante todo esse tempo.

–Eu não levo aquele manuscrito à sério.

–Mas devia. – disse Ângelo, e se calou.

–Ângelo, vamos mudar de assunto. Eu quero falar sobre garotas. A Fernanda é excitante sem a intenção de ser. E tem sensualidade capaz de me deixar à ponto de levà-la para a cama e fazer sexo com ela a noite inteira. O problema é que ela faz o tipo de garota que se faz objeto de prazer só para agradar o parceiro. Amabilidade enjoativa. É como a àgua que sacia a sede sem deixa sabor no paladar de quem a bebe, ou o soprano, pràtica e sem novidades. Verônica é pura sedução, apesar do modo de se vestir com roupas de Heavy-metal. Tem um jeito caloroso de falar, igualmente ao modo que ela se entrega ao parceiro na hora do amor. Eu sinto-me me consumindo no desejo ardente dela que se expressa até no transpirar da pele morena dela. Ela é puro tenor. Talvez não seja fàcil de saciar uma garota como à Verônica. Ela é fogo voraz, capaz de deixar o parceiro em cinza pura. Haja combustão sexual de um parceiro para equivaler à dela. Inexperientes como você não a agradaria na cama. Mas, a que me deixa confiante tranqüilo em se tratando de amor e sexo, é a lourinha Flávia. Eu diria que ela é a garota sensação que provoca sensações imensuràveis em mim. O cheiro de todo o corpo perfeito dela me leva à saboreà-la com o nariz. Tipo assim, com ela eu passaria noites ininterruptas fazendo sexo. E, o que mais me deixa louco por ela, é a certeza de que ela seria somente minha se eu tivesse a coragem de demonstrar à ela, que eu à quero por inteira. Flávia é como um pedaço de terra que você se apropria dela e tem a segurança de que ele te pertença para o resto da vida. Eu sei que ela espera encontrar alguém que possa merecê-la. O pior de tudo, é que ela me falou que jà não suporta mais não ter alguém à quem ela possa se entregar à ele de corpo, alma e coração. É romântica e gosta de trocar carinhos no escuro, ouvindo frases de amor debaixo dos lençóis. Consistente assim como a terra. Bianca é como o ar. Tem um jeito de amar, voraz, envolvente, e é também intempestiva. Mas é capaz de levar o parceiro às nuvens em seu vendaval de paixão. Perfeita para você...

-Eu, por que eu, Jorge?

-É você mesmo. Você é Tenor. Bianca é contralto, ar. Ela pode fazer com que você libere essa chama ardente que existe dentro de você e, juntos, vocês dois podem ter um relação devastadora em cima de uma cama.

–Uhhul. –disse Ângelo, sem entusiasmo. –Você considera as pessoas e os elementos, de um modo bem pejorativo. É preciso que tenhamos mais sensibilidade para definir seres humanos. Quanto à eu ser o Tenor e fogo, não sei se você está correto, pois pra mim, o melhor de tudo é saber manipular bem todos os elementos.

–Eu quero chegar junto na Fernanda. Ela deve ser deliciosa.

–É uma pena que eu tenha sido educado pelo Sr. Cândido. Mas, deixemos de lado as garotas mais sedutoras do mundo. –desdenhando a empolgação do loiro.

–Nem tente roubà-las de mim. Eu às quero só para mim. –Jorge deu o recado.

–Eu só peço à você, que não me inclua nesse seu bacanal musical.

-Fica frio. –disse palpando o ombro de Ângelo. -Pode ser que eu deva mesmo levar o manuscrito à sério. O vovô Amaro sempre me disse que aqueles manuscritos são os nossos manuais de regras, condutas e deveres.

-Do que você está falando, Jorge?

-Sempre foi e continuará sendo assim, Ângelo. Ou nós dois sequenciamos o legado de nossos antepassados, ou seremos pobres para o resto de nossas vidas.

A fogueira ia aos poucos se apagando e a fumaça trazia à memória de Ângelo vagas lembranças de sua história de vida. Com as mãos entrelaçadas ele girava os polegares em volta um do outro.

–Eu não tenho parentes, e também, nunca precisei de dinheiro e uma vida de regalias...

-Você que sabe. –disse Jorge se levantando e espanando calça e camisa. –Eu prefiro a vida que eu sempre tive.

Ângelo considerou que Jorge não teria do que reclamar. Sempre esteve cercado de luxo, dinheiro e, sobretudo, muito paparicado por Amaro que o tratava como à um príncipe da era contemporânea.

Ele se levantou e seguiu para o portão.

-Sua boa vida fez de você uma pessoa mesquinha, medíocre e prepotente. -disse de costas à Jorge.

-Qual é, Ângelo? –e foi atrás dele. -O que você decidir estará decidido... eu assino embaixo. –afirmou tocando o ombro esquerdo de Ângelo, fazendo-o parar e se virar para ele. -Somos amigos, e...

-Somos concorrentes à fortuna do senhor Cândido e ao título Menino de ouro da Ordem Rivera. Portanto, eu diria que, negócios, negócios, amizades à partes. Você não quer perder tudo. Eu valorizo pessoas, e, pensando em nossa amizade, talvez não tenhamos que levar à sério os nossos manuscritos.

-Droga, Ângelo. Podemos ficar ricos, nós dois, sem intrigas entre a gente.

“Crianças nasceram e sobreviveram, ou morreram ao nascerem, em um mesmo lugar. Na casa que ganharia o nome de A casa da maldição. Muitas vidas foram ceifadas, antes e durante seus nascimentos. Após tê-los nascidos, na desenfreada busca para encontrar aquele que seria o herdeiro de muitas riquezas, um número maior de vidas seria extintas da face da terra, até que a criança completasse o ciclo de histórias de vidas vividas em meio à traições, invejas, ódio, ganâncias, falsidades, amores traiçoeiros, seduções, mentiras, enganos, ilusões”

-Tudo bem, Jorge, o seu aniversário está chegando e, eu não quero estragar a sua festa.

Jorge o abraçou.

–Você sabe que eu te amo, cara.

Ângelo observou por sobre o ombro de Jorge, o monturo de brasas e cinzas deixados de sobras da fogueira.

-Sim, Jorge. Eu também te amo de coração. –disse abraçando o amigo, fazendo com ele o acompanhasse. -Mas, por amor fazemos coisas incompreendidas por aqueles que desconhecem as várias formas de amar. – pensou. –Và para a sua casa. Eu preciso pensar um pouco, sozinho.

-Beleza Ângelo. A gente se vê. –e foi-se.

Ângelo soube que Jorge havia sido expulso da escola por causa uma aluna que teve que ser transferida da escola por causa do assanhamento dele pro lado dela...

Ângelo foi ràpido ao telefone na estante e fez uma ligação.

-Senhor Cândido, eu preciso me ingressar na escola Visconde Pena.

-Basta apenas que você compareça lá.

-Sim senhor, Cândido.


*


Era ainda bem cedo da manhã de segunda feira quando Ângelo vestiu calça jeans e camisa social de manga curta num tom um pouco mais claro do que o da calça. Calçou seu Doc-Said e foi ao salão cortar os cabelos. Foi até a casa do tio Nilson e da tia Celeste para tomar café da manhã com biscoitos caseiros que a graciosa Celeste fez. Ficou alguns minutos suportando o peso da Bianca em suas pernas, deixando a moreninha ainda mais sonhadora em poder beijá-lo sem ter que ser apenas no rosto. A cena era vista por Nilson e Celeste enquanto eles pediam conselhos à Ângelo, sobre como fazer para o casal conseguir ter um filho biológico. Bianca seria apenas filha de criação. Ângelo prometeu ao casal, que iria levá-los à um médico para eles serem orientados à tal respeito.

Ele foi à escola de maior conceito educacional de Goiânia. A arquitetura barroca da instituição de ensino revelava conservadorismo e tradição religiosa católica. Ele deduziu então, que, alunos e alunas de muitas gerações estudassem, e muitos outros ainda estudavam ali. Mas, ele não seria mais um aluno à se submeter à rigidez dos métodos de ensino daquela escola.

Apresentou-se à diretora Madalena Matarazzo e foi convidado à se sentar de frente à ela, uma senhora franzina, vestida como à uma Madre superiora de olhos azuis e feições sisudas, porém de trato afàvel e voz mansa.

-Você tem boas referências. Não vejo nenhum empecilho para que eu não aceite a sua indicação. Coincidência ou não, o professor foi transferido agora à pouco para outra escola de música. –disse.

Logo ele foi levado à sala para ser apresentado aos alunos, como o novo instrutor de música. Enquanto eles caminhavam pelos corredores a diretora ia adiantando à ele alguns detalhes referente ao ex-professor e alunos.

-Todos os alunos jà estão no módulo de solfejos, mas quase a maioria não conhece o que é um tom na armadura de clave, ritmos iniciais, e, nem sequer fazem noção do que é um acorde. Os movimentos das mãos nas marcações dos compassos não condizem com os valores das notas. Andamento rítmico, desordem total. Motivação não se percebe nos ânimos deles.  Muitos jà desistiram. Temos apenas nove alunos.

-Eu terei que incutir neles uma nova ótica sobre a arte musical.

-Espero que você ao menos consiga a aceitação deles e dos pais de cada um deles.

A turma jà estava reunida na sala de aula.

A diretora caminhava lento à frente de Ângelo, em direção à lousa.  Apenas o olhar disciplinador dela jà seria o bastante para fazer com os alunos se portassem de modo comportado em suas cadeiras. Ao se colocarem à frente de todos, Ângelo esperou que a Madalena fosse apresentà-lo com o discurso formal para uma apresentação de um professor substituto, do tipo: motivos e razões para a substituição, mas, com poucas palavras ela o faria.

-Este será o novo professor de vocês. Comportem-se e aprendam.

Ela deixou a sala.

A partir dali Ângelo poria à prova o que havia aprendido com seu mentor Cândido Plates Rivera. O seu primeiro desafio seria usar o que ele julgava ter aprendido sobre o ser humano através do conhecimento que ele obteve com estudos sobre a arte da música: decifrar pessoas para então poder se relacionar bem com todas elas.  A turma de alunos sob sua responsabilidade seria o grande teste de comprovação.

Por um pequeno instante, ele os observou, em silêncio.

-Eu vou ser sincero com todos vocês. –iniciou inusitadamente. -Quando eu me interessei pela arte da música, a minha intenção era aprender à tocar saxofone, mas eu ignorava o fato de que eu teria que aprender teoria, técnica, e por fim a pràtica específica à cada instrumento. Achei tudo aquilo uma chatice. -foi o suficiente para que ele visse trocas de olhares entre quase a maioria deles. –Vocês querem que eu continue, ou preferem que eu me cale sem contar à vocês o que me fez continuar estudando com mais afinco?

Gargantas emitiram sons arranhados, mas cabeças movimentaram dando sinal de positivo. Seguidamente, - sim, continue professor.

-Pois bem. Logo de início a escrita musical despertou em mim um desejo maior de aprender a teoria do que propriamente a pràtica instrumental. Eu fiquei fascinado com os valores de tempos, cesuras, ritmos, acentuação métrica, compassos, tons, claves, enfim, a arte da música apresentou à mim uma ciência que agrega em si mesma, inúmeras ciências, e que a arte sendo entendida de forma teórica, técnica e pràtica, é apenas um meio de ocultar aos seres humanos os conhecimentos essenciais sobe sua própria existência. À partir dessa descoberta eu passei à entender que a escrita musical foi elaborada para em forma de código, revelar segredos ocultos da alma humana e...

Um aluno levantou a mão direita.

-Licença, professor. Eu sou o João Pedro. Eu pesquisei livros e mais livros, tentando encontrar algum artigo sobre música, que pudesse se assemelhar ao que eu descobri com os meus estudos. Para a minha surpresa, não encontrei nada parecido ao que eu acredito ter desvendado.

-E o que foi que você descobriu?

-Que a teoria musical agrega em sua escrita a ciência da astronomia.

-Bom, JP, por isso existe a clave de sol, e dela deriva todas as outras.  Você e eu trataremos de música à partir dessa sua descoberta.

O Rapazinho moreno ficou satisfeito.

-Professor. –disse outro aluno com empolgação. –Eu sou o Paulo Henrickhelson. De início, para mim foi chocante ter que reconhecer que o que foi me ensinado sobre a origem da música eram concepções de cunho religioso que delegava à Deus a criação de uma arte puramente humana e secundària. A instituição de ensino musical, a qual eu aprendi teoria bàsica era uma denominação religiosa. Com isso, nosso material didàtico nos apresentava a arte como sendo um dom de Deus dado aos homens. Era comum, o instrutor me exortar à dar valor ao talento musical, por razão de que Lúcifer fora regente de orquestra no céu, mestre de canto, e, que ele nutre grande inveja de todo àquele que possua o dom da música.  Eu não à pensava assim, mas...  –moveu para cima os ombros e calou-se esperando uma avaliação do novo instrutor.

Ângelo o ouviu atentamente com atenção especial à atitude dele de não questionar o que lhe era ensinado, e, sobretudo, por ele ter ponderado tudo para não mostrar-se um insubordinado diante de seu professor.

-O que o professor me diz disso tudo?

-Pois bem, PH, eu acho que nós temos muito para compartilhar um com o outro à respeito do seu ponto de vista. De acordo a minha própria concepção sobre Deus, eu entendo que ele dotou os homens de sentimentos sinceros, e estes, não se expressam de forma compassada, ritmada, melodiada.

O entusiasmo se fez notório nos olhos do adolescente ruivo.

-Professor, por que a música é universal e também a arte de manifestarmos nossos sentimentos? –quis saber, um aluno no canto da sala. -Desculpe, eu sou o Marcelo Cintra.

-Boa pergunta, Marcelo. Não sei se poderei dar uma boa resposta, mas entendo que a música é realmente universal, não pelo fato de existir música em todos os lugares do planeta, sim, por ser o universo de cada ser humano, externado por sons, ritmos e expressões. E também há vàrios elementos que faz referências ao universo infinito. Numa representação simbológica das vozes, o soprano significa o estado natural do ser humano. Correlacionando a estrutura da musica, que é o SOM, aos elementos físicos da estrutura do universo, que são terra, àgua, ar e fogo, podemos dizer: Agua=Soprano. Ar=Contralto. Fogo=Tenor. Terra=Baixo. Com isso entendemos que os quatro elementos da estrutura planetària são representados nas quatro vozes musicais. E, justificando a afirmação de que música seja a arte de manifestar nossos sentimentos, podemos entender que: O soprano significa o estado natural do ser humano. O contralto representa o nosso estado lamentoso nos momentos de dissabores. O tenor é o nosso estado crítico. O baixo é o nosso estado afirmativo. Alguém mais tem algo à externar, para que juntos, nos tornemos grandes músicos?

Nove mãos foram erguidas, sete bocas se abriram para dizer: eu, professor.

-Na próxima aula todos vocês terão oportunidade para fazerem mais perguntas. Portanto, elabore bem as questões. Até à próxima aula.

-Professor. –o louro Marcelo ergueu a mão para dizer. –Eu e Pedro queremos que você nos acompanhe numa volta pela cidade.

-Boa ideia. –espanando as mãos Ângelo aceitou o convite.


***

Entre Ângelo, Marcelo e João Pedro iniciou-se um relacionamento de amizade bastante significativo para Ângelo e para os dois também. Conversaram sobre o colega Paulo Henrickhelson, e, Ângelo foi informado por Marcelo, que o ruivinho era filho de pai muito rico. No entanto, ele era meio deprimido por razão de ter que conviver com uma empregada que se comportava como se fosse a mãe dele, - uma vez que, Paulo Henrickhelson não conhecia sua verdadeira mãe.

Ângelo passeava contente com seus dois alunos, foram à alguns bairros da cidade e em algumas invasões consideradas bem violentas. Foi mais uma experiência de vida para ele, saber que muitos jovens, adolescentes e até crianças bem pequenas, sobreviviam em condições de vida um tanto mais precária do que a que ele vivia antes de ele ser adotado por Cândido Plates.

Apenas com João Pedro, seu aluno pobre, Ângelo foi à um grande supermercado. Dentro do comércio gigantesco, os dois se separaram. Ao se reencontrem em um dos inúmeros caixas, ele estava com um pacotinho de bolachas recheadas. João Pedro estranhou e questionou o fato de eles terem ido à um grande supermercado, para ele comprar apenas um simples pacotinho de bolachas. Mas, antes de João Pedro receber a resposta ele foi chamado por um funcionàrio que o avisou de que ele teria que deixar o endereço da casa dele para que as caixas de compras fossem entregues lá.

Depois que ele passou o endereço ao funcionàrio, ele voltou saltitante para o lado de Ângelo, dizendo que havia sido o ganhador do sorteio de um ano de compras de alimentos inteiramente gràtis. Convidou Ângelo à ir à casa dele na favela. Ângelo foi com ele, e se sentiu muito à vontade, à ponto de até contar piadas e histórias para a turma reunida.

Todos, inclusive o avô de João Pedro, deram gargalhadas da piada de Ângelo. Celeste, a avó simpàtica, pediu desculpa pelas risadas que eles deram e como “paga” degolou, limpou e cortou em pedaços o pobre do galo esporudo e o entregou a ponto de fritura à Ângelo que ficou muito agradecido por ter sido tão bem recebido por aquele casal.  Felizes por eles terem tido um inicio de amizade tão bonita, ele contou aos três, enquanto tomavam um café preparado por Nilson, uma história que seu Cândido o contou: Um dia, um velhinho que pensava que morreria em breve, decidiu dar a seus dois únicos filhos tudo que ele possuía. Porém, seus pertences consistiam apenas em duas vacas leiteiras que, por falta dos bezerros, achava ele que elas continuariam dando leite somente por mais uns dois meses. Por isso, ele os alertou: façam bom uso desse leite.

Seis meses se passaram e o velhinho ainda estava vivo e foi visitar os dois filhos. Ao chegar à casa do  mais velho, ele perguntou: Onde está a vaca que eu te dei? O filho respondeu: Pai, a vaca que o senhor me deu, continuou a dar leite por mais dois meses e todo leite que ela deu eu vendia aos meus vizinhos e conhecidos, mas a sequidão matou o pasto e com isso a vaca morreu também. E o dinheiro que arrecadei com a venda do leite, só deu para custear as despesas até o mês passado. Agora, perdoe-me meu pai, mas eu não tenho nenhum copo de leite pra lhe oferecer.

O velhinho entristecido com a atitude do filho mais velho, andou mais alguns quilômetros e foi até a casa do herdeiro mais novo. Ao chegar, seu filho lhe recebeu feliz, e lhe deu um copo de leite ainda fresco, o velho, surpreso, interrogou ao filho: A vaca que eu te dei ainda está dando leite? O filho respondeu: Não meu pai, ela morreu à quatro meses atrás.  O velhinho perguntou ainda mais surpreso. Mas você ainda tem leite? Pai, todos os dias eu tirava dez litros de leite da vaquinha e dividia-os com os meus vizinhos, conhecidos e até com os que eu não conhecia. Depois que a vaquinha morreu, são meus vizinhos, amigos e os que eu não os conhecia, é que me dão leite todos os dias.

A moral da história, João Pedro, Nilson e Celeste não apenas à saberia. Eles prometeram viverem-na à cada dia de suas vidas.

Antes de deixar o barraco dos amigos, Ângelo pôde ver o casal repartindo as compras que ele, o próprio Ângelo havia dado à família, sem deixar que João Pedro soubesse que o seu amigo e professor se perdera-se  dele no supermercado para negociar com o gerente os doze meses de compras à serem entregues à uma família em um barraco decrépito na favela.

Marcelo os reencontrou jà à noite e numa festa de rua e foi logo dando uma bronca nos dois por causa do “perdido” que eles deram nele.

João Pedro apresentou os dois amigos aos caras mais respeitados do Parque Santa Cruz, e foi buscar refrigerantes para os dois que o esperava na rua onde acontecia a festa ao ar livre.

As pessoas se apinhavam no meio da rua dançando Funk. Muitas delas fumavam cigarros de tabaco e também maconha. Para Ângelo, tudo era muito característico de bairros da periferia, mas, ele estava tranqüilo.

Ângelo e Marcelo ficaram conversando sobre como seria aquela noite. Marcelo quis falar sobre as garotas liberais que estavam na festa de rua, mas notou que Ângelo não tinha muito que dizer sobre aquele assunto pelo fato dele nunca ter tido uma primeira vez com uma garota, e a expectativa de que naquela hora da tarde, ele pudesse iniciar sua vida sexual não o deixava ansioso nem apreensivo. Era como se tudo fosse normal. Ele parecia não achar que o sexo oposto era um dos maiores fatores psicológicos do ser humano.

Algumas pessoas passavam e cumprimentavam os dois. Entre as pessoas, algumas garotas paravam e trocavam beijinhos no rosto dele e ao serem apresentadas a Marcelo, elas não repetiam o mesmo cumprimento. A naturalidade com a qual Ângelo tratava as garotas causava mais estranhamento em Marcelo ao perceber que as moças demonstravam interesse em seu amigo e, ele por sua vez não embolsava nenhuma reação de rapaz convencido ou exibido, ao contrario, Ângelo se portava de modo natural e não fazia nenhum comentàrio sobre a maneira que as garotas o tratavam às vezes o chamando de gatinho, brotinho, enfim, elas praticamente se ofereceram para ele, e mesmo assim, sua postura em relação às meninas era puramente neutra, sem malicia ou esnobismo.

Na rua os dois esperavam por João Pedro que fora comprar chicletes.

-O João Pedro é um cara maneiro, não é Ângelo? Ele me contou que ele vive com os avós dele e que não conheceu os pais dele.

-É triste isso, Marcelo. Eu sei o quanto isso dói.

-Pô, foi mal.

-Que nada. Tà tudo em cima, como diz o JP.

-Eu... eu também não tenho pai e nem mãe.

-O João Pedro me contou sobre os dois. A Andreza não é sua mãe, e o Ricardo não é seu pai?

-Não. Mas eu considero a namorada do Ricardo meu irmão, como sendo minha madrasta. Na escola,os alunos são todos órfãos.

-Entendi. O João Pedro está vindo. –Ângelo avisou.

Por preferência de Ângelo, os três tomaram o ônibus e foram conhecer a casa e os pais do Marcelo. –pelo menos, Ângelo pensava dessa forma.

O suposto pai do lourinho o tratou muito bem, chegando até à convidà-lo para tomar o lanche da tarde reunido com eles em volta da mesa. De início, Ricardo, o que para Ângelo seria pai de Marcelo, imaginou que Ângelo fosse apenas mais um dos colegas de escola do Marcelo, mas ao ficar sabendo que ele era o professor, fez de conta que acreditou: “Sei. Como aí esse biscoito e deixe de conversa fiada, Menino.” “É sério. Ele é muito bom.” “Hum! Você acredita Andreza?” “Faça o teste. Peça à ele para te ensinar a tocar violão”–a bela morena fez a proposta.

Foram para a sala, viram e ouviram Ângelo dedilhando o vilão cantando músicas da jovem-guarda.



*



Feliz em mais uma manhã fria, Ângelo comparecia à escola para mais uma aula. Foi quando a diretora o chamou na secretaria.

-Eu e os pais dos alunos estamos muito satisfeitos com o seu desempenho e comportamento dentro e fora das dependências da escola. –disse Madalena terminando de conferir alguns históricos escolares.

-Obrigado, senhora Madalena. Eu procuro dar o melhor de mim, e, todos os alunos são excelentes. –disse ele passando o grampeador à ela.

Madalena não quis pegar o grampeador, antes, ela segurou a mão dele sobre a mesa e inclinou-se um pouquinho mais para o lado dele.

-Eu soube que você é o garoto que Cândido Plates o tem como um próprio filho dele. Alguns desses alunos e suas famílias sobrevivem de assistência garantida à eles pela instituição Plates Rivera. Não fosse Cândido, poderia ter sido diferente... pior ou melhor. Mas, o que aconteceu foi o que tinha que acontecer. As mortes dos maridos, das mulheres e dos bebês, ou por menos fatídico que tivesse sido o desaparecimento dos mesmos, foi um mistério possível de pôr em suspeita à qualquer indivíduo que se atrevesse à insurgir contra a irrevogàvel determinação imposta por Cândido no que se referisse à aquela tragédia.

-E quanto ao senhor Amaro?

-Amaro não possuía o poder para estabelecer novo estatuto e protocolo para os membros da Ordem Rivera, e não poderia violar as regras e diretrizes instituídas por Cândido Plates.

Um rubor se formou no rosto de Ângelo, mas ele se conteve e não deixou transparecer que Madalena o deixou estarrecido por saber que o mentor dele estaria provavelmente envolvido em todo aquele mistério. Ele sabia que Cândido era um homem muito importante em todas as esferas das sociedades brasileiras. Era bem verdade que ele sabia que, em 66, Cândido Plates Rivera esteve pela última vez em São Paulo. Porém, a razão pela qual ele deixou a cidade, Ângelo desconhecia.

-Rapaz. –disse ela jà em pé. –Acredite em mim. Você não é neto do Senhor Cândido.

-Talvez eu seja uma criança que foi abandonada pelos pais em São Paulo e vim parar aqui em Goiânia.

-Ainda hoje em algum lugar algumas adolescentes são consideradas filhos da maldição, pelo fato de suas mães terem freqüentado aquela casa no período de suas gestações. A maldição deu origem à muita histórias assombrosas nesse bairro. Mas em nenhuma delas caberia você. Eu vejo algo muito nobre em você e nas suas intenções. Eu soube que você trouxe à Cândido a alegria de viver. -estendeu as mãos esperando receber as de Ângelo sobre elas. Ele à satisfez. Ela apertou as mãos dele e as beijou com ternura.

-Quem são as adolescentes?

-Na verdade, eu não os conheço. –disse, soltando lentamente as mãos dele. -Foi uma aluna que comentou comigo à respeito. Mas, eu não dei muita importância. –disse pegando papel e caneta sobre a mesa.

-Elas moram aqui em Goiânia?

Ela assentiu enquanto escrevia.

-Pegue o endereço e o nome da escola que a mocinha estuda.

-Eu posso usar o telefone da senhora para uma ligação interurbana?

-Claro. Fique à vontade.

-Obrigado.

Discou e esperou ser atendido.

-Alô... sou eu, Ângelo Ràusen Júnior.

-Ângelo. –disse o médico que o atendeu. -Quem fala com você agora sou eu, o médico Saldanha. Seja sempre abençoado. O velho mestre irà atendê-lo.

-Eu o agradeço, doutor Saldanha.

Madalena prestava atenção à conversa dele ao telefone.

-Meu amiguinho, diga-me onde estás e o que fazes. –a voz meiga e calorosa do velho do outro lado da linha refrigerou o ânimo de Ângelo.

-Em uma missão onde não há monges e nem frades. Seguindo o caminho das pedras para encontrar o rochedo maior.

-Que notícias você me dà dessa missão?

-De espíritos maus à serem erradicados.

-Sinta a minha mão canhota tocando o seu ombro neste momento, meu amiguinho.

-Mas, o senhor é destro, senhor Cândido.

-Tal como você é, eu sou. Não se lembra? Não responda, apenas diga o que você necessita.

-Eu peço permissão para encontrar-me com uma moça que estuda em um conservatório musical da Ordem.

-Tudo à seu tempo, amiguinho. Tudo à seu tempo.

-Sim, senhor Cândido.

Madalena se via maravilhada e pronta à cooperar com a causa dele, de forma mais livre e espontânea.

-Obrigado, dona Madalena. –agradeceu ao finalizar a conversa.

-Me procure para o que for preciso.

Com carinho ele segurou a mão direita dela com as suas duas mãos, e a beijou.

-Obrigado por tudo. Mas, à propósito, a senhora poderia me dizer o nome dessa moça?

-Terminantemente não. Cândido me recomendou à não recolher e dar à você as jóias que se perderam pelo caminho.

Ele não questionou, pois sabia que Cândido jamais negaria algo à ele. E entendeu que tudo fazia parte do seu aprendizado.

-Bom. –disse se levantando. –Eu tenho para a sala de aula agora

-Eu te acompanho. Preciso passar algumas recomendações à seus novos alunos.


***

A diretora seria objetiva ao repassar novas regras de conduta para os demais alunos que ouviram falar da didàtica e da metodologia de ensino do novo professor de música e resolveram retornar ao estudo musical.

–À vocês que estão regressando às aulas, prestem atenção ao meu comunicado. Respeitem à autoridade do professor. Ele também é um adolescente como todos vocês. Portanto, não confundam suas posições: Ângelo Ràusen Júnior é o professor. Vocês são alunos e alunas. Tenham todos, boas aulas. -recomendações dadas, ela abandonou a sala.

-Vamos embora meninas! –disse Verônica com voz desanimada.

-Vamos esperar para vermos o novo professor. –Melissa sugeriu.

Bruna segurou a mão da amiga vendo-a com um olhar perdido na vidraça da janela.

-O que foi Verônica? Você parece estar um pouco triste!

-Tà tudo bem comigo Bruna... É que eu não tô no clima pra ficar fazendo nada aqui.

-Eu acho que os professores deviam deixar a gente ir embora. Às férias começarà na semana que vem.

-Só pra encher o saco, Melissa. –Verônica falou colocando os pés na carteira.

-Verônica, você não está assim por causa das aulas de música. Nem todos aqui vão estudar música. Conte pra nós amiga... Vai!

Verônica cruzou os braços sobre os joelhos e, por alguns segundos ficou em silêncio, mas Bruna se colocou de frente à ela e segurando em seus braços, lhe ofereceu atenção e companheirismo para que ela pudesse se desabafar. Com Melissa abraçando-a por traz e com a cabeça em seu ombro, Verônica resolveria se abrir com suas melhores amigas.

-Eu tenho me sentido tão rejeitada ultimamente. Parece que tudo está contra mim!

-Fica assim não amiga! Olha ao seu redor, veja o quanto de amigos você conquistou de uns dias pra cá... E tem o João Pedro que ama você como se você fosse irmã dele.

Verônica conseguiu dar um sorriso meio ràpido porque acabavam de entrar na sala, as indesejadas. Cláudia e sua trupe. E com elas, alguns rapazes.

-Atenção pessoal. –Cláudia gritou indo para a lousa. – Sàbado vai “acontecer” no Clube, e é claro que nós vamos estar lá.

Gritaria e assovios das garotas e rapazes do grupo de Cláudia.

-Você também pode ir Verônica filha da viúva negra. E leve os seus amigos. –depois de chatear Verônica, Cláudia colocou o dedo indicador nos lábios e dirigiu a fala à outra aluna. -Magda, você se lembra dos nomes dos amigos dela?

-Não. Eu acho que não me lembro de nenhum deles. –respondeu, com uma mão na cintura e outra na lousa.

As três amigas perceberam à provocação. Verônica quis dar o troco logo em seguida, mas Bruna conseguiu contê-la. Porém, Melissa soltaria o verbo.

-Pois fique sabendo, Cláudia, que eles também não se lembram nem da cor da pele de vocês.

-Verdade queridinha? Ah, mas foi porque a sua amiguinha Verônica não deixou a gente se conhecer melhor naquele dia. –ela colocou as duas mãos na cintura e deu uma reboladinha.

“Uuuuuuuuuuuh! –as gatas da vez vaiaram Melissa.

Ângelo do lado de fora estava só observando as provocações, pela janela aberta.

-Melissa, vamos embora. Deixe-as pra lá. –disse Bruna se levantando.

Verônica estava se explodindo de ódio das rivais, e mesmo com a insistência de Bruna para que elas engolissem sapos caladas, ela devolveria sim a provocação à Cláudia e suas amigas.

-Cláudia, garota igual à você, os nossos amigos não querem nem para lavar as roupas deles. E iguais as suas amigas, os nossos amigos não querem nem para masturbar eles. -Verônica pegou pesado.

-Ok pessoal. –disse Ângelo que entrava na sala.

Houve um silêncio na sala de aula. Cláudia perdeu o rebolado e ficou olhando os seus amigos que se encolhiam nas carteiras esticando as pernas e tapando bocas. Ela e suas amigas pareciam querer esganar as rivais.

Ângelo, João Pedro, Marcelo e Paulinho ficaram juntos, à frente de todos.

-Bom dia à todos vocês. –Ângelo desejou.

-Bom dia gatinhas e feiosos. –disse Paulinho.

-Bom dia gente. –João Pedro falou.

Os que jà conheciam Ângelo responderam, os outros não. As garotas brigonas, todas elas, permaneceram caladas e emburradas.

Marcelo foi à Verônica e deu um beijo no topo da cabeça dela.

-Fica assim não. –disse ele à ela.

-Eu vou contar uma história. Depois que todos vocês a terem ouvido, tirem suas próprias conclusões. Tudo bem assim?

Não houve resposta, mas todos os alunos e alunas se sentaram em suas carteiras.Cláudia estava tão contrariada, que, nem aceitou que o colega limpasse as marcas de giz da bermuda dela.

-Muito bem. –disse Ângelo unindo suas mãos. -Um dia, certo rei, vendo que as pessoas do seu reino não eram pessoas felizes, mas, que viviam buscando coisas que os fizessem felizes. Ele resolveu dar uma chance à todos. Então ele encheu um baú de jóias preciosas, subiu sozinho em sua charrete e foi guardar todo esse tesouro. Quando ele viu que jà havia andado bastante, de modo que ninguém poderia saber aonde foi que ele escondeu o baú abarrotado de jóias à ponto de nem poder ser lacrado, ele voltou observando as jóias que caíram pelo caminho. Ele não às recolheu. Deixou que elas pudessem servir de pistas para os que se aventurasse à procurar e encontrar o baú. As pessoas se puseram à procurar o baú que representava à felicidade. Todos foram pelo caminho pisando e deixando pra tràs as pedras preciosas que eles encontravam por onde passavam, achando que o que importava era encontrar o baú que daria felicidade eterna. Cansados da jornada, e cada vez mais infelizes todos voltaram para tràs e foram reclamar com o rei por ele ter escondido tão secretamente a caixa cheia de jóias. O Rei apaziguou seus ânimos e lhes disseram: vocês não foram felizes porque não recolheram cada peça que encontraram pelo caminho. Felicidade é isso: aproveitar cada preciosidade que se encontra pelo caminho em nossas andanças por esse mundo. E o baú, óh rei? Perguntou um infeliz. O baú representa a ganância do homem que nunca se contenta com o que está ao seu alcance e nem percebem que as pequenas coisas adquiridas por vez valem mais do que encontrar a arca do tesouro que de maneira nenhuma será achado pelos ambiciosos que a busca pelo poder os privam de se fartarem com as pequenas, porém, valiosas porções que a vida lhes oferece.

-Quem pegou as jóias que caíram pelo caminho, professor Ângelo? –um aluno perguntou:

-Nós às estamos recolhendo nesse momento. Tomara que nunca encontremos o baú.

-Por quê? –uma aluna perguntou.

-Porque assim deixaríamos de aproveitar cada preciosidade que encontramos pelos caminhos de nossas vidas. Amizade é uma delas. –finalizou.

Os alunos baixaram as cabeças após ouvi-lo.

-Eu, principalmente, e todos nós devemos aprender uma lição com essa história.

Uma calmaria reconfortante se fez na sala. Ângelo começou à escrever as lições.

As garotas, todas elas, se ajeitaram nas carteiras. Cláudia e suas amigas mais achegadas à ela, eram lindas garotas, e faziam questão de exibir seus atributos, provocando desejos nos garotos e ascos nas garotas.

-Professor, são apenas vírgulas aí. Que chato!

-Para que elas servem Verônica?

-Como sinais de respiração?

-Também... mas, se fosse assim, elas só existiriam nas partituras para instrumentos de sopro.

-Instrumentos de sopro, a gente toca respirando, não é, professor?

-Bem observado, Sandro.

-Então diz logo para o que mais as vírgulas servem.

-Pois bem. No sentido teórico, vírgula é um sinal de inspiração, e serve para indicar permanência ou mudança de ritmo inicial. Se o ritmo deve ser mantido tético, as vírgulas estarão colocadas entre a última nota do compasso e a barra divisora. Havendo mudança de ritmo para anacrúsico, elas estarão entre as notas dos compassos, indicando suavidade em determinado fragmento melódico e harmônico. Tanto em uma música, como na trajetória de nossas vidas, nós temos que seguir a caminhada em ritmo determinado e constante. Mas, às vezes a gente precisa virgular essa caminhada para então decidirmos se prosseguiremos como no início, ou se procederemos de modo mais suave e moderado. Pondo todos os nossos conhecimentos em pràtica, haverà melhoras consideràveis na forma de nós lidarmos com as pessoas, a vida e os fatos. –finalizou direcionando o olhar às alunas em desarmonia.

Cláudia achava que o valor de uma moça estaria nas suas roupas de grife, nos calçados de marcas e na possibilidade de poder ir ao salão toda semana para se produzir. Mas, ela reconsideraria seu modo de tratar à Verônica.

A natureza de Verônica sempre foi muito decidida e arredia. Ela não se contentou com a patada que ela deu nas meninas, e achava que deveria com todo direito cobrar pelo insulto dirigido à elas.

Houve troca de olhares entre as duas, e, agora, com menos faíscas. Mais condescendentes.

Os alunos estavam satisfeitos com o novo professor, e tratavam com ele, tudo que fosse relativo à parte musical. O comportamento de todos deixou Ângelo muito feliz. Os Alunos demonstravam desinteresse pelo aprendizado, por razão de eles desconhecerem ainda, até então, uma metodologia de ensino musical que lhes proporcionava prazer, ao invés de apenas exercícios maçantes de teorias musicais. O próprio professor jà não tinha mais animação para seguir dando aulas.

-Ok, ok. Eu disse aos que assistiram a minha primeira aula, que, eu não iria tomar muito o tempo precioso de nenhum dos meus amigos com aulas prolongadas. Portanto, vocês jà estão liberados para irem recrear por quinze minutos. Mas... –e apontou para Verônica. –Eu quero conversar com você moreninha.

“Legal. Eu gostei desse professor” “Vai ser bacana aprender música com ele” “Ele tem a minha idade” - comentavam os que saíam da sala.

Verônica estava com os nervos à flor da pele por ter sido chamada de Verônica filha da viúva negra, e enervou-se mais ainda por ter sido selecionada para uma conversa direta com o professor. Cláudia, ao passar por ela, disse: eu quero que você và à festa, para nós duas divertirmos juntas. Verônica consentiu.

Sentado em cima da mesa Ângelo esperou que Verônica tomasse a iniciativa de ir até à ele.

-Eu não quero conversar com você. –disse, com voz energizada, pegando a mochila para deixar a classe.

-Escuta só. - disse ele pulando da mesa, e seguiu em direção à ela.

Verônica jogou a mochila nas costas, mas ficou parada próxima à porta.

-Você é Contralto e simboliza o ar. O ar está em toda parte. Onde houver uma abertura ele penetra.

-De repe, você vai dizer que eu sou ventania e...

Jà próximo à ela, ele a interrompeu.

-O contralto representa o ar porque a função dele é preencher as lacunas que ficam entre o soprano e as outras vozes. Quanto à você, você está sempre interferindo na vida dos outros para reparar as trincaduras que ocorrem entre as pessoas do seu círculo familiar e de amizade.

Aturdida, a moreninha deu às costas à ele e intentou deixar a sala de vez. Ângelo segurou no braço direito dela e a fez virar-se para ele.

-Essa Fênix tatuada em suas costas te representa bem, porque em algum momento da sua vida, você teve que ressurgir das cinzas. –disse e a olhou, expressando ternura no gesto. -Eu gostaria de conversar mais com você. Podemos?

De semblante baixo, Verônica recolocou a mochila em uma cadeira e se sentou na outra. Ela suspirou antes de responder.

-Você é quem manda. –liberou pegando a mochila e pondo-a em seu colo para que Ângelo se sentasse do lado dela.

Ele arrastou a cadeira, à colocou de frente à mocinha e se sentou.

-Por que, “Verônica do casarão”?

-Só porque eu nasci na mesma noite que aconteceu uma tragédia numa casa Maldita. Mas eu não sei aonde e nem como foi. A Cláudia e as amigas dela pegavam no meu pé por causa disso. A minha melhor amiga teve que ser transferida para outra escola por causa das provocações daquelas xaropes.

-Eu tenho alguns dias nessa escola, mas sei que nenhum dos alunos nasceu dentro de um casarão amaldiçoado. –brincou para não deixà-la ainda mais deprimida. -Não ligue para essas chateações. -Ângelo espalmou fortes as mãos em suas coxas sinalizando que Verônica estaria acreditando em bobagens à respeito do nascimento dela.

-Eu jà estava cheia daquelas garotas. Eu não fiz nada pra elas me tratarem assim.

-Espero que a Cláudia não tenha sido falsa comigo agora à pouco.

-Me dê as suas mãos. –pediu pondo as mãos dele sobre a mochila no colo dela

Verônica não hesitou em espalmar as mãos dela sobre as dele.

Por alguns segundos os dois se olhavam enquanto Ângelo massageava as mãos dela. Aos poucos ela foi recuperando a calma e de olhos fechados sentia-se como se estivesse sendo pulverizada por uma brisa suave à lhe refrescar as ideias. O rosto que à pouco fora acometido por tiques de expressões carregadas de raiva e intolerância foi se apascentando e atenuou-se dócil e meigo.

-Como você se sente agora? –Ângelo perguntou ao soltar as mãos dela.

-Melhor, e com vontade de renascer das cinzas. Valeu professor. De repe eu me sinto bem melhor.

Ângelo segurou as mãos dela novamente.

-Pode me chamar de Ângelo. À propósito, o que quer dizer, de repe?

-Tipo assim, de repente, coisa e tal. Morô?

-Morei. Eu acho que você é uma garota especial e não deve se culpar pelas mortes dos que tiveram seus dias de vida findados. –disse tocando com o dorso da mão a maçã do rosto dela. –Morô?

Ela sorriu docemente.

-Às vezes eu me amaldiçôo por eu ser como sou. –foi sincero o que ela disse.

-Então eu te recomendo à executar bem a sua função de contralto, apesar de ela ser pesada de conduzir e dolorosa de se ouvir. Sem o contralto a música soa vazia, e sem você, os seus amigos perdem a moderadora de amizades. Sem o ar, a vida fica sufocante. Ainda bem que o ar tem peso, o contralto é volumoso e você é constante. Mas não se torne ventania. – recomendou sorrindo. -Antes de retomarmos as aulas, eu quero um abraço seu.

-Pô, mó força você me transmitiu. –sussurrando ao ouvido dele, ela disse e o abraçou forte.
























                                                   *

O clube onde Ângelo e seus amigos estavam não ficava muito distante do centro da cidade. Mas com certeza eles não precisariam ir até ao centro para se divertirem. O local de recreação fornecia à seus clientes, parques aquàticos, restaurante, piscinas, saunas, academia de ginàsticas, salão de jogos, play growds, toboàguas e muito mais, com certeza Ângelo, Paulo Henrickhelson e Marcelo não precisariam sair de onde eles estavam para curtirem suas aventuras.

Depois de eles terem divertido muito durante todo o dia, e verificado a programação para a noite e constatado que realmente, tudo estava nos conformes. Ângelo e Paulinho trocavam ideias.

-Qual é Paulinho? Por que você está triste desse jeito?  -Ângelo perguntou por ver Paulinho com o cotovelo na mesa, com uma mão tapando a orelha, a outra alisando a mesa e com a cabeça um pouco virada para o lado.

-Aqui é legal. Mas aquela gatinha me deixou na fiçura. – Todo inconformado, o ruivo lamentou pela frustração do período da tarde no quesito paquera.

-Vai me dizer que você queria fazer aquilo com ela.

-É claro que eu queria! Ela gosta daquilo também.

-Paulinho, você não é certo da cabeça. –disse Ângelo jogando uma casca de maçã nele.

-E você com a argentina? O que foi que rolou? -quis saber pegando um pedaço de mamão.

-A gente trocou algumas ideias. –respondeu enquanto descascava uma banana.

-Quer dizer que você não deu uns amassos naquela gatinha? –Paulinho perguntou de boca cheia.

-Ih, o cara, aí! Ela não é disso não, ô pervertido, mente poluída.

Marcelo chegou se sentando junto aos dois.

-Boa noite! –disse ele tocando as mãos dos dois simultaneamente. –Cadê o café, o leite, o pão, a...

-Pra esse tipo de comida, a gente tem que interfonar na recepção.

-Beleza, Ângelo. Eu como frutas mesmo.

Por um momento ninguém disse nada, e eles comiam o lanche à base de frutas e sucos. Até que depois de algumas mastigadas e engolidas...

-Ô Marcelo... E aquela gatinha que você estava com ela?

-Esse Paulinho é curioso pra caramba.

–Cala a boca Ângelo. Deixa o Marcelo responder.

-Unh, unh. –Marcelo balbuciou engolindo. –Falem a verdade. Vocês jà viram uma negra mais bonita do que aquela? –perguntou admirado da beleza da garota.

-Eu com uma pretinha daquela faria um regaço... Oh gatinha da hora!

Ângelo ficou calado alguns segundos observando o jeito do Paulinho ao falar da garota do Marcelo.

-Marcelo... Ela é bem bonita mesmo. Mas eu só não entendo por que quando as pessoas vêem moças brancas bonitas, elas dizem apenas que elas são bonitas, mas quando vêem uma negra eles dizem: oh negra bonita! Tem sempre que especificar a cor dela, como se ela fosse algo estranho ou raro de se ver. Isso é babaquice. –Ângelo contestou e abocanhou a maçã.

-Ângelo, é o seguinte... Quando a gente vê uma ruiva ou uma loira, a gente também diz: oh ruiva bonita, ou oh loira bonita. Isso é apenas um modo de dizer que a garota é de cor tal, e é bonita.

–Falou e disse Paulinho. –Ângelo consentiu.

-Hoje eu vou te confessar uma coisa que a Verônica falou de você.

Quando Marcelo disse isto, Paulinho olhou pra ele fechando a cara.

-Deixe  ele falar, Paulinho. Não tem problema não. Pode falar Marcelo.

-Então. Ela me falou que quando te viu a primeira vez, ela te chamou de moreninho gato, e disse que um dia ela ia te dar uns beijos.

-É isso aí Ângelo. Se você fosse negro ela teria te chamado de negro gato. –afirmou Paulinho. –Você é moreno claro, e seu cabelo é liso e... você só não é gato como eu.

Eles riram um pouco e depois terminaram de lanchar.

-E hoje? O que a gente vai fazer? –Quis saber Marcelo. –Aqui é bacana, não é Paulinho?

-Massa. Vamos nadar nas piscinas de àgua quente com as gatinhas. Depois das seis horas as piscinas lotam de garotas.

-Eu não sei nadar. –Ângelo confessou.

-Vai dizer agora que você tem medo de se afogar dentro de uma piscina? –Marcelo duvidou dele e foi se sentar no sofá.

Paulinho o acompanhou. Os dois também se sentam e por um minuto ficam em silêncio.

-Ângelo qual é o nome da garota argentina? –Paulinho perguntou.

-O nome dela é Luna.

-A conversa dela é de gente inteligente, Ângelo? – Marcelo perguntou.

-Até certo momento a nossa conversa era normal, mas depois ela me mostrou o livro que estava lendo, aí o papo ficou meio escabroso.

-Como assim? -quis saber Paulinho.

Antes de começar a falar, Ângelo chamou Marcelo para se sentar junto à ele e Paulinho no mesmo assento.

-Ela estava lendo livro de ocultismo, e disse também que ela é meio mística e sabe prever certas coisas...

-Mas o seu professor jà te falou de coisas parecidas.

-Mas o que ele me fala não tem nada à ver com ocultismo, Marcelo. Por exemplo, eu não sei o que está acontecendo lá fora...

Paulinho fez cara de espanto.

-E ela sabe o que acontece longe dela?

-Escute essa. – disse Ângelo se levantando. –Depois que a gente havia dado alguns beijos, ela me falou que está noiva de um camarada lá em Córdoba.

-Hija de la madre! –Paulinho gritou se levantando do sofá.

-O que significa isso? –Quis saber Ângelo.

Paulinho se sentou novamente.

-Filha da mãe. –respondeu. – Como é que aquela garota apronta uma dessas?

-Caramba. O pai dela me chamou disso aí quando eu saí da suíte dele. Aquele argentino filho da mãe. Pois então. Só que aí eu disse à ela que não iria dar pra gente continuar, porque se eu soubesse nem teria olhado pra ela. Mas aí ela disse que ela e ele sempre fazem assim pra testar o poder de sensitividade dos dois.

-Quer dizer que eles são cornos conformados?

-Marcelo, ela falou que o que eles fazem distantes um do outro é tudo combinado e aceito pelos dois. E quando eles se encontram um fala para o outro o que ambos cometeram.

-Ela fala o que ela aprontou e ele fala o que ele aprontou também?

-Não Paulinho. Ele fala o que ela fez e ela fala o que ele fez. Entendeu?

-Caramba! Mas que merda de bruxaria é essa? -disse Marcelo, jà arrepiando.

-Se eu fosse você ficaria longe dela, Ângelo. – Paulinho alertou se arrepiando também.

-Eu não tenho medo dessas coisas não. O problema é que ela tem um noivo, e eu detesto pilantragem. Mesmo eu não conhecendo o cara.

-O que foi que o senhor Cândido te ensinou então, Ângelo? –quis saber Marcelo.

-O que ele me ensina não tem nada à ver com ocultismo. E muito menos com bruxaria.

-Então fala o que é. – Paulinho inquiriu.

-Escuta essa. Os seres humanos se revelam. Ih,vocês dois jà estão com medo. –disse Ângelo rindo por ver Marcelo e Paulinho se aproximando um do outro, demonstrando espanto.

-A gente não tà com medo não. Pode falar. – disse Marcelo se afastando de Paulinho.

-Ela falou que alguém entrarà em nossas vidas, e o que será é o que tem que ser.

-Como assim? ”nossas vidas”. –Marcelo ficou assustado.

-Na sua vida Ângelo? -Paulinho ficou confuso.

-Não sei Paulinho. –respondeu se sentando.

O assombro tomou conta de Marcelo e Paulinho naquele momento. Ângelo permanecia pensativo entre os dois companheiros sentados no enorme sofá.

O que parecia ser um final de semana para eles se divertirem com algumas garotas, transformou-se em algo sinistro depois do encontro de Ângelo com Luna. Ele fora ensinado por seu amigo Cândido à saber conhecer e lidar com pessoas através de gestos, olhares, silêncios e palavras, Porém, Luna, parecia ser conhecedora de ciências ocultas que dava à ela o poder de prever situações futuras e isso o deixou encabulado porque um dia ele interrogou ao seu tutor cândido o que viria à ser um escrito que ele encontrou junto à algumas dissertações sobre à arte da vida e da música que seu cândido utilizava para dissipulá-lo. Ao ler o escrito Ângelo perguntou ao mestre: Seu cândido, o que significa mistérios ocultos do ocultismo?

O velho respondeu: meu pequeno amiguinho iniciado, o que é oculto... é para estar oculto. Atenha-se ao que é visível e você terà conhecimento para distingui-los.

-Ô Ângelo! –disse Paulinho fazendo Marcelo pular do sofá.

-Você quer me matar de susto, Paulinho?

Ângelo riu de Marcelo falando com as mãos no peito, sentindo o coração acelerado.

-Quase que sou eu quem morre de susto do seu grito. – Paulinho confessou.

-Vocês são dois mariquinhas. –disse Ângelo se levantando. O que você ia dizer Paulinho?

-Por que você não deu só uns amassos naquela gatinha ao invés de ficar conversando sobre essas coisas? –Paulinho falou se dirigindo ao barzinho da suíte.

Marcelo alcançou os dois. Ele estava morrendo de medo.

-Paulinho você só me ensinou dizer eu quero te beijar, te namorar.  E você é linda, em espanhol, e, ela não quis nem saber desse papo furado. Aí nós conversamos sobre essas coisas, mas tudo foi assim de repente. Depois do último beijo que eu dei nela e tive mais uma daquelas sensações ruins, foi que ela me falou sobre o noivo dela e esse negócio de ocultismo. –concluiu se sentando.

Paulinho estava atrás do balcão escolhendo algo para dosar os copos que ele jà havia colocado no balcão do bar. Enquanto ele servia as bebidas para ele e Marcelo beberem, Ângelo pensava: eu vou fazer esses dois pararem de beber.

–Àhhhhhhhhhhhhhhhhh! –ele exclamou prolongadamente.

-Caramba! -disse Marcelo se assustando novamente. –O quê que foi Ângelo?

-Merda. Eu quase quebrei a garrafa. –falou Paulinho, com uma mão segurando a garrafa e a outra no peito. –Fala logo Ângelo.

Dessa vez Ângelo fez cara séria para fazê-los acreditarem no que ele diria.

-A Luna me perguntou se eu bebia bebida alcoólica, eu respondi que não. Aí ela me disse que as pessoas que bebem são propensas à receberem os espíritos que vagueiam nas trevas, vindos de outras dimensões.

Os dois se entreolharam assustados e arrepiados.

-Eu não vou beber mais não, Paulinho. Você pode beber se quiser. –disse Marcelo arredando o copo.

-Eu hein, quero não! –Paulinho tampou a garrafa e guardou-a. – Aonde nós vamos Ângelo? –perguntou saindo detràs do balcão.

-Vamos para as piscinas. –Ângelo sugeriu.

-Eu topo. –disse Marcelo se levantando. -É melhor ficar lá com garotas do que ficar aqui bebendo licor e uísque.

-Yuuhuul! – Paulinho gritou pulando nas costas de Ângelo. –Ângelo, vai com o Marcelo. Eu chego lá depois de eu dar uns malhos numa loirinha gostosa, da suíte 19.

Ângelo e Marcelo chegaram ao bar que era uma espécie de bar molhado ao lado de uma enorme piscina. Era sàbado, mas o local ainda não tinha muitos turistas, porém para os dois, as garotas que estavam por ali eram suficientes para eles trocarem um pouquinho de prosa.

–Ângelo, olha essa ali de lencinho cor de rosa amarrado na cintura. –disse Marcelo.

–São tantas. O que a gente vai beber? –quis saber Ângelo se sentando na cadeira de plástico branca.

Marcelo também se sentou.

–Vai lá buscar alguma coisa pra gente beber, por que aqui não tem garçom não.

Marcelo obedeceu à voz de Ângelo e foi até ao balcão. Ângelo estava se sentindo um estranho. Alguns rapazes passavam por ele de mãos dadas às suas garotas e se sentavam nas cadeiras, ocupando as mesas com suas bebidas tropicais, e também bebidas enlatadas.

De repente ele viu Fernanda chegando e se sentando sozinha ao redor de uma mesa retirada um pouco distante das demais.

“Mas como ela é linda! Só não entendo porque essa garota vem à um bar molhado de um clube com um livro na mão?”

Enquanto ele pensava, Marcelo se aproximava com um abacaxi e um coco.

–Pega! Qual você quer?

–Me dà o abacaxi.

Ângelo deu uma cutucada não braço do amigo.

–Marcelo, olha ali quem chegou.

–Aquela lá é a Fernanda? –Marcelo fez essa pergunta sugando a àgua do coco pelo canudo. –Ela se parece com a Bianca. Só que menos loira.

–É ela mesma. Mas eu não tenho certeza se o nome dela é Fernanda. Havia uma garota loira com ela. Eu escutei a loirinha a chamando de Nandinha.

Fernanda parecia não tê-lo notado ainda. Enquanto isso, Ângelo calculou o que ele ia fazer para abordà-la.

–Marcelo. –disse ele se levantando.  –Ela não está lendo qualquer tipo de livro.

–Como você sabe?

–Ela está marcando pulsações... solfejando... não... ela é musicista iniciante. –finalizou. – Caramba. –reiniciou a observação. –Ela está em confusão de ideias. Talvez, seja uma composição de Beethoven.

-Aquele sujeito era maluco. Aonde você vai Ângelo?

Ele não respondeu e seguiu em direção ao palco onde minutos atrás um grupo musical cantava algumas músicas acompanhadas com violão e alguns instrumentos de percussão. Tomou o violão nos braços, senta num banquinho alto e começou a dedilhar alguns acordes na seqüência de fà maior.

-Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça. É ela menina que vem e que passa num doce balanço à caminho do mar...

Ao tocar e cantar a música de tom Jobim, algumas pessoas começaram a ouvi-lo. Fernanda que antes lia também o observava.

Ele fez a passagem da melodia mudando o modo da escala de fà maior para La menor. Alguns e algumas dos que ali estavam começaram à cantarolar a canção composta de uma mistura de samba e swing, um ritmo suave e bem leve. Alguns acompanhavam a música balançando os braços pra lá e pra cá.

Fernanda se levantou, abraçou o livro e ficou vendo Ângelo dedilhando as cordas num arranjo perfeito na dissonância de bossa-nova.

–Ah a beleza que existe.  -ele cantou esse trecho olhando para ela. Os ouvintes bateram palma. Depois de mais acordes, letra e melodia, finalizou a canção, desceu do palco e dirigiu-se à Fernanda.

–Oi! –disse ele.

–Oi! A música que você cantou é linda!... E você canta muito bem.

–Obrigado. Mas, eu a cantei porque você me inspirou a cantà-la.

–Obrigada por isso então. –disse ela sorrindo e ajeitando os cabelos com a mão livre.

–E seus pais? Onde estão?

–Não vieram. Eles acham que está um pouco frio aqui.

–Mas, o Rio Grande do Sul é muito frio. –ele arriscou.

–Eu não sou de lá.

–Pode ser que eu esteja querendo saber de onde você é.

Fernanda estava encantada com o jeito sério dele se expressar, mas no fundo ela achava que fosse preciso ser cautelosa quando alguém desconhecido à abordasse assim, tão inusitadamente.

–Tudo bem. Não precisa me dizer de onde você é. Eu acho que eu não sou bom em tentar descontrair uma garota que com certeza quer mais é ter um tempinho distante de tudo e de todos, para poder espairecer as ideias e chegar à uma solução para o vendaval de incertezas que invade a sua cabeça. –foi espantoso, porém assertivo o que ele falou.

Intimamente Fernanda concordou, mas o arregalar de seus olhos e o arrepiar dos pelinhos em sua pele, revelou à Ângelo que ele estava sendo muito profundo em sua observação tão breve. As últimas palavras que ela ouviu do seu avô, formaram uma frase de advertência. “Minha netinha, não và cair na conversa de pessoas estranhas. Você é muito bonita. Hoje em dia tem muita gente sem vergonha”

–Sim. Eu sou de Pelotas Rio Grande do sul. –seriamente ela mentiu. – Mas tem apenas dois meses que nós moramos lá. Nós viemos para cá fugindo do frio. Talvez viremos morar em Goiàs.

–Em que cidade? Você poderia me dizer.

–Na capital.

–Nós estamos na capital. –a fez lembrar.

Ai, que droga. –ela pensou levando as duas mãos ao rosto.

–É que eu estou meio desligada da realidade.

–Beethoven é muito confuso mesmo.

O coração dela pulsava descompassado, e com as mãos tampando a boca, conseguiu apenas perguntar:

–Como você sabe?

–Você ritmava acelerado e, às vezes, lento. Ascendia em tessitura, do grave ao agudo e de lá descia em queda brusca na escala. Do agudo ao grave da tônica tonal.

Antes que Fernanda pudesse se livrar do espanto e novamente usar o benefício da fala, Ângelo a antecederia.

–Você poderia me dizer de onde você vem?

–Eu... eu sou daqui de Goiânia.

–Eu também. –disse ele.

–Que coincidência legal! –disse ela.

Os dois sorriram olhando um nos olhos do outro. Ângelo não diria à ela, que ele jà se via apaixonado por ela.

–Você não quer se sentar um pouco pra gente conversar mais à vontade?

–Nós jà estamos conversando.

Podia ser que faltasse diàlogo da parte de Fernanda que ainda estava sobremaneira ressabiada. Debaixo da camiseta branca dela, seus seios movimentavam como se os pulmões se contraíssem e relaxassem em velocidade acelerada causando nela um desconforto respiratório.  Então ela olhou ao redor e percebeu que não tinha como ela usar a desculpa de ir lá fora tomar ar puro, pois soprava um vento frio naquele momento, pois o local onde eles estavam era um amplo espaço verde com arbustos que separavam as piscinas da quadra poliesportiva e alguns banquinhos de madeira instalados próximos à um jardim em formato de coração propiciando aos casais um bom lugar para possíveis paqueras. Porém, Fernanda sabia que uma simples paquera não teria um início de conversa similar à que os dois estavam tendo.

Por um instante, Ângelo se perdeu na cor dos olhos castanhos claros de Fernanda.  Ela olhava nos lábios dele e ajeitava os cabelos volumosos atrás das orelhas. Aos poucos o assombro ia lhe abandonando, e o olhar deslumbrado que ele direcionava ao rosto dela amenizava sua pulsação arterial.

–Você é muito bonita.  Apesar de que, eu acho que você não gosta de ouvir esse elogio. Especial seria a palavra correta.  –disse ele tocando o rosto dela.

Se fora a flecha do amor que a atingiu, Fernanda não sabia ao certo. Mas devido à sensação gostosa que ela sentiu ao deixar que o dorso da mão dele deslizasse em sua pele com delicadeza e suavidade, ela simplesmente se esqueceu da insipidez de seus dias, da recomendação de seu avô e do que a deixava intrigada por estar sendo paquerada por um estranho que decifrou o seu estado de espírito, – diga–se, contrariado –, em apenas quinze ou vinte segundos em que ela procurava encontrar a pulsação exata de um trecho harmônico da quinta de Beethoven.

Ângelo continuou sentindo a textura da pele macia do lindo rosto de Fernanda. Olhou para cima e comparou o brilho dos olhos dela com o crepitar das estrelas no céu naquela hora.

–Não faça isso. Por favor! Eu... eu nem te conheço. -a voz soou aveludada. Seus olhos continuavam fechados.

–Desculpe-me. Eu sei que causei mà impressão.

Sentindo que ele havia sido muito precipitado, Ângelo agasalhou as mãos dentro dos bolsos da calça que ele usava. Por alguns segundos ele ficou olhando para os seus próprios pés fazendo semicírculos no calçamento do local.

–Eu tenho que encontrar a minha irmã e a minha amiga. Quer vir comigo?

–Não. Perdoa-me, mas eu também vou procurar os meus amigos. Tchau Fernanda. Um dia à gente se vê. –despediu e deu às costas.

–Tchau Ângelo. Até outro dia. –disse ela com ar esperançoso. –Ai!–suspirou– Espero que seja logo. –pensou. –Ângelo. –ela o chamou.

Ele voltou até à ela.

–Sim, Fernanda.

–Eu vi você cantando, e, eu gostaria de e convidar para ir ao conservatório onde eu estudo música aqui em Goiânia. – falou com doçura e timidez. Seus olhos denunciavam que ela estava enamorada por ele. A pele clara do rosto dela transformou-se num tom avermelhado. A boca de lábios rosados e exuberantes parecia querer engolir de volta as palavras ao ver Ângelo fitando seus olhos com um olhar analítico e, ao mesmo tempo, profundamente sincero.

–Eu te prometo que em breve nos veremos. -e se foi.





*


Quando a campainha tocou, Fernanda se levantou às pressas, sabendo que era Verônica quem estava chegando para elas conversarem sobre seus encontros e desencontros. Ao sair do quarto para atender Verônica, Fernanda percebeu que Flávia jà havia antecedido à ela.

Um oizinho e um beijinho de praxe entre elas quando Verônica chegou à sala. Em seguida, elas foram para o quarto de Fernanda.

–E então Fernanda. –disse Verônica. –Como foi no clube? –perguntou se sentando na cama.

–Foi ótimo amiga!–respondeu na frente do espelho.

Verônica viu Fernanda se torcendo, querendo ver sua própria nuca, com uma mão juntando os cabelos e a outra puxando à cartilagem da orelha.

–Fernanda. Você está pensando mesmo em tatuar a letra G em seu corpo?

–Não Verônica. Agora eu vou tatuar o nome inteiro, mas só que é o nome do meu verdadeiro amor. –respondeu abraçando Verônica.

Elas desfizeram o abraço, Fernanda voltou ao espelho e deu mais uma olhadinha.

–Qual nome Fernanda?

–Rodrigô. –respondeu tonificando à ultima sílaba. Ele é de Goiânia, gosta de música e é muito lindo.

–O quê?–perguntou assustada. –Você tem certeza que é o Ângelo? –Verônica não estaria acreditando no que acabara de ouvir de Fernanda.

–É Verônica, Ângelo. Por quê?

–Ai Fernanda, que bom!– disse abraçando–a. – Eu pensei que fosse o nome do Jorge.

–Ah Verônica, o Ângelo é muito interessante. O Jorge não tem essa qualidade.

Verônica também o achava um garoto interessante. De frente ao espelho, ela via a Fênix tatuada em suas costas e sentia que ele não teria dificuldade em explicar mais sobre o significado do desenho à ela. E depois de ouvi-lo na sala de aula ela jamais se esqueceria de como as palavras dele trouxeram significância à sua vida.

–Que bom. –disse Verônica outra vez, com à voz e a expressão de quem não achou nada bom. – Você dois estão namorando ou foi só um lance de final de semana num clube de recreação?–perguntou se sentando na cama.

–Verônica, ele chegou de repente e depois de me deixar caída por ele, me disse tchau e se foi. –disse Fernanda se sentando na cama, cruzando as pernas.

–O Marcelo fez o mesmo depois que a gente conversou bastante ao redor da fogueira com os nossos amigos. O JP chegou dando uma notícia aos três. Daí, o Ângelo saiu correndo e deixou a gente ao redor da fogueira e foi embora.

–O que aconteceu?

–Não sei. O Marcelo, e JP só ficam em um lugar até enquanto o Ângelo também estiver com eles. O Ângelo ficou de me ligar hoje.

–Oi, voltei! – anunciou Flávia. –Ai Verônica! Você vai mesmo fazer outra tatuagem? –perguntou fazendo cara de ranço.

–Não Flávia. Eu não tenho uma letra pra tatuar. –respondeu se sentando na cama dà Fernanda.

–Ah, Eu tenho! –disse Flávia em pé. –Eu vou tatuar uma letra. – disse ela se sentando no piso do quarto.

–O quê?– Fernanda perguntou assustada.

–Você também Flávia?–quis saber Verônica.

–Ahã! Euzinha!–confirmou cruzando as pernas.

–Qual letra?– Fernanda perguntou achando que sua irmã também caíra nos encantos do Ângelo.

–Eu vou tatuar a letra

–Fala logo Flávia. – Verônica ordenou ansiosa.

–R de ruivinho. Paulo Henrickhelson. Ai que fofo! –disse Flávia batendo palminhas.

–Ai que alívio!–sussurrou Fernanda.

–Que bom! Flávia. Isso quer dizer que vocês duas estão amando. –diz Verônica.

–Estou a fim, só.

–E você com o Marcelo Verônica?– quis saber Fernanda.

–È mesmo. O que rolou entre vocês dois no clube?–Flávia reforçou a pergunta.

–Eu e o Marcelo ficamos de nos ver hoje, mas, não tà rolando nada entre nós. Eu o achei um pão e muito legal só que não pintou um clima entre a gente. Parece até que nós somos irmãos. –confessou sem empolgação. –Fernanda eu tenho que te contar um lance. –disse ela se sentando do lado da amiga.

–Agora eu vou fazer um suco pra gente. –Flávia anunciou sua retirada e saiu.

–Pode contar Verônica– disse Fernanda ajeitando os cabelos.

–Eu jà conhecia o Ângelo. Ele é meu professor de música.

Houve uma pausa porque o semblante de Fernanda desfaleceu naquele momento. Ela sentiu que algo de bom entre Verônica e Ângelo havia acontecido. Bom para a sua amiga, mas infelizmente, desnorteador para ela.

–Não houve nada demais entre nós dois, Fernanda.

–Tudo bem Verônica, eu e ele nem chegamos à falar da gente. Eu fui precipitada. Só isso.

–Foi muito louco, amiga...

–O que você quer dizer com essa expressão?

–Foi estranho, diferente. Quando nós nos conhecemos, ele pegou em minha mão e disse que eu era o ar...

–Como assim, ar Verônica? –Fernanda começava à se preocupar realmente. –Que ar? O ar que ele...

–Espere Fernanda. –Verônica falou segurando a mão da amiga que jà estava em estado explosivo. –Eu também não entendi, mas antes de eu perguntar o que ele estava querendo dizer, ele disse que eu era o ar do contralto em relação à música. Eu nem pedi explicação porque eu não manjo nada de música. Só de Rock.

–Droga! Ele usa o conhecimento musical dele para brincar com o sentimento das pessoas. –Fernanda julgou pressionando as fontes do rosto.

–Só que ele não estava brincando.

–Como assim? Comigo ele foi sério também.

–Fernanda, o que ele falou foi incrível. Eu era toda deprê por causa das pegações no meu pé, pela Cláudia e as gatas da vez. De repe, o Ângelo me fez ser outra pessoa.

–Eu sei Verônica. Ele me decifrou quando eu estava revisando uma àrea da composição de Beethoven. Mas, o que foi que ele te falou? Pode me contar, eu jà estou mais preocupada com nós duas, do que interessada nele.

–Escuta só o que o Ângelo disse sobre o ar. O ar está em toda parte. Onde houver uma abertura ele penetra. O contralto representa esse elemento, porque a função dele é preencher as lacunas que ficam entre o soprano e as outras vozes. Quanto à mim, ele disse que eu estou sempre interferindo na vida dos outros para reparar as fissuras que ocorrem entre as pessoas do meu círculo familiar e de amizade. Então ele me recomendou à executar bem a minha função de contralto, apesar de ela ser pesada de conduzir e dolorosa de se ouvir e. E que sem contralto a música soa vazia, e sem mim, o grupo de amigos perde a moderadora de amizades. Sem o ar, a vida fica sufocante. Ainda bem que o ar tem peso, o contralto é volumoso e eu sou constante. Depois, ele viu a Fênix tatuada em minhas costas e falou que ela me representa porque em algum momento da minha vida, eu tive que ressurgir das cinzas. Eu não esqueço uma vírgula do que ele me falou.

–Nossa Verônica! Será que ele jà sabe algo à respeito de você?

–Não Fernanda. À única que sabe como é difícil a barra que eu enfrento é você. Nem mesmo o Ricardo, que me trata como uma filha dele, e eu que o considero como à um pai para mim, não sabe nada sobre mim. Eu gosto do Ângelo, mas foi de modo diferente. Pode acreditar amiga. Talvez o que ele queria dizer seja isso mesmo.

–isso mesmo o quê.

–Eu jà estou entrando no lance de vocês dois. E você sabe que sou eu quem está sempre me intrometendo nos romances terminados de nossos amigos para uni-lo novamente.

–Esquece. Mas e aí? Depois que o Ângelo invadiu a sua mente como fez comigo, o que foi que você disse à ele?

–Ao redor da fogueira eu contei um pouco de mim à ele. De repe, ele foi à recepção do clube, demorou por lá uns minutinhos e voltou me trazendo essa folha escrita com o ponto de vista dele sobre mim. –Verônica entregou a Fernanda uma folha.

Fernanda se pôs à ler em voz baixa.

–Numa visão meramente superficial sobre à vida, ela se apresenta sobre dois fatores: Alegria e/ou tristeza.

Verônica, você parece conceber que a sua vida seja simplesmente insípida por vivê-la de certa forma trancada dentro de si mesma sem poder interagir com amigos e amigas. Na sua fase adolescente, seu número de amigas era bem pequeno, pois contava apenas com Fernanda e Flávia como únicas amigas. Com alguns outros e outras, o grau de amizade era basicamente colegas de escola e conhecidos de vista.

Em certa fase de sua vida, você quis culpar sua mãe por tê–la feito viver fugindo de se relacionar com garotos, adolescentes, jovens e qualquer que fosse a faixa etària de idade do sexo masculino. Tal regra de “modus vivendis” Faria ou faz que uma pessoa independentemente de qual idade ela tenha, venha sofrer a amargura de uma vida vazia e, invariavelmente a concepção que todos têm de vida vazia é, de viver infeliz. Finalmente aos dezessete anos de idade, você não está mais vivendo o modo de vida imposto pela mãe.  (O ar, contralto, você vivia comprimida dentro de si mesma). Ao conhecer o namorado de sua mãe, você o tem como seu melhor amigo,então se abriu à você um leque de oportunidades para se relacionar com novos amigos, e você sente que a insipidez de seu viver finalmente chegou ao fim dando lugar à uma nova ótica sobre à vida e, desta vez sobre um só aspecto: Felicidade. No colégio você começou à interagir com os alunos, e sua vida melhorou significativamente. Verônica, você passou à acreditar que enfim será simplesmente feliz, e que as infelicidades que surgirem em seu caminho serão facilmente superadas. Começou então, à ser a conselheira da escola. Seus novos amigos e amigas sempre contam com você quando a situação fica crítica. Mas, você não conta que a vida não se resuma apenas sobre dois fatores por ainda, até então, não ter experimentado outro fator que é de fundamental importância para a definição de felicidade ou infelicidade. Ele se chama amor. E este sentimento tão etéreo e às vezes tão espúrio farà você entender que a vida deve ser observada sobre vàrios aspectos, e você só conseguirà assimilá-los quando conhecer o seu verdadeiro amor. Eu jà encontrei o meu amor verdadeiro. Torço para que você e a sua mãe encontrem alguém que dêem à vocês duas o amor que vocês merecem. Serei sempre seu amigo.

Finalizando com a leitura, Fernanda suspirou aliviada.

–É só amizade sincera o que rola entre mim e ele, Fernanda.

–Eu sei amiga. Pelo que ele escreveu dà pra perceber. –Agora vamos para a sala.

Ao passarem pela sala, as duas se depararam com Flávia pendurada ao telefone.

–Maninha você jà preparou o suco?

–Jà. –respondeu apontando para a mesa. –Tudo bem, eu vou falar com a Fernanda e com a Verônica. Tchau.

Quando terminou a conversa com a amiga, Flávia se dirigiu à Fernanda e a amiga Verônica. A cara que ela fez não era das melhores.

–O que foi Flávia? –Verônica quis saber.

–O senhor Cândido disse que não é para a gente voltar para São Paulo.

-Mas o vovô Amaro quer que a gente volte.

-É Fernanda, mas quem dà as ordens é senhor Cândido. Ainda mais que, está chegando o dia dos nossos aniversàrios. –Verônica às fez saber.

Contentes elas se sentaram em volta da mesa da cozinha.



***


Fernanda estava deitada com os pés para cima enquanto deslizava os dedos em seus cabelos lisos, castanhos, sedosos.

Pegou o telefone e fez a ligação.

-Alô, quem fala? –Ângelo perguntou como quem acabara de acordar.

-Sou eu, Ângelo. A Fernanda. Eu peguei o seu número com a Verônica. Ainda é cedo. Você jà estava dormindo?

-Estava um pouco cansado e acabei cochilando.

-Tudo bem, eu posso desligar se te atrapalho.

Ele sentiu que ela queria conversar, mas também não queria parecer uma garota pegajosa.

-Não, não desliga, por mim, eu converso com você à noite inteira. Onde você está nesse momento Fernanda?

-Em minha cama lendo um livro indicado por um amigo meu. Você não o conhece.

-O livro ou o amigo?

-O amigo.

Ângelo se levantou e voltou à janela.

-Ele é apenas amigo mesmo?

-Eu não te falei que eu não tenho namorado?

-Não. Não falamos sobre isso.

-Não tenho... a noite está fria hoje, você não acha? Eu estou embrulhada por dois cobertores.

Antes de responder, ele escreveu o nome dela no embaçamento da janela e circulou-o com um coração.

-Está, está muito frio. –falou voltando para a cama. –Se continuar assim durante a semana, eu vou te convidar para tomarmos um chocolate quente na confeitaria da mãe de uma nova amiga minha.

-É só sua amiga mesmo, ou namorada?

-Não.

-E a Verônica.

-Você sabe mais dela do que eu.

-É que às vezes eu não acredito que você não tem uma garota. São tantas que te querem.

-Nenhuma delas gosta de mim, como alguém gosta de você.

-Eu não estou disponível para ele.

-Você está me dando o direito de achar que existe mesmo esse alguém.

Fernanda se sentou na cama na expectativa de poder abrir o jogo com ele.

-Me pergunta que eu respondo.

-Eu soube que você é cotada para ser a garota estudantil da escola esse ano...

-Seja mais direto. –o coração dela disparou.

-Fernanda, eu tenho tanto de mim pra te falar, e não preciso mais saber tanto sobre você. -sentando-se na cama ele esfregou o rosto. Estava apaixonado por ela. O Marcelo me contou sobre sua apresentação musical na escola da Ordem. Você tem talento.

-Você conhece a escola?-perguntou encabulada.

-Digamos que sim.

-Aquele pessoal todo, apenas me ouviu tocando uma sonata e foram embora sem nada me dizer. Eu fiquei frustrada. Pensei que eu teria que fazer uma dissertação oral, ou um exame técnico.

-Eles não avaliam a parte teórica. Para eu ser mais exato, eles ignoram essa àrea. Qual foi a música?

-Uma sonata do século dezoito. Eles me entregaram a partitura sem o nome do compositor. Era para descobrir se eu sou uma pianista de estilos, ou eclética.

Do outro lado da linha, Ângelo fechou os olhos e deduziu que Fernanda estava sendo sondada.

-Não era uma audição avaliativa sobre a sua desenvoltura musical. Eles estavam avaliando você e seu interior. Quem escolheu a composição?

-Fui eu mesma, mas foi o maestro quem me mostrou as partituras. Tinha marcha nupcial, noite feliz, nona sinfonia, e até discoteca ao piano. Pode uma avaliação dessas?

Ele achou que a escolha dela pela sonata do século dezessete fora porque ela estava passando por um período de sufoco. Ele teria que tomar uma decisão.

-Me responda. Você está comprometida com alguém?

-Ângelo, eu não tenho namorado, e não ligo nenhum pouco se os meus colegas de escola me acham a mais... qualquer coisa do colégio. O Jorge nunca vai me namorar. Eu não gosto dele e nem da Valquíria, a mãe dele. Eu sei que eu sou a garota mais estúpida de todas que você jà conheceu. A mais...

-A mais bonita, a mais interessante. Enfim, a garota que me faz esquecer que eu tenho um trabalho musical para terminar. Eu tentei me inspirar para compor uma música com uma temàtica solidària, mas você me inspira à escrever uma canção romântica. Vou chamar você de: a musa inspiradora para um rapaz que jamais sentiu algo tão real e sincero por alguém, como o que agora sinto por você.

-Se tudo isso é verdade, por que você está me evitando?

-Eu não estou te evitando, é que, eu quero ir ver você, mas eu não tenho nada de interessante para te falar, ou para a gente fazer. –disse se levantando da cama.

Fernanda apertou o aparelho telefônico com o ombro esquerdo e se viu emocionada.

Ângelo voltou à janela e escreveu o seu nome junto ao dela dentro de outro coração.

-Ângelo, eu adoro chocolate. Ângelo, você está ouvindo?

-Ah! Sim. Eu estava meio aéreo.

-Eu acho que você está com sono. Que tal a gente se ver pra gente conversar. Eu estar na festa da apresentação da Moça pura e bela e o do Menino de ouro da Ordem Rivera. Và lá também. Será aberta ao público.

-Vou tentar.

-Vou te esperar. Tchau.

Talvez Fernanda conseguisse dormir. Ou podia ser que ela ficasse acordada remoendo tudo que ela soube sobre Ângelo. Ela se embrulhou, mas deixou de cobrir a cabeça e se pôs à olhar o teto do quarto.


*


Ângelo passou horas pensando em Fernanda, fazendo planos e procurando encontrar as palavras certas para compor uma poesia que expressasse de modo simples, porém muito verdadeiro o que ele passou à sentir por ela depois do primeiro encontro dos dois no clube de banho. Não rascunhou uma letra, tampouco dedilhou as cordas do violão. Ele simplesmente deixou seu pensamento fluir enquanto visualizava o lindo rosto dela e sentia o vento penetrar pela janela tocando seu rosto. No entanto, apesar de toda a sua sensatez, era como se a voz do vento sussurrasse o nome Fernanda. Antes de ele se deitar para dormir, decidiu que na manhã seguinte ele à procuraria.

Chegou à casa de arquitetura colonial, onde funciona a escola de música clássica e erudita, ponto de encontro e estudo musical para artistas mais requintados. Ângelo tinha toda liberdade de freqüentar o local, pois ele era nada mais, nada menos que, discípulo de Cândido Plates Rivera conhecedor da arte dos mistérios que se revelam através dos sons musicais.

O local não estava aberto ao público, que por sinal era muito seleto, mas para alguém com a credencial pessoal de Ângelo, não era problema.

“Tô em casa. Quero dizer, é disso que eu tô precisando.” – pensou.

–Vamos lá, o que eu vou tocar antes que aqui fique lotado de gente para ver a Fernanda em ação? Do piano eu só conheço as escalas, do violino eu conheço a diagramação das notas. Flauta, só toco a transversal. Harpa ainda é o meu sonho poder tocá-la. Sobrou o violão.

Ângelo apoderou do violão e o afinou rapidinho, ouvindo o ressoar das cordas aplicando um pizzicato por conhecer bem o som de cada uma a partir das quartas maiores e quintas menores, conferiu os acordes simples e dissonantes. Tudo ok. É agora.

–Ih! Não me vem uma música à cabeça.

Ângelo tateava as cordas do violão, tentando encontrar algum ritmo ou uma articulação que pudesse introduzir lhe alguma inspiração para tocar uma primeira musica, porque depois da primeira as demais viriam naturalmente, mas nada além da sonoridade do acorde natural das cordas ressoando em intervalos mistos. “Bem que o seu Cândido me falou que a música não é a arte de manifestar sentimentos, mas sim de forjà-los e induzir os ouvintes à tê–los.” – pensou. Na verdade ele estava feliz por estar na sala de musica instrumental, no entanto, ele não se lembrava de uma melodia alegre para tocar. Ele havia ficado triste por não ter inspiração, mas também não conseguia tocar nem mesmo uma musica triste. Sentado no sofá estampado de flores, Ângelo continuava dedilhando as cordas livres, sem pestanà-las e sem posicionà-las nos traços.

–Ângelo. –Fernanda quase gritou. –Eu não acredito que você está aqui.

Ele se levantou e abriu os braços para recebê-la.

–Eu prometi que um dia nos veríamos novamente.

–Ai Ângelo, que bom te ver!

Os dois se sentaram lado à lado no sofá.

–Pra falar a verdade Fernanda, eu não parei de pensar em você o tempo todo. Acho até que vi você no Braz.

–Eu morava lá.Por que você não veio falar comigo,

–Os meus dias estavam sendo corridos. Eu tenho emprego e preciso dar rumo a minha vida.

–Olha Ângelo, a minha mãe é corretora de imóveis, e, se você quiser eu posso falar para ela te arrumar um emprego menos cansativo.

–Não, eu não vim aqui pra falar de trabalho. Eu só queria te ver antes de ir trabalhar.

–Ah! Só esse pouquinho de tempo? Você podia ficar pra ver a minha apresentação.

–Infelizmente eu não vou poder. O meu horàrio jà está vencendo. E, eu preciso ir para o trabalho.

Fernanda se levantou bem entusiasmada.

–Vem! Vamos tocar uma música nós dois juntos, antes de você ir. –convidou pegando no braço de dele e levando-o para o piano. –Sente-se aqui do meu lado.

Os dois ficam lado a lado a banqueta. Ela posiciona de modo ereto e repousa as mãos, suavemente no teclado do piano. Ângelo segura o violão pelo braço deixando o fundo da caixa ressoante tocando o piso.

–O que vamos tocar? –ele perguntou.

–Qualquer coisa. – respondeu.

Em seguida Fernanda executou um trillo a partir da nota mi natural ascendendo ao fà.

–Nada ainda? –perguntou a ele.

–Nada. Estou sem inspiração nenhuma.

–Olha só... –ela executa uns arpejos intervalando os acordes em oitavas. –Então, pensou em algo agora?

–Sim. –disse ele batendo o pé no piso e a mão em seu joelho. –Isso, continua suave. –sugeriu.

Enquanto Ângelo marcava a pulsação dos tempos do compasso batendo o pé direito no piso e a mão no joelho, Solange o acompanhava preludiando uma música suave. Ele apossa–se do violão e vai improvisando ascendentemente sobre a Tônica de sol maior usando a sua mediante como base.

–Conseguiu captar essa melodia? –Ângelo pergunta sem parar de dedilhar as cordas nas escalas dissonantes.

–Sim. Essa música é linda! –em seguida ela fecha os olhos.

Ângelo à imitou e os dois tocam suavemente, movimentando os corpos para um lado e outro, sentindo o prazer da melodia. E de vez em quando eles faziam um dueto de voz.

♫My endless love

♫Two hearts, two hearts that beat as one

Our lives have just begun

♫Forever

Ohhhhhh

I'll hold you close in my arms

I can't resist your charms.

De repente, numa manhã, lá estava ele, sentado na banqueta de um piano ao lado de uma linda pianista com sensibilidade musical maravilhosa.

A música ia sofrendo mudanças de ritmo em cada trecho melódico para ao fim terminar com uma articulação Poco hall.

–My Love. –Ângelo.

–My Love, my Love. –Fernanda.

Os dois se olhavam frente a frente, com os rostos bem próximo um do outro. Eles terminam a musica executando uma cadência suavizada, sem desviar os olhos para os instrumentos. Seus lábios se tocaram.

–My endless Love. –Os dois.

Seus lábios quase se colaram.

–Perdão, eu me emocionei. –ele pediu ao terminar o beijo.

–Não precisa se desculpar.

Os dois abandonaram o piano e o violão e foram se sentar no sofá.

–Você é muito talentosa.

–Vindo de você eu fico lisonjeada.

–Eu soube que você fez uma tatuagem...

–Alguém vive me dizendo pra eu tatuar a letra G em uma parte do meu corpo. –envergonhada, Fernanda mostrou à ele aonde seria a tatuagem.

–No pescoço é bem discreto, mas você ficaria muito sexy, e eu acredito que você não quer e nem precisa de mais esse atributo. Sua pureza e classe não combinam com esse adereço. E essa letra, é de alguém que você gosta?

–Era para ser a inicial do nome do Jorge. Um amigo do meu pai, mas eu não quis me tornar uma tatuada para sempre.

Fernanda mentia descaradamente. Ela disse às amigas que não teria coragem nem de se inscrever em uma gincana se ela tivesse que ter o Jorge como parceiro, para não ver o nome dele escrito do lado dela.

–Se você não gostasse, poderia removê-la com acetona. Se não fosse permanente, é claro.

–Você acha que ele se sentiria feliz em ver a letra G tatuada em mim?

–Do modo que você fala dele, vocês dois ainda não namoram. Por isso eu arrisco à ser sincero com você sem sacanear o Jorge. Posso ser?

Fernanda correu as mãos nos cabelos e fica olhando para o piano. Ela tentava disfarçar que jà estava se revelando uma moça dissimulada, pois, Jorge nem chegava à ser uma paquerinha dela. O rapaz era um conquistador barato que achava que com jeito com ela, e paparicos ao pai dela, ele conseguiria ser o primeiro do bairro à tocar os lábios dela. Fernanda o chamava de chiclete mascado, e fazia eca quando pensava nele.

–O que você acha dele? –ela, enfim perguntou.

–Simplesmente nada. Eu não o conheço. Serei sincero ao dizer que, se fosse a inicial do meu nome eu me sentiria honrado pela homenagem.

Ela reagiu como se tivesse tido um choque anafilático ao ouvir o que Ângelo falou olhando diretamente nos olhos dela. Sua respiração ficou alterada. Sua boca abriu assim meio sem querer.

É claro que eu teria coragem de tatuar o R em qualquer parte do meu corpo. –pensou em dizer.

–O Jorge não é assim, tão emotivo como você. –afirmou com um leve sorriso e um olhar desejoso.

–Com certeza não é. –disse se levantando. –Bem, Fernanda, como eu jà falei, a hora não espera. –olhou no relógio. –Eu tenho que ir.

–Fique mais – ela se levantou e tocou o braço dele. – O pessoal está chegando para me assistir. A gente pode fazer um dueto.

Ângelo olhou para a entrada do conservatório e viu que algumas pessoas jà estavam se apresentando na recepção. Com discrição, alguns homens e mulheres o cumprimentavam de certa distância, para então ocuparem os seus lugares. Entre eles estavam Alceu, Mathias e Paulo.

–Eles vieram me ver tocar. Mas, a presença de alguns deles me surpreende. Isso não estava programado. Não seriam eles os meus avaliadores.

–Não perca a classe. –disse ele dando um sorriso suave aos que os observavam.

–Como não Ângelo? Algumas dessas pessoas fazem parte de uma ordem, a qual, os iniciados são seletíssimos e, o grupo deles é muito fechado. Só de vê-los chegando para me assistir eu jà fico nervosa. –deu uma tremidinha esfregando os ombros.

–Fique tranqüila. Eles irão avaliar apenas a sua técnica e postura ao piano.

–Ângelo, que conhecimento musical você possui?  –perguntou à ele e acenou para os distintos expectadores nas poltronas.

Antes de responder, ele fez um gesto bem sutil com a mão para Amaro que o com feição sisuda olhava-o por sobre as lentes dos óculos.

Fernanda ficou como à ver navios ao vê-los se cumprimentando à meia distância. Seria um cumprimento? – ela pensou.

Em seguida, alguns outros e outras que também se apresentava à sala de audição, cumprimentavam Ângelo, mas não repetia o mesmo gesto à ele.

Não é um cumprimento formal. –Fernanda pensou outra vez.

–Você conhece essas pessoas? –perguntou intrigada.

–Bem, eu só posso dizer que nenhuma delas é o Jorge. –beijou a mão dela. –Faça uma boa apresentação. Até outro dia.

–Ângelo! –ela exclamou vendo-o dando as costas.

Quando ele virou-se para Fernanda, ela  não estava mais sozinha. O delegado Valdir estava conversando com ela e fez um sinal para Ângelo. Ele foi ao encontro dele do lado de Fernanda.

Fernanda tinha um sorriso no rosto, mas ao ver a reação dos dois, ela ficou um pouco sem graça.

-Fernanda eu preciso ir embora. –Ângelo avisou.

-Jà vai Ângelo?

-Papai!... Ângelo espere a minha mãe...

-Tchau Fernanda!

-Ângelo, papai, o que houve? –estava indecisa, à qual dos dois, ela dirigia à palavra. Quando ela olhou para a rua, Ângelo jà havia passado por o outro lado.

-Deixe ele ir, Fernanda. Ele não vale...

Marluce acabava de chegar, mas não pôde conhecer que era o Ângelo que ela conhecera em São Paulo. Ele saiu em direção oposta à que ela chegava.

-O que está havendo aqui? –quis saber.

-Mamãe! –exclamou Fernanda abraçando-a.

-Você devia procurar saber direito com quem à sua filha está se envolvendo.

-Se acalme filha!-Marluce a acalentava em seu ombro. –O que houve com seu namorado?

-O papai o conhece. –falou ainda abraçada a mãe.

-Và para casa, Fernanda. Eu vou conversar com o Valdir.

-Eu não aceito que ele namore a Fernanda. Ele teve sorte por eu não tê-lo expulsado daqui à ponta pés. Ele não presta. Estou indo falar com a Fernanda. –avisou saindo.

-Não và mentir para ela.

Marluce se via diante de uma situação complicada, de um lado, a filha apaixonada, do outro, um pretendente à esposo que tinha se mostrado um homem cheio de mentiras para esconder sua real intenção em relação à Fernanda.

Não havia pranto nos olhos de Fernanda, apenas um profundo sentimento de sonho perdido. Olhando em direção à esquina, ela pressupôs que Ângelo pudesse ter ido pra lá casa de Verônica, no entanto, ela precisava ter uma conversa com Valdir, primeiramente.

-Papai! –disse Fernanda. –Eu quero falar com você.

-Olha Fernanda, eu acho que ele não serve pra você. –foi dizendo.

-De onde você o conhece?

-Eu não quero falar sobre isso.

Marluce o olhava.

-Vamos Valdir, diz à ela o que você afirma que ele é. Não me envolva nessa história. Não me envolva.

Valdir ignorou a última recomendação e voltou-se para Fernanda que estava completamente desnorteada.

-Olha Fernanda, o Ângelo é um psicopata. Ele faz mal para as pessoas.

Fernanda teve um choque.

-Mas por que?

Marluce o olhou e percebeu nele insensibilidade para com o sentimento da filha.

-Depois eu quero conversar com você filha. –disse Marluce.

Fernanda não quis ouvir mais nada.

-Aonde você vai filha?

-À casa da Verônica, mamãe.

-Deixe-a ir Marluce. –disse Valdir abraçando Marluce.

-Me solte Valdir. –deu um safanão no braço dele. -A mim você não engana.

-Você acha que eu devo procurà-lo para pedir desculpas? –ele fingia que Marluce não o ofendia com a indiferença e desconfiança dela.

-Và para o inferno, Valdir. –bateu o portão e entrou na casa.


***

O telefone tocou, Ângelo foi atender.

-Ângelo, venha ao meu encontro, eu estou com uma refém nas mãos. E mande Darlene, Débora e Fátima virem na frente. Sobrado ao extremo da sua casa, à esquerda da rua.”

Sozinho ele percorreu a rua e chegou ao local do encontra marcado. Analisando a escada antes de iniciar à subir por ela, ele imaginou um diagrama contendo as notas musicais nos degraus. Ele sentia a pulsação sombria de uma canção em toda a sua conjuntura, rítmica, andamento, compasso e métrica. Do maior. 4/4. Acéfalo. Lento. Superou três degraus, iniciando do segundo que seria Re. O primeiro seria Do, mas o ritmo inicial da canção era decapitado. No quarto degrau ele não pisou, avançou direto ao quinto.  “Do. Re. Mi. -. Sol”.  Dali ele voltou o pé direito ao degrau às suas costas e o pisou com pouca força suficiente para fazê-lo romper deixando um buraco na escada. Embaixo, naquele ponto havia um buraco de grande profundidade aberto. Uma queda daquela altura seria fatal.

Respirou e reiniciou a escalada. Subiu mais um degrau e fez uma pausa em cima do que seria o sexto.

‘“La.

Parou ali para analisar o sétimo que seria o degrau Si. Resolveu suprimi-lo e foi direto ao degrau superior. Do oitavo, ele estucou o degrau inferior, Si, fazendo-o despencar da estrutura da escada deixando uma abertura que o lavaria de encontro a morte certa ao cair dentro de um tubo de metal que o conduziria à uma fornalha subterrânea, de combustão à gàs e acendimento elétrico. Superou mais cinco degraus e pensou antes de pisar no próximo, Si novamente. Ele jà estava à margem do patamar central, a plataforma de largura e comprimento de um metro quadrado. Reparando-a Ângelo intuiu que a resistência daquele patamar não fora adulterada de acordo a ordem dos tons e semitons. O patamar seria a repetição da nota Si. Mas, o degrau superior estava comprometido. Então ele agachou-se e correu as mãos em volta das bordas do degrau Do e encontrou dois pequenos calços de madeira em formas de cunhas sustentando apenas o peso do degrau de madeira.

Ele desceu ràpido, e foi parar debaixo da escada. Justamente no ponto debaixo do patamar fora instalado um tanque de zinco sobre uma armação de ferro com rolamentos nos pés.  O tanque quadrado comportava quatro metros cúbicos de àgua com piranhas vorazes e famintas. Ângelo deu um giro procurando um objeto qualquer.

-Achei. –disse ele ao ver um varão de madeira com a rede de apanhar peixes. Lançando mão do varão ele o apoiou no joelho e o partiu em dois. A quebradura formou pontas semelhantes à canas cortadas para serem introduzidas em engenho de moagem. –beleza, do jeito que eu queria.

Com cuidado ele subiu no tanque destampado e se equilibrando sobre ele, se esticou todo para conseguir danificar com um varão o encaixe do patamar Si, mas, ele constatou que a firmeza dele jà estava sim comprometida, com calços precários para um patamar daquele tamanho. Foi inútil a quebra do varão.

Pulou do tanque e o deixou onde ele estava debaixo do patamar que não resistiria sequer o peso de um gato magricela pisando sobre ele.

Voltou à subir a escada, e sem nenhum acidente de percurso ele alcançou o segundo andar. Aporta estava trancada, com a chave do lado de fora. Ao abrir a porta, ele se apresentou vivo e inteiro sem nenhuma escoriação, ao ardiloso feitor de armadilhas, que não esperava vê-lo em tão bom estado de saúde física e frieza emocional. Foi recebido com palmas cadenciadas dadas pela misteriosa figura encapuzada.

-Você é bom, Ângelo.

-Quem é você?

-Um amigo. Eu também não esqueci nenhuma sílaba da canção.  Você não mandou as outras mulheres que eu pedi. Veja, eu trouxe essa bela mulher comigo. –indicou para Valquíria caída no canto da sala. -Ela está apenas inconsciente.

As pernas dela formavam o número quatro, braços caídos ao piso, com as palmas das mãos para cima, o corpo envergado escorado à parede e cabeça tombada para o ombro esquerdo. Ângelo não demonstrou nenhum tipo de preocupação com ela, e também não esboçou reação de ameaça contra o encapuzado quando ele perguntou pelas outras duas companheiras dele que ele não às mandou na frente.

-Elas não estavam em casa.

-Você terà que pagar pela bonitona ali, jà que não trouxe as outras três valiosas mulheres como base de troca.

-Eu não tenho nenhum vínculo afetivo com essa mulher. Ela não é minha mãe, se fosse não tentaria fazer sexo comigo. Para mim tanto faz, ela saudàvel ou machucada por você. Ela, você e todos os seus parentes, supostamente jà morreram outras vezes. Mas você devia ao menos ter coberto as pernas dela com uma toalha. Vestidos de seda, curtos e rodados deixam à mostras as intimidades das mulheres quando elas ficam nessa posição desconfortàvel.

-Você não está falando sério, ou está me achando um imbecil. Mas, eu sei que o sangue dela não corre em suas veias, porém, ela é muito preciosa para você.

Ângelo deu de ombros.

-As cartas que eu escrevia e enviava para o endereço da casa da Fátima, era você que às recebia. E o carro que me seguia pelas ruas no Braz, era você que o dirigia?

-Sim. Fátima não poderia lê-las e correspondê-las. Não atropelei você porque tudo teria que ser feito à seu tempo. Hoje eu sei que você não é filho de nenhuma delas, e não terei nenhum constrangimento em eliminar você aqui e agora. Mato você e vou-me embora dessa cidade. –e sorriu com os dentes cerrados. Estarei à cima de qualquer suspeita.

-Então eu não vou perder muito do meu tempo com você. Esse jogo de descubra quem ele é, eu começo à jogar logo assim que me deparo com alguém de personalidade maleàvel e caràter duvidoso.

-Você não me parece ser tão perspicaz assim.

-Em sua armadura de clave que representa o seu espírito, não existe elemento de definição de tom, não por você ser natural e simples, mas sim por você ser uma partitura modulável de acordo o querer de quem cifra a sua natureza indefinida. Tudo o que nós conversamos, era eu quem dava base à você para compor suas estrofes descoordenadas.

-Você não sabe com quem está lidando, afinal de contas, você me perguntou quem sou eu.

-A primeira vez que nós conversamos na delegacia, você não soube modular as frases corretamente. Em campo minado, quem sobrevoa são os ataques aéreos que serão abatidos pelos guerrilheiros de terra que, jà preparados, os esperam. Os soldados de terra devem dar a volta para pegarem os inimigos despercebidos.

Dentro da màscara, o mascarado enrubesceu o cenho, por saber que em pouco tempo de conversa que ele teve com Ângelo foi o suficiente para ele detectar seu mau caràter e bandidagem camuflada por fardas militares.

-À propósito, a mulher que não te quer como marido, não se chama Arlete. –depois da fala, Ângelo deu as costas e foi saindo. -Marluce é o nome da mulher. Mate essa daí, eu te denuncio, e você será preso em flagrante. –concluiu da porta e a fechou em seguida, forçando a perseguição.

-Miserável. –o delegado praguejou arrancando o capuz.

Valdir procurou e encontrou o calibre 38 dentro da gaveta, e apossando dele saía às pressas atrás de Ângelo para liquidar com a vida dele.

Nesse ínterim, Ângelo jà havia descido a escada, mas o esperava em pé sobre o piso térreo abaixo do primeiro degrau. Do alto da escada Valdir, procurava um ângulo melhor de visão para ele dar o tiro certeiro. A coluna roliça de madeira que sustentava o assoalho do segundo andar fora erguida a partir da face inicial do parapeito de contenção na lateral da escadaria. Detràs da coluna Ângelo não seria alvo fàcil.

-Sabe por que foi que em 66, Otero, Norato e Ferreira foram mortos apunhalados, e não como foram atestados nos resgates dos seguros? –quis saber descendo o primeiro degrau da escada.

-Porque não foi você que os matou. Apenas sabia quem era o assassino, e o acobertou.

-Você é mesmo muito esperto. Mas, é porque eles foram mortos apunhalados, e o meu negócio é apertar o gatilho. -desceu mais alguns degraus e reparou que o patamar jà estava bem próximo. No degrau à cima do patamar ele não pisaria. Era Do adulterado. -Eu usava droga para conquistar as mulheres no passado, por causa do meu desatino sexual. Você não usa droga nenhuma e conquista muitas mulheres, mas, você vai morrer por causa da sua petulância e interferência em meus planos.

Então Ângelo se deu conta de que Valdir fosse Augusto Rivera, mas não demonstrou nenhum sinal de que ficara estarrecido com a descoberta.

-Tudo que eu fiz com tantas mulheres no passado foi por ordens de Cândido Plates Rivera. Só que ele tinha seus segredos e propósitos, eu tinha os meus. Acabei ficando sem nada, enquanto que a Ordem Rivera se tornou ainda mais rica, com as mortes de Otero, Norato e Ferreira à dezessete anos atrás. Fátima, coitada, e eu ficamos sem nenhum tostão.

-Você não matou os três homens em 66, mas com a sua ajuda alguém matou Mathias, Alceu. Exceto o Paulo que morreu doente, Cândido tem algo à ver com todas essas mortes?

-Você sabe mais do que eu. Mas, eu sou quem devia estar nadando em dinheiro.

“Meu amiguinho saiba que uns morrem para que outros vivam e vivam melhores. - latejou na memória de Ângelo”

Valdir fez a mira. Ângelo afastou um pouco mais para detràs da coluna.

-Daí você não me acerta.

Valdir pulou direto para o patamar e ao tocar os pés na madeira veio o desespero tardio.

-Nãooo. –gritou mergulhando no tanque onde as piranhas aguardavam a alimentação, fosse ela qual fosse. Ele teria cometido um erro na escala diatônica.

Ângelo foi parar debaixo da escada e viu Valdir Augusto se segurando na boca do tanque, mas não tentava escapar de lá. As piranhas haviam devorado grande parte das pernas dele. A àgua borbulhava por efeito do cardume de peixes famintos disputando cada centímetro da carne dele.

-Você devia saber que as notas Si são sensíveis em escalas de Do maior.

O delegado bandido desapareceu em meio à àgua vermelha de sangue.

Ângelo recordou de Fátima e sentiu um aperto no peito. Talvez ela gostasse de um cràpula e não teria noção de que o tal era um oficial encarregado de fazer com que a justiça se cumprisse em todos as modalidades de ações criminosas, mas por ironia, o bandido usava fardas e se passava por praticante da lei e da ordem.

***

–Justiça foi feita, Ângelo. Justiça foi feita.

–Obrigado pelo beijo, Valquíria. –fitando os olhos dela ele disse. A fala e o olhar de Ângelo fez estremecer o corpo dela.

Ela se deixou cair sobre a cadeira, como se houvesse sido atingida por um potente golpe.

–Você era a empregada da Fátima, não era?

Os olhos de Valquíria faiscaram de espanto. Ângelo inquiriu outra vez a resposta, com seu jeito de olhar para ela, e gesticular com as mãos.

–Naquela noite, eu e Fátima, estávamos na casa para darmos a luz aos nossos filhos. Augusto não estava em casa porque ele teve que se livrar de ser morto assim como Otero, Norato e Ferreira. –Valquíria fechou os olhos buscando forças para continuar. –Estava sem luz elétrica. Mas, tinha três mortos ali.

Ângelo estabelecia uma linha de raciocínio para chegar à uma conclusão lógica sobre tudo que Valquíria disse.

–Alguém matou aquelas crianças, Valquíria, mas de que forma, e por quê?

–Uma estava caída rente à parede...

–Debaixo da janela do segundo andar da casa. Eu vi a janela quebrada. Outra foi morta queimada. A outra foi afogada na piscina. Eu estive lá.

Ela meneava a cabeça. Ângelo analisava. Ele aguardava a réplica que condissesse com o movimento da cabeça dela para um lado e outro.

–Eu e Fátima acordamos com os nossos partos realizados. Nossos filhos estavam vivos do nosso lado. Depois de acalmá-las, nós dormimos e quando nós acordamos, a Débora e a Darlene estavam enlouquecidas correndo pela casa e falando aos gritos, que os bebês delas estavam mortos, mas que eles não eram filhos delas. – cobrindo o rosto com as mãos, Valquíria se mostrava horrorizada.

–E você fugiu trazendo o Jorge.

Valquíria se conteve para não responder de modo agressivo. Mas, não daria para ela disfarçar a expressão de raiva em seus olhos. Só então ela se deus conta de que Ângelo não confiava nela e que jà desconfiava que ela fosse uma mulher maquiavélica, violenta e, sobretudo, assassina.

-Constatou-se através dos exames feitos no sangue da Fátima, que ela não é mãe do Jorge. Você o registrou em seu nome e do Alceu, e os dois o criou como se ele fosse o filho do Augusto.

Os olhos dela parecia expelirem labaredas de fogo.

–Você não sabe o que está dizendo. O Jorge é filho meu e do Augusto. Mas eu não tinha a intenção de revelar ao senhor Cândido, que o Augusto era um homem sem honra e não respeitava à mulher nenhuma, nem ao menos uma pobre empregada. Por isso eu nunca quis herdar o dinheiro do senhor Cândido. Tanto é que, eu não me apresentei à ele como sendo a mãe do neto dele.

–Porque você não tinha certeza, afinal de contas, três bebês saíram vivos daquela barbárie. Quando você soube que ele podia ser filho de outra mulher com o Augusto, você cuidou logo de drogar a Fátima a mais cotada para ser mãe dele para extrair os sangues dos dois. Com efeito, se Fátima não fosse mãe dele, ela seria condenada a prisão por todos os danos causados à ele. Se fosse Jorge o algoz e filho seu com o Augusto, ele seria inocentado porque você responderia pelo erro dele.  Jorge sendo filho do Augusto, e você a mãe dele, você teria dado um neto ao seu Cândido. Assim o senhor Cândido saberia que supostamente, você era a mãe de um neto dele, que merecia respeito e consideração da parte dele, e você herdaria a fortuna do senhor Cândido.

–Ângelo. –disse ela, com calma. –Eu saberei se o Jorge é meu filho, somente após os exames de sangue realizados em mim. Se eu jà soubesse eu o teria defendido no tribunal.

–O Jorge é seu filho e do Augusto sim. Mas algo saiu errado, Jorge não possui tipo sanguíneo que ateste que ele seja neto do senhor Cândido. O seu filho é fruto de suas orgias sexuais com os seus próprios consangüíneos. Outro alguém realizou os partos de todas as mulheres naquela noite. Os parteiros misteriosos salvaram o seu bebê e os outros bebês que você os mataria juntamente com as três respectivas mães.

–Não, não, nãooo. Eu não tenho parente e não matei à ninguém. Você deve estar ficando louco.

Ângelo saiu e à deixou sozinha procurando um objeto na gaveta. Apoderando-se de uma faca, Valquíria cravou-a em seu próprio coração.

Ângelo jà havia passado pela porta e fechado-a às suas costas. Não a ouviu.

Caída no piso da cozinha ela agonizava, mas ainda pôde dizer suas últimas palavras:

–Você também não é neto de Cândido e nem saberà quem você é, ou de que linhagem maldita você descende... –e morreu.


                                                                  *

Amaro sentiu um fisgar profundo e doloroso feito a machucadura de um punhal à perfurar seu coração ao ver Ângelo se aproximar dele. Respirou fundo e baixou a cabeça.

–Alguém sacrificou três mulheres e suas crianças naquela noite. Os seus três irmãos foram mortos. Conte-me quem foi o culpado por toda essa trágica sina familiar.

–Cândido. Você precisa saber de toda a verdade...

06 de junho de 1966. Noite dos partos.

Otero teria que admitir que ele fora inconsequente ao permitir que Darlene ficasse sozinha em casa durante quase uma semana logo depois de Augusto tê-la conhecido em um jantar oferecido à ele por Otero em sua própria casa. Na ocasião, Darlene não fazia ideia de que para Augusto, uma linda mulher com um vestido de seda roxo, com fendas nas laterais das pernas, e decote em v deixando visível a beleza anatômica de seus seios, fosse muito mais apetitosa do que um risoto de camarão acompanhado de vinho seco, - a bebida fora levada para o jantar pelo ilustre convidado.  E, na entrega da garrafa à sensual anfitriã que o atendeu na porta ao chegar naquela hora, Darlene jà pôde descobrir à que fins Augusto estaria ali. Não seria apenas para saborear o cardápio refinado. “Você está encantadoramente maravilhosa.” – disse ele beijando o dorso da mão direita dela.  Darlene apenas levou a mão esquerda ao coque do cabelo e o convidou à entrar.

Lá pelas nove horas da noite, Otero chacoalhou o relógio no pulso, conferiu as horas, pediu licença à Augusto Rivera, disse que ele podia ficar à vontade em companhia da atenciosa esposa, pois, ele tinha que ir à um encontro com alguns clientes. Minutos mais tarde, Augusto Rivera e Darlene estavam bem à vontade sobre lençóis amarrotados.

-Eu pensei que você fosse uma moça de respeito quando se casou comigo, e, eu deixaria que nossa primeira noite acontecesse quando você estivesse pronta à se entregar à mim. Mas, Alguém fez e faz com você o que eu pretendia fazer no momento oportuno.

-Você sempre quis que eu me entregasse à outro homem. –disse Darlene se levantando para levar as sobras da leve refeição de início da noite, ao cesto de lixo na pia da cozinha.

-Não diga isso, Darlene. Eu sempre te amei e considerava uma moça indefesa que não estaria pronta para se tornar mulher bem nova após um casamento tão recente.

-Jogando o prato dentro da bacia da pia ela jogaria na cara do Marido as intenções dele para com ela.

-Você me tratava como à uma filha prometida para um moço rico como o Augusto. E sempre usou a desculpa de que você sentia amor compreensivo por mim, e que por isso não queria me ter antes do tempo, mas, depois da minha gravidez de um filho dele, você se tornou um marido excelente. Convenhamos, Otero.

-Não se irrite. –disse com sarcasmo. -Só me resta aceitar que seja meu o seu primeiro filho. –assegurou, mas com certa indignação, por achar muito pequena a possibilidade.

-Se você quer ser pai, que seja com uma de suas amantes. Admita que você teve outras mulheres durante o período que você me deixou após ter me oferecido ao Augusto Rivera.

-Eu continuo vivendo com você para não dar lugar aos falatórios das pessoas que não sabem que eu ainda não tenha feito amor com você. – disse com profunda expressão de complacência em respeito à sua condição de marido traído que perdoara à mulher. -Darlene enervou-se de modo à tal, que à fez jogar um prato de louça no piso da cozinha.

-Tudo certo, minha querida, – disse ele pisando nos cacos. –Perdoe-me se eu te deixei nervosa. – e à abraçou por tràs, acarinhando a barriga enorme dela.

-Me solte Otero. Não tente se redimir. Isso é patético. Para nós dois não têm mais jeito. Và se acostumando. –disse decidida.

Ela deixou a louça para ser lavada depois. Sentia que a bolsa amniótica havia delatado. Ela saiu noite à fora à procura de ajuda para dar a luz à seu filho. Tentando se segurar na parede de um muro, ela foi surpreendida por um homem e uma mulher que a abordou e a levou para uma casa próximo dali. Dentro de um cômodo totalmente escuro ela foi parar. O parto fora realizado, porém, seu bebê fora levado por alguém, sem que ela pudesse tê-lo visto.


***

Norato penteava os cabelos de frente ao espelho e decorava em pensamento o texto bíblico que ele pregaria em uma igreja à qual ele fora convidado à presidir o serviço de culto logo mais às dezenove e meia da noite. Da igreja, ele iria à um córrego para batizar aos novos convertidos.

-Você passou muito tempo conversando com o Augusto. Isso não é bom. Você sabe que ele é casado.

Débora fechou a bíblia e a devolveu à escrivaninha.

-Ele é apenas um rapaz diferente dos outros, e não se interessaria por mim que sou casada, e ele também.

-Você não tinha o direito de fazer o que quisesse do seu corpo, de suas entranhas e de sua alma.

-Norato. – disse Débora se mostrando estafada. –Eu posso até ser uma evangelizadora que conquista aos meus ouvintes por causa da minha beleza, como você sempre me joga na minha cara. Mas saiba que eu tenho o meu compromisso de ser uma esposa fiel e dedicada ao marido. Por isso, não se preocupe com a minha fidelidade. O Augusto é só um rapaz diferente dos outros, porém, ele é também muito respeitador.

Certa noite, ao passar por dois adolescentes, um deles disse ao outro, - você jà viu o quanto que a mulher desse pastor é bonita? Ela se parece com a mulher que anda sobre à àgua. -Norato escutou e tentou redargüir o primeiro falante. –respeite a mulher de um servo do senhor, moleque. –O outro entrou na conversa e disse, - eu não sei como é que uma mulher bonita daquele jeito teve coragem de trocar o marido dela por um safado igual à você.

Norato amarrou os cadarços do seu sapato bem lustrado com graxa preta e jà de pé apertou o nó da gravata.

-Mulher prudente não fica de conversinhas com um homem casado. E esse filho que você está gerando, com certeza é dele.

-Quanta desconfiança. Você está é com ciúmes de mim.  –disse ela. –Você acha que eu me entregaria à ele, estando casada com você e compromissada com a palavra, e esperando um filho?

-Onde há fumaça há fogo Débora. E você deu lugar ao diabo, ele te tragou usando um lobo com o nome de Augusto. Eu ainda estou casado com você e vou assumir essa criança, porque sou um servo de Jesus. -disse vestindo o paletó.

-Deixe de tanta preocupação. Você diz isso porque você jà caiu em tentações por diversas vezes.

-O que é que vocês dois conversaram?

-Nada. O Augusto não é de conversar muito. Và para o culto em paz querido, eu estou muito exausta hoje e não poderei te acompanhar ao batismo. Mas não demore, eu acho que dessa noite não passa. –pediu ao sentir que ela daria à luz naquela noite.

-Mulher, você não me engana. E não queira me iludir. Não queira e nem tente me trair. -segurou forte nos pulsos dela. -Não pense que eu sigo o mandamento de perdoar setenta vezes sete.

-Me solte, você está machucando à mim e ao bebê.

Norato saiu pisando firme em direção à porta de saída do quarto. Desta vez ele não à machucou porque estaria próximo o triunfal momento de ele se apresentar à igreja. Porém, costumeiramente, ele à esbofeteava e até à espancava usando a própria bíblia. Tudo por ciúmes e insegurança, pois, a beleza de Débora era notória à todos que à vissem mesmo estando vestida em vestidos longos comprados pelo próprio Norato que não a permitia usar saia curta que pudesse mostrar nem ao menos as panturrilhas dela.

O desconforto em seu ventre ia se intensificando, anunciando a hora de ela dar a luz. Minutos depois, ela não teria condições físicas para se locomover nem ao menos para ir ao telefone fazer uma ligação e pedir por socorro. A dor imensa à levou ao estado de inconsciência, e, então ela estava em um lugar estranho, deitada em uma cama, sem o bebê do lado dela, nem dentro de sua barriga.

***

Quando Fátima chegou ao quarto dela, Augusto à esperava sentado na cama, e foi logo querendo saber aonde foi que ela estava toda arrumada daquele jeito. Ela não quis dar satisfações à ele. Ele disse que ela estava se comportando como uma mulher solteira, com aquele cheiro de álcool comum à quem estivesse de ressaca. Ela alegou estar cansada e precisando dormir.

Enquanto ela tirava os saltos, Augusto se deitou na cama.  Fátima não queria dividir a cama com ele nem ao menos como assento. Ela foi à penteadeira para se livrar dos brincos. Ele insistia perguntando o que estaria acontecendo, e a acusando de estar o traindo. Ela se sentou na banqueta da penteadeira e o recomendou à não pensar que ela iria dar razões para ele à considerar como uma adúltera. Tirando os brincos, ela sentiu que havia sim, sido beijados os lados do rosto dela, ou no mínimo, sido acariciados por mãos delicadas e toques sutis. Augusto quis saber, com quem ele esta naquela hora da noite. Ela respondeu que queria ter estado mesmo com outro homem, mas o fato de ela ser casada a impedia de ao menos se colocar à disposição para outro alguém. Falou abrindo o zíper do vestido e pediu que ele saísse do quarto para que ela trocasse de roupa. Mas, ela jà estava com o zíper do vestido de seda pérola aberto. Ele se levantou e a abraçou por tràs, dizendo não acreditar que um homem não dispensasse atenção à uma mulher tão sexy igual à ela, e foi beijando a nuca dela. Ao senti-lo, Fátima fez cara de quem não suportava o toque, o cheiro e nem a presença dele. Mas, ela resolveu tirar proveito da situação.

Ela dava gemidos de prazer.

Augusto sentia que estava atingindo o ponto G da mulher que o deixava delirando de desejo por ela. Parecendo estar à ponto de se explodir de prazer, ela sussurrava palavras melosas enquanto ele tirava vestido dela, achando que ele à estaria livrando ao clímax no momento certo. Até então, ele só apreciava a bela mulher que ele tinha com ele em sua cama, mas, que, os pés dela eram as únicas partes do corpo dela à tocar sua cabeça enquanto ela dormia. Depois que ela o flagrou com as três empregadas, que eram contratadas e despedidas sequencialmente, ela nunca mais o quis para sexo.

-Não chegue perto de mim. Solte-me. – bradou virando-se e afastando-o com as mãos.

Furiosamente Augusto à empurrou fazendo-a desequilibrar e cair sobre a cama.

-Você estava pensando no Otero. - afirmou irado e à ameaçou de morte. -Se eu souber que você está me traindo, eu mato você e aquele infeliz.

Ela queria poder dizer algo mais relevante sobre o envolvimento dela com Otero, para assim fazer com que Augusto entendesse de vez, que ela não teria tido relações sexuais com ele, mas o que ficara dele em sua memória foi apenas o cheiro de Almíscar. Um cheiro de perfume masculino penetrava em suas narinas e à faziam imaginar que talvez ela estivera algumas vezes com outro homem, mas, apenas o cheiro do perfume não era o suficiente para fazê-la visualizar mentalmente o aspecto físico dele, jà que ela imaginava que fosse Augusto que fazia amor com ela todas as noites.

-Se o seu ex-marido estivesse vivo, ele estaria satisfeito por saber que eu à amava, mas o respeitava e nunca tentei te roubar dele enquanto ele ainda era vivo. Mas, quanto ao Otero, seu falecido esposo morreria de desgosto ao saber que você estava tendo um caso com um filho de Monsenhor Olavo.

Fátima não respondeu. Mas, ao dizer: seu ex-marido, Augusto à deixou preocupada.

-Poupe-me dessa conversa fiada. –disse espalmando as mãos sobre a penteadeira. –Eu tenho que me trocar para dormir. Tenha uma boa noite.

-Você engravidou daquele... Eu vou me separar de você assim que eu tiver certeza de que você espera um filho do Otero.

Ela sentiu vontade de unir as mãos e levantà-la para o alto em agradecimento à Deus, contudo, com ar de felicidade alcançada ela simplesmente disse:

-Faça isso e sejam felizes vocês e a sua amante. Agora, me leve para o hospital. –pediu sentindo as primeiras contrações de parto anunciado.

-Peça ao pai desse bastardo para acudir vocês dois. –e deixou o quarto, extremamente transtornado.

-Fátima se esforçaria o quanto pudesse para chegar à pés à maternidade, mas ao chegar ao portão de sua casa, faltou-lhe força para continuar a caminhada. Deitou-se ali mesmo, no gramado do jardim. Ainda lúcida, ela viu quando um casal de pessoas à levantou para conduzi-la à algum lugar.

Minutos depois, ela estava em um cômodo sem luz natural ou elétrica.

Ela dera a luz, mas fora privada de ter com ela o que de seu ventre fora tirado.

***

Os maridos das mulheres foram se encontrar em uma casa enorme que contava com cinco quartos, todos eles com suítes, dois banheiros sociais, despensa anexa à cozinha de tamanho extra. Uma sala de estar de tamanho exagerado, mas muito bem mobiliada, com direito à barzinho, aliàs, toda a casa era muito bem mobiliada. Àrea coberta até ao muro da frente, garagem lateral para três automóveis, resumindo. Muito bem projetada. Era uma residência bem confortàvel. Os proprietàrios jà haviam conferido todos os cômodos da mansão e foram conversar sentados nos sofás da sala.

-Só faltou à segurança nacional estar vigiando essa casa pra ela ser confundida com uma fortaleza. –falou Norato olhando para o teto que estava à uns cinco metros a cima das cabeças de todos eles.

-Será que as mulheres vão gostar daqui? –Quis saber Ferreira indo ao espaço bar.

-Com certeza. –respondeu Galdino indo à estante.

Norato não deu opinião e se dirigiu até ao bar para fazer companhia à Ferreira.

-Se elas não gostarem a gente as deixa em suas casas e mantemos os matrimônios por correspondência. Quando a gente quiser dar umazinha, é só ir visità-las.

-Estamos falando de mães e filhos que merecem serem bem cuidados. –Galdino objetivou.

-O que é que vocês estão bebendo? –Otero perguntou apontando aos dois no balcão.

-Eles não me ofereceram. –Galdino respondeu se sentando com um livro na mão.

-Nem à mim. Bota dois dedos de manguaça aí para mim. –disse Otero, fazendo uma chave com os dois dedos. Polegar e mindinho.

-Chega aqui Otero. –Ferreira o chamou.

-Cheguei. Enche aí. –e sentou na cadeirinha alta ao lado do Norato e esperou ser servido.

-Vira aí. –disse Ferreira passando o copo.

-Vocês jà viraram os seus?

-Jà. –Norato respondeu.

-Eu também. –disse Ferreira.

-Agorinha vocês dois estarão virando os olhos.

-Vai um gole aí Galdino? –Norato.

Ele só acenou que não e continuou lendo o livro.

-Lá vou eu. –bebeu de uma vez. -Que pinga boa é essa?

-Engenho Monsenhor legítimo. –Ferreira respondeu.

-Põe mais outra dose. –Otero ordenou. –Eu vou fazer companhia para o nosso irmão intelectual.

Ferreira repetiu a dose de pinga no copo de Otero, que foi se sentar ao lado de Galdino.

-E aí Galdino... Como é que é? –Otero perguntou levando o copo à boca.

-Senta aqui.

-É o seguinte, Galdino... Ou a gente assume, ou então... –bebeu. –Eu tenho que cair fora.

-Por quê?

-Eu estava desconfiado que ela estivesse se encontrando com o Augusto.

-O Augusto é mesmo uma pedra no sapato de vocês três. Mas, uma pedra de ouro. – fechou o livro.

-Você precisa ser cauteloso pra não por tudo à perder. O pai dele deixarà uma grana alta... Bebe aí.

-Eu soube que Cândido sumiu do mapa.

-Foi tudo providencial. Você tem que assumir o filho de Darlene.

-Foi o Cândido que matou o nosso pai. Galdino, eu sou homem. E você sabe como é que é. –bebeu.

Galdino se ajeitou no sofá puxando as barras da calça para baixo.

-Vamos fazer o seguinte. Você não vai ver a Darlene por esses dias. Só a verà depois do resguardo. Tràs ela para ver essa casinha, e diz à ela que assim que o filho ou filha for registrado em seu nome. Depois eu converso com os dois beberrões ali.

-Combinado. –Otero falou enxugando o copo. –Hoje eu quero ficar às pampa. –se levantou e foi até o barzinho residencial para repetir a dose. Galdino ficou lendo no sofá.

-E aí Norato. –deu uma tapa no ombro dele. –Como é que tà os esquemas? –perguntou e sentou rente ao balcão.

-Você entendeu a jogada. – ele afirmou dando uma golada. –Assuma o filho do Augusto e ganhe uma imensa riqueza.

-Rivera será o sobrenome das crianças. Elas estão nesse momento parindo filhos do Augusto. –Galdino falou fazendo cara de quem os chamou de imbecis.

-Não acredito. Mas imaginava que não fui eu que engravidei a Débora. –disse Norato. –Eu nem cheguei à fazer amor com ela.

-Augusto. Esse nome e sobrenome Ferreira?

Ele bebeu com cara de marido enganado.

-Não, mas eu posso descobrir. –Falou. –Só sei que ele estava transando com a Darlene. –e sorriu com os olhos. –Pelo que nós sabemos você não conseguiu saborear Darlene, e o Augusto não vacilou como você.

Otero não quis confessar que jà teria também sido o outro de Fátima mulher de Augusto. A preocupação dos canalhas não é com o bem-estar das mulheres.

-Eu não vejo tanto risco naquele rapaz, aliàs, eu o acho muito simples até. Eu só espero que vocês cuidem dele após os nascimentos das crianças, sem me comprometer. –Galdino objetivou.

Otero se sentou e pediu outra dose. Ferreira colocou os cotovelos no balcão e coçou a cabeça. Devia estar pensando na ameaça do Galdino.

-Vocês vão cuidar dos filhos dele. –disse Galdino apontando o dedo à todos eles.

-Ele engravidou nossas mulheres. Depois dos partos nessa noite será a hora de cobrarmos a dívida.

-Ele me disse que se são filhos dele mesmo, ele pagarà pensões e ainda o incluirà como beneficiàrio do que ele pertence. –Galdino assegurou.

-O que vocês acham irmãos? –quis saber Otero.

-Essa parte nos interessa. –Norato considerou.

Eles riram fantasmagoricamente. Galdino também riu para disfarçar sua preocupação com a segurança de Augusto.

Jà estava chegando a noite e a reunião não chegava ao fim, mas aos poucos, Otero,  Norato e Ferreira iam se embriagando de gole em gole, até perderem noção de tudo à volta deles. Tudo que Galdino queria era despedir mais cedo. Mas, ele esperaria com toda paciência, o momento certo para culminar com o assassinato de seus três irmãos.

Quando o efeito da bebida jà havia baqueados os beberrões e os feito se esparramarem nos sofás, Galdino fez uso dos seus três punhais para com eles eliminar seus três irmãos apunhalando-os nos seus corações, sem dar à eles tempo nem de ao menos despertar do porre daquela última noite de bebedeira.


Atualmente

-Eu jà sei de toda a verdade. Você evitou que o senhor Cândido fosse jogado para fora de um carro que teve a porta e o cinto de segurança danificados, do lado que ele se sentaria para ir embora de carona ao deixar a festa.  E também não aceitou Iolanda ao saber que ela o amava?

–Eu o livrei da morte naquela noite porque eu amava Iolanda, mas não podia exigir que ela me amasse e a impedisse de viver com Cândido. Eu sei que você só está confuso com tudo isso. Mas, saiba de uma coisa, Otero, Norato e Ferreira foram mortos, Valquíria recebia todas as indenizações garantidas pelas apólices de seguros de vida de cada um deles.

–Outros bandidos forjavam seus óbitos. O delegado Valdir registrava as ocorrências dos homicídios. O legista Paulo Vidigal fornecia os atestados de óbitos. Mathias, e Alceu confirmavam as mortes. O senhor os conhecia bem.

–Eu não confiava nos pareceres deles. Cândido achou que fosse melhor assim. Eu não ousaria desobedecer ao meu mestre. –disse Amaro.

–Fátima, Débora e Darlene. Quem seriam os pais delas, Amaro?

Amaro estranhou ser chamado por Ângelo de Amaro, e não de Senhor Amaro, mas deixou que a falta de consideração da parte dele passasse despercebido.

–Elas não eram filhas de Cândido com Dolores, mas os meus três irmãos pensavam que fossem. Eles as matariam depois que as crianças nascessem.

-E eles teriam direito à fortuna do senhor Cândido.

Amaro assentiu.

Ângelo sentiu calafrio em todo seu corpo ao saber que a maldade contida no espírito de cada um dos membros da família de Monsenhor Olavo ia além do que um e outro pudessem imaginar. As intenções de ambos não restringia esse ou aquele de ser vítima do veneno mortífero contidos em suas naturezas cruéis e personalidades maquiavélicas.

“Os homens eram ou ainda são de origem pagã, profanos, cruéis, sagazes e capazes de se porem à serviço do maligno em tempo integral. Não foram batizados e nem sequer possuíam registros de nascimentos” Ângelo recordou do que padre Ovídio disse à ele, e se posicionou lado lado à Amaro.

–Você não permitiria que Mathias, Alceu e Paulo se casassem com as viúvas. E você criava as herdeiras. Na verdade, você pretendia ser contemplado com a herança do senhor Cândido por ter cuidado bem das netas dele.

–Eu errei muito em ter tido muitas mulheres e muitos filhos e por ter abandonado as mulheres. Mas eu não seria capaz de deixar que mais ninguém fizesse mal as crianças.

–Correto. Mas, Débora, Darlene e Fátima foram salvas das mortes certas por alguém porque elas eram as três viúvas dos três homens que alguém os matou nas terras do Sr. Cândido.

–Se você pensa assim. –disse consentindo. -Agora me siga e me deixe te mostrar a resposta para suas perguntas e a solução para as suas dúvidas a meu respeito e a Cândido Plates Rivera.

Eles andaram.

Parado e sem mover um músculo de seu corpo, Ângelo sentia uma forte presença do mal à envolver o local em que ele se encontrava naquele momento. Os móveis de madeiras rústicas, como, mesa de leitura, cadeiras, estante e prateleiras de livros, tudo era muito tosco e grosseiro. As telas do período renascentista de representações religiosas esparramadas pelas paredes e até no carpete do centro da sala, não estavam expostas ali naquele hall para serem tidos como um memorial do apogeu da era cristã, sim para profanação da religiosidade e fé dos cristãos de todas as eras. Com exclusividade para o carpete de material sintético com a gravura da última ceia. No desenho, um dos discípulos dividia dinheiro com os outros, enquanto que, outro preparava o vinho com veneno extraído das presas de uma cobra. Para Ângelo, aquilo seria uma grande blasfêmia.

Uma música orquestral, tocada por um aparelho de som que não era visível ali, fazia fundo ao ambiente sombrio.

Havia também no meio da sala, quatro estátuas de bronze de cavaleiros medievais segurando com as duas mãos os punhais, mas no sentido horizontal, de fios para frente e cabos tocando nos peitos, uma distante da outra, aproximadamente noventa centímetros, formando um corredor entre elas e a parede lateral.

Amaro segurava no ombro de Ângelo, esperando que ele recomeçasse à caminhar. Atento à tudo ao seu redor, Ângelo não deixou de perceber que a canção silenciou-se, mas ele ainda marcava a pulsação e acompanhava os movimentos do compasso usando sinestesia musical apurada. A música reiniciou no terceiro movimento do compasso, com uma seqüência de semifusas. Correu veloz. Às suas costas, as estátuas foram caindo uma por uma e um dos punhais ficou no corpo de Amaro, que caiu de peito para o piso, fazendo com que o punhal penetrasse mais profundamente em seu coração. Ângelo o observou agonizando sobre o piso. Aos poucos o sangue de Monsenhor Amaro ia formando poças sobre o piso.

-O senhor Cândido não sacrificou nenhuma vida. Quando você soube que Darlene, Débora e Fátima estavam vivas, você quis que eu tivesse relações sexuais com elas. Eu só queria descobrir a verdade, Amaro. Seus irmãos, filhos e filha se puseram no meu caminho. Eu não tenho culpa se as ambições de todos eles os levaram à mortes, e à você também. Na busca pelo tesouro, você não deu valor às preciosas pedras que surgiram em seu caminho. Família é o bem mais precioso, mas você não à valorizou, Monsenhor Amaro Galdino.

–Eu te ensinei e você usou o que de mim aprendeu, para me vencer nesse jogo.

–Então eu direi à você o que aprendia após cada vez que você tentava fazer de mim uma pessoa competitiva, arrogante e sanguinària. A pràtica de esportes faz bem para o corpo e a mente e nos torna mais competitivos, mas também pode levar a pessoas à contar com suas habilidades físicas para tornar-se superior à outros seres humanos. Inteligência demais pode transformar os que a possuem em pessoas arrogantes e prepotentes. Durante um tempo você quis me tornar competitivo para ir à busca da verdade, desafiando e fazendo mal para as pessoas que eu às julgasse culpadas. A minha inteligência seria usada para desacreditar e confrontar a fé das pessoas, levando–as ao ateísmo ou à se matarem por suas convicções religiosas. Agora, neste exato momento, eu estou te dizendo o que foi que eu aprendi, e o que representa aquele homem de cabeça baixa, olhos fechados e mãos no coração. Representa à elevação do espírito. Nada adianta ser competitivo e inteligente se não se possui sã consciência e espírito humilde e bondoso.

–Um menino puro teria que efetuar os rituais de mortes. Você sacrificou as vidas que ele teria que sacrificar. –fôlego falhando, olhos se fechando.

Amaro Galdino expirou e morreu sem poder aprender tais lições de vida.

Ele era o único dos quatro filhos de Monsenhor Olavo, que se tornou um homem muito rico usando os mesmos métodos do seu pai sanguinàrio: roubando e matando pessoas, mas não dividiria a riqueza dele com seus parentes, por achar que eles não fossem merecedores da bondade que ele não à possuía.












                                                          *


O velho Cândido fez mesura abrindo uma porta para que Ângelo passasse por ela. Ele viu-se diante de um porão que não tinha janelas ou qualquer outro tipo de abertura que não fosse a porta estreita com travessas transversal de travamento pelo lado de fora. O lado externo do cômodo tinha aspecto sombrio. A parede frontal exibia desenhos característicos dos símbolos usados em rituais de magia negra. Cruzes de pontas cabeças, crânios com punhais cravados nos cimos, uma minguante em sangramento, e escritos em línguas mortas. Era tudo muito espantador aos olhos de pessoas comuns, mas para Ângelo, aquilo não passava de meros simbolismos inúteis para evocação do mal, tendo ele como certo que, o bem e o mal seriam componentes da essência espiritual de cada ser humano. Sobre seis bancadas de cimento, revestidas com pedras ardósias, deitadas inconscientes estavam mulheres com as cabeças raspadas à navalha, nuas, com folhas de lótus cobrindo suas genitàlias. Em cada uma das mulheres um punhal fora cravado no coração. Cabelos em molhos jogados no canto da recâmara.

Ele caminhou indo ao centro do cômodo onde um piso elevado à meio metro do nivelamento normal, era a recâmara propiciatória de um sacrifício satânico. Do lado de cada corpo de três das mulheres tinha também um bebezinho morto. Junto às outras três mulheres, havia mais três adolescentes, mortas com seus órgãos genitais também cobertos com folhas de lótus. Ângelo não os descobriu para uma definição de sexo. Sabia do que se tratava tudo aquilo.

Era um cenàrio desorientador para um expectador normal, porém, Ângelo conferia tudo com frieza isenta de qualquer descontrole emocional. As visões e audições poderiam ter ralação com as pessoas que ele teria de conviver com durante o percurso de sua vida após tornar-se apadrinhado do grande Cândido Plates Rivera.

Deu às costas à exposição macabra e saiu do local, tão natural quanto quando ele estava ao entrar.  Tudo que ele presenciou fora apagado de sua mente. No entanto, os cheiros de alabastro, gesso, corante natural e incenso de Dama da noite ainda se faziam frescos ao seu sentido olfativo. De olhos fechados ele definiu a composição dos elementos e o cheiro de unguento.

Travou a porta e caminhou para o reencontro com seu mentor.

Cândido segurou no ombro direito de Ângelo e o conduziu ao quintal. O sol irradiava o brilho intenso do meio dia, mas, o vento suave e refrescante daquela hora trazia ao velho as cinzas do passado, e com as cinzas a escrita de uma história não contada à ninguém, sim mantida em segredo até aquele momento em que ele tinha do seu lado o seu menino de ouro, o seu baú do tesouro, a sua jóia mais rara.


***

Noite de 06-06-66

Iolanda pacienciosa escovava fios de náilon, tecendo-o para transformá-los em cabelos de bonequinhos e bonequinhas. Cândido arrastou uma cadeira de madeira envernizada, colocou-a do lado da esposa e sentou. Iolanda parou a escovação e aconchegou a cabeça no ombro dele.

-Pronto, Iolanda? –da porta do ateliê ele perguntou à esposa.

-Os bebês já estão prontos. Pode ir. –disse ela.

Iolanda lavou as mãos e se livrou do avental alvo como algodão processado.

-Estou indo, e que tudo saia como planejamos.

No quarto de Fátima, Candido encontrou as mulheres já despertas, e vômitos esparramados pelo piso.

-Onde estamos. –Débora perguntou estranhando tudo à sua volta.

-Estão seguras. Eu preciso dar uma notícia à vocês. –disse Cândido se sentando numa cadeira, tendo as três mulheres à observá-lo. –Vocês, agora são mães de três crianças perfeitas?

Elas não sabiam o que responder. Suas lembranças teriam sido apagadas. Olharam para os copos vazios sobre a mesa tentando rebuscar as recordações anteriores à chegada delas ali. Mas, foi em vão. Ficara apenas o sabor amargo do chá de ervas que elas teriam bebido e o lançado fora em seguida. Mas, os feto de Valquíria filha de Galdino foi abortado.

-O que aconteceu com a gente? –Valquíria quis saber.

-Vocês estavam indo para um hospital, mas o carro deu uma pane no sistema elétrico e não poderia chegar na hora marcada. Vocês tentaram ir à pés, mas o cansaço causado pela longa caminhada às venceu e, vocês dormiram numa cabana, e seus filhos nasceram. Eu às trouxe para cá. Amaro Galdino já foi avisado e virá estar com vocês, trazendo as suas crianças. Eu acho que estamos recebendo visita. – falou à elas e foi receber o esperado visitante.

Cândido espanou as mãos em sua batina preta e tirou o gorro preto de sua cabeça.

-Temos muito trabalho à fazer. –disse Cândido. Eu encontrei três bebês, femininas. Iolanda e eu já cuidamos de tudo.

-E as mães? –Galdino perguntou.

-Estão sendo preparadas para a cerimônia de oferendas, juntamente com as crianças.

-Eu cuidei de eliminar os meus irmãos. Temos que partir daqui imediatamente. Houve muito alvoroço por aqui essa noite. Eu sugiro que você leve os bebês para Goiás.

-Assim será feito.

Atualmente

-Iolanda passava o tempo fazendo bonequinhos parecidos à seres humanos. Então, eu a ajudei fazê-los maiores para serem sacrificados numa cerimônia de engodo ao endiabrado Amaro Galdino.

-Então, os bebês e mulheres que foram enterrados eram feitos de alabastro, gesso e corante de erva natural?

-Eu e Iolanda demos os bebês vivos de Darlene, Débora e Fátima, para as filhas de Amaro Galdino para que ele as registrasse com o sobrenome dele e as oficializasse como herdeiras. Assim ele devolveria o que ele, o pai e os irmãos dele haviam roubado dos sócios e verdadeiros pais e mães das crianças.

–Mas como o senhor soube que o Monsenhor Olavo e o filho Amaro seriam tão perversos a ponto de matarem tantas pessoas por causa de uma profecia sem pé nem cabeça?

–Eu Conheci o espírito cruel dele quando ele dançava com Matilde no baile. Ele realizou a dança da morte. Monsenhor Olavo e seus descendentes seguiam o legado cruel de seus antepassados. Infelizmente eu não pude evitar que ele e Amaro Galdino matassem os três casais no ano 1945. Eles faziam parte da ordem dos Monsenhores do tempo. Mathias, Paulo e Alceu eram filhos de Amaro Galdino assassino de seus irmãos de sangue.

-E o profeta, por onde ele anda?

Cândido se pôs de frente à Ângelo e segurou nos ombros dele.

-O profeta está aqui à falar contigo. Iolanda foi morar comigo, mas esperava à um mês, um filho de Galdino, que seria o Augusto. Calculei que Augusto nasceria no mês de junho de 1946. Então fiz uso da numerologia mística para incutir na mente das pessoas a ideia do nascimento de um menino iluminado no dia seis de junho de 1946. Iolanda e eu tivemos que ocultar o nascimento de Augusto, pois, ele nasceu em minha casa na fazenda, no dia dois de junho. No dia sete anunciamos à todos, que ele havia nascido na noite anterior.

-Com Fátima e as demais em 1966, não houve necessidade de ocultação?

-Quando eu às salvei, as levei para minha casa e dei à elas uma bebida. Elas vomitaram e esqueceram dos seus esposos e de que elas estivessem gràvidas. Por pura coincidência, ou talvez por providência divina, as filhas de Fátima, Darlene e Débora nasceram na data predita por mim. Eu às pajeava de perto. Com Valquíria, tivemos que antecipar o parto, ou, ela morreria por estar gerando filho de Augusto que era meio irmão biológico dela por parte de pai.

-As filhas de Darlene Débora e Fátima são filhas de homens maus...

-Eu não os salvei e nem salvaria os três homens também maldosos, que Monsenhor Olavo e Amaro Galdino traiçoeiramente os matou em minhas terras em 1965. Aqueles homens matariam Fátima, Darlene e Débora, sem hesitação alguma depois que elas lhes dessem filhos ou filhas. Mas, não existem espíritos maus hereditàrios...

-Sim, maldades repassadas e praticadas de geração à geração.

-Você é muito sàbio.

-E o Jorge...

-Tal como o pai, ele sempre foi um desonrado, mas não merecia morrer.

-E Iolanda, por que o senhor se casou com ela, se não a amava?

Cândido sacou do bolso da camisa o antigo bilhete escrito por Iolanda.

“Rivera, eu estou gràvida esperando um filho do Amaro Galdino. Quando ele nascer será sacrificado em ritual satânico. Eu não posso abortar. Peço à você que, por favor, não me deixe cometer o pecado do aborto, mas também não permita que eu crie um filho prometido ao demônio por seguidores do mal.”

-Augusto era filho dela?

Cândido confirmou com um balançar de cabeça.

-Eu tive que morar com ela que estava gràvida. Mas eu não a tinha como minha esposa. Amaro Galdino não contentaria se Iolanda fosse morta e eu ficasse vivo. O defeito na porta do carro levaria apenas Iolanda à morte. Então ele danificou o freio do automóvel e falou à mim, que não deixasse Iolanda ir com Matilde, Antônia e Doralice sem mim do lado dela dentro do carro porque ele queria que eu fosse com ela para morrermos juntos.

–E quanto à Dolores, senhor Cândido?

-Galdino a tomou por sua mulher, mas, ela o deixou sem ter dado filhos à ele. Valquíria com certeza era filha dele com uma serviçal dele. Eu amava Dolores, mas ela se foi, e, eu perdi a esperança de um dia poder revê-la novamente.

-Eu acho que ela pode estar sentada numa cadeira de balanço em um alpendre de uma casa no Bairro do Braz em São Paulo. Ou talvez ela esteja fazendo doces deliciosos para oferecer ao seu grande amor quando ele resolver ir vê-la, ao invés de mandar cartas sem endereço e nem nome de remetente.

Os olhos de Cândido brilharam de emoção.

-E eu, senhor Cândido, quem sou eu?

-Eu não sei quem são os seus pais. Só sei que você é o meu menino de ouro, a minha jóia mais rara, o meu baú do tesouro.

-Somos escalas enarmônicas. –disse Ângelo, meio que rindo.

-Agora và. Ainda não chegamos à última sílaba da canção.

-Sim senhor, senhor Cândido.

***

A porta do primeiro quarto da casa de Ângelo estava entreaberta. Bastou abri-la um pouco mais para que o estranho visitante adentrasse o aposento. Darlene dormia descoberta e confortavelmente vestida apenas de lingerie. Era o costume dela, que, vivendo sozinha não se preocupava em usar pijamas ou camisolas. O vulto se aproximou da cama silenciosamente, fazendo com que Darlene sentisse a corrente de ar percorrendo todo seu corpo. Acordando, ela se sentou na travessa da cama.

-Você resolveu vir dormir em meu quarto, Ângelo? Eu vou para o de visitas. –disse ela, havendo se calçado. Não ouvindo a resposta, Darlene subiu na cama e se armou com o travesseiro. – Saia daqui, ou eu acabo com você. – ameaçou erguendo o travesseiro. – Nãooo. – tentou gritar, mas a garganta não pôde reproduzir o grito na intensidade desejada no momento que duas mãos congelantes abarcaram os lados do corpo dela à cima da cintura. Com cuidado o intruso à fez deitar-se na cama.

-Não grite. Precisamos conversar. – disse, porém com voz indistinguível para Darlene.

-Eu não sei o que você quer comigo.

-Falar do seu passado e de sua criança.

-Não, não, não. – a voz ia sumindo aos poucos. – Ângeloooo... – ela tentava gritar, mas não passou de um sussurro quase inaudível.

-Beba esse remedinho, e você ficarà pronta para mim essa noite. Vamos, beba e não grite, ou eu acabo com todos nessa casa. Principalmente com o Ângelo.

-Não, não o machuque... tà bom, eu bebo. – bebeu, e o desmaio à silenciou de vez.


O ressonar de Débora era ouvido pela estranha figura que deslizava as mãos nos longos cabelos dela e na pele macia de seu rosto descoberto. Ela acordou sentindo o afago e se livrou do cobertor que a cobria dos pés ao pescoço, na intenção de ceder maior parte de seu corpo para que fosse acariciado com tanta suavidade de toques.

-Que bom Ângelo, sentir você me fazendo assim. Deite-se comigo essa noite. – disse chegando um pouco mais para o canto da cama. – Pode se deitar, eu não vou tirar a minha roupa de dormir, dessa vez.

-Eu trouxe água pra você. Beba.

-O que houve com a sua voz? – pegando o copo no escuro e se sentando na cama, Débora perguntou.

-Minha garganta está inflamada.

-Se você quiser eu preparo um chá pra você.

-Primeiro eu quero que você sacie a minha sede de te amar essa noite

-Débora não perderia a chance. Bebeu a água e voltou à se deitar.

-Vem, embrulhe comigo. A gente faz bem quietinhos para não acordar as... – e dormiu.


Fátima dormia encolhida na posição fetal, mas sentiu quando o travesseiro foi tirado de entre suas pernas.

-Unh, é você, Ângelo? Vem, deite aqui comigo. – disse ela de olhos fechados e erguendo o braço para tocar e trazer para mais junto dela aquele que ela supunha ser Ângelo.

-Eu não vim para dormir com você. – falou com voz robotizada. -Vamos beber um vinho.

-Eu não bebo, mas posso beber com você.

-Depois de beber, eu quero passar a noite acordado com você.

-Não, Ângelo, eu não vou cair nessa sua conversa de novo...

-Beba logo.

-Quem, quem é você? Por favor, me deixe em paz... – calou–se ao ter uma mão tapando a boca dela.

-Eu só quero beber com você o nosso vinho favorito. Se você gritar eu te jogo álcool e boto fogo em você. – disse liberando a boca dela. -Ângelo, você está meio estranho, e....

-Beba, eu já disse.

Ela bebeu e desacordou.







                                                        O ensaio


Verônica estava toda animada com o ensaio que ela, Flávia e Michelle iam fazer ao lado dos amigos dela em sua casa. Flávia levou à amiga Michelle para ela participar do ensaio. Flávia foi quem deu a ideia de chamar a Michelle para participar do ensaio. Michelle também não conseguia esconder a alegria em fazer parte do grupo, ainda mais que ela estava sem namorado, e Verônica disse à ela que o Marcelo, loirinho gato como ela o chamava também estava sem namorada, aí talvez... Quem sabe pudesse dar certo de os dois começarem um romance.

-Michelle, eu tenho certeza que você vai gostar dele. Ele é o màximo!

-E se ele não gostar de negras, Verônica?

-Ele me falou que o sonho dele é se casar com uma negra. Não é Flávia?

-É. E ainda mais, sendo bonita igual à você Michelle.

-Que bom! E o Paulinho como é que ele é?

-O Paulinho é o ruivinho mais fofo que eu conheço. –respondeu Flavia fazendo charme.

-E o Ângelo?

-O Ângelo é moreno dos cabelos bem pretos, até brilha. Lisos nas laterais, ondulados em cima, jogados para o lado esquerdo. Mas eu não posso te dizer mais nada sobre ele.

-Por que não, Flavia?

-Por que o Ângelo jà tem dona. –Verônica respondeu.

-Pelo que vocês falam, eu jà estou louca pra conhecer esses seus amigos, principalmente o Marcelo e o Ângelo.

-Então segura a sua onda e nem dê bola para o Ângelo, pois se ele perceber que você está indecisa entre o Marcelo e ele, você vai rodar nos dois, o Ângelo sabe suas intenções, só de olhar em seus olhos. Sem contar que a Fernanda é louca pelo meu maninho lindo!

-Quem é o seu maninho, Verônica? Eu não tô entendo mais nada

-O Ângelo é o maninho dela que ela ama tanto.

-Mas vocês não são parentes, né Verônica?

-Ah Michelle, essa história só eu entendo. Mas quando você conhecer todos eles, você vai entender, principalmente se você passar a ser amiga do Ângelo.

-Ai gente, vocês falam tanto dele, que tà me deixando mais curiosa ainda.

-Mas quando você vir o Marcelo, com certeza vai se apaixonar por ele. –Verônica garantiu.  -Você viu o quanto o Ricardo é gato? Então, os dois são irmãos.

Depois de conversarem, elas deixam o quarto e foram para a sala, onde estavam Andreza e Ricardo vendo televisão.

-Então é hoje o grande dia. –Andreza disse.

-É. E eu não vejo a hora de começarmos esse ensaio.

-Gente, o Ângelo é mesmo um garoto surpreendente. Ele consegue contagiar a gente com suas ideias e vai envolvendo todos que estão perto dele. –Andreza confessou.

-Ele podia trabalhar com a gente no restaurante. –disse Ricardo.

-Você jà pensou em chamà-lo?

-É mesmo Flávia, afinal de contas, o restaurante é perto de onde ele trabalha.

-Flávia, você nos deu uma boa ideia. –disse Ricardo.

-Se vocês precisarem de mais uma funcionària, podem contar comigo.

-Taí... Ângelo e Michelle. Fechou o quadro de funcionàrios. –Andreza passou à régua.

Ângelo jà havia terminado de compor a sua música, por isso ele reuniria com os seus amigos na casa de Verônica para ensaiarem, por que ele havia combinado com o organizador de um evento que seria realizado na praça cívica, onde os artistas de rua teriam a oportunidade de apresentar seu talento no evento cultural que tinha o patrocínio do ministério da cultura, sendo assim, ele não ia perder a chance de subir no palco com o seu grupo musical e fazer com que o público ouvisse a canção que ele compôs com a intenção de que as pessoas abrissem os olhos para o problema que muitos fingiam não ver.

O trio de amigos chegou na hora marcada ao local do ensaio. Ângelo ganhou abraços de Ricardo, Andreza e demais presentes ali.

Então, esse é Ângelo que todos parecem gostar tanto assim dele. Michelle pensou assim ao dar a mão à ele no momento em que ela foi apresentada à ele.

-Ângelo, Paulinho, eu acho que acabo de me apaixonar. Olha só que mulata mais gata do mundo. –Marcelo disse aos dois.

-Essa é. Não sei porque não existe Miss Brasil negra. –Paulinho observou.

-É porque não descobriu ela ainda. –Ângelo ratificou. –Agora parem de cochichar e vamos ensaiar. Depois você chega junto nela Marcelo. Essa daí tà no papo.

-De quem?

-No seu, vacilão. –Paulinho respondeu dando uma tapa na cabeça dele.

-Ela só fica te olhando, e você ainda pergunta...

-Sei lá Ângelo!

-Cale a boca. Vamos ensaiar.

Eles falavam baixo um para o outro, mas todos, inclusive à gata cor de ébano percebeu que ela era o motivo dos cochichos deles.

-Verônica, você começa a musica com sua voz suave.Marcelo entrarà em seguida com um timbre um pouco mais forte.Flávia entra com uma quinta a cima do tom de C maior com sua voz aguda, não muito estridente.Paulinho trarà uma expressão melancólica com voz exclamativa e quase chorosa. Eu finalizo a estrofe usando voz firme e vivaz.Todos nós juntos com Ricardo, Andreza, Michelle cantaremos o refrão da canção. Vamos lá então. Verônica, você começa depois do arranjo, ok?

♫♫♫♫♫♫♫♫♪♪♪♪

-Um, dois e...

Verônica: Vê,vê aquele menino que vive na rua sem ter onde morar.

Marcelo: Vê que ele chora sozinho, sem mãe, sem carinho, sem pai, sem um lar.

Flávia: Vê que ele dorme me calçadas, sobrevive do nada que a rua lhe dà.

Paulinho: Chorando ele fecha os olhos e começa à sonhar...

Ângelo: Chorando ele fecha os olhos e começa à sonhar...

Arranjo: ♪♪♪♪

Refrão, todos juntos:

Com um mundo melhor,uma vida decente. E as pessoas não veem que depende da gente. E o que é pior em sua ilusão, é ver que está só, mendigando o pão. Com um mundo melhor, uma vida decente. E as pessoas não veem que depende da gente. E o que é pior em sua ilusão é ver que está só... –relentando: men... di...gan... do o pão.

♪♪♪♪♪

Palmas emocionadas.

-Ficou linda essa música Ângelo! –disse Andreza abraçando Ângelo.

-É isso aí Rodrigão,você tem talento garoto.

Ricardo também o abraçou satisfeito.Em seguida todos se abraçaram comemorando o trabalho em conjunto do grupo.Eles estavam radiantes pelo fato do ensaio ter sido tão bem sucedido. Sentaram-se no piso da garagem. Ricardo e Andreza Foram para dentro de casa para preparar algo para todos comerem.

-Então Ângelo, qual é a sua avaliação?

-Ficou legal Marcelo. Mas eu acho que ainda ficaria melhor se tivesse mais vozes para o refrão.

-Podemos chamar a Marluce, a Fernanda e o João Pedro. –Marcelo sugeriu.

-O João Pedro, com certeza vem no próximo. Quanto à Marluce, ela ainda está em observação na enfermaria do hospital, e, a Fernanda,eu não sei não viu pessoal.

-Eu posso convidar algumas gatinhas pra cantar com a gente. –Se ofereceu Paulinho se levantando.

-Senta aqui. Você não vai convidar gatinha nenhuma.

Todos riram da Flávia falando e puxando Paulinho, fazendo-o se sentar ao seu lado novamente.

-Desculpa gatinha!

-Ângelo por que você quer o carro do Paulinho emprestado, só pra você e o João Pedro saírem amanhã?

-Marcelo, só eles dois irão ao Centro.

-É isso aí Paulinho. Eu jà expliquei o que eu e João Pedro vamos fazer lá, e depois a gente vai comprar uns presentes.

Quando Ângelo falou em comprar presentes, as garotas ficaram curiosas.

Será que o João Pedro vai me dar um presente? –pensou Verônica.

O Ângelo vai comprar um presente pra Nandinha e a chamar pra namorar. –pensou Flavia.

Nossa! Esses caras são mesmo o màximo. Todos eles. O Ângelo então, nem se fala. Ele é tão legal. A Fernanda merece.  –pensou Michelle.

-Seguinte... Hoje nós ensaiamos apenas com violão, mas outro dia o Paulinho vai trazer o teclado. Aí o bicho vai pegar. –Ângelo falou riçando às cordas do violão.

-É isso aí... Iuhull. Com um mundo melhor, uma vida decente... ♪♪♪

Paulinho reiniciou, eles o seguiram entoando o refrão da música.

♫♫♫♫♫...

Naquele instante chegou Fernanda. Ela não queria reencontrar Ângelo por achar que ele teria mesmo tido um caso com Marluce em São Paulo.  Mas a pior de todas as suas dúvidas era: será que ele teria mesmo assassinado todas aquelas pessoas, incluindo Valdir, que estava desaparecido. Havia a possibilidade de Marluce ser levada à depor, por ela ter sido vista em companhia de Ângelo no bairro do Braz, e pelo fato de nas investigações preliminares sobre os assassinatos de Mathias, Paulo e Alceu, o delegado Valdir ter dado início às investigações elaborando o relatório, tendo Ângelo como o principal suspeito de ter cometido os homicídios. Eis outra pergunta que insistia em martelar na cabeça de Fernanda: Marluce teria se apaixonado por Ângelo e resolvera se livrar do empecilho Valdir? Afinal de contas, ela não o amava e toda vez que ela falava em Ângelo ela parecia estar interessada nele.

Fernanda mantinha-se fria e indiferente com Marluce por descobrir que ela não era sua mãe e, a distância entre as duas só crescia à cada vez que Marluce tentava alertà-la do cinismo e falsidade de Valdir fingindo querer registrà-la com o sobrenome dele. E, onde estaria Valdir? Ela perguntava a si mesma.

Por alguns motivos e razões, Fernanda recusava a aceitar que Marluce e Ângelo tivessem tido um caso amoroso. –Não, o Ângelo não teria coragem. Há tantas garotas que ele poderia namorar uma delas. A Marluce não é uma mulher qualquer. Ela apenas foi sempre mal amada, e isso prova que ela é mesmo uma mulher honesta. E não foi o Ângelo que a forçou para que ela não o entregasse à polícia, por talvez, ela tivesse descoberto que fora ele quem teria assassinado Valdir e todos os demais.

Parada próximo ao portão da casa de Verônica, Fernanda resignou antes de entrar e encontrar Ângelo e suas amigas e amigos conversando e cantando casa.

Ela respirou fundo e entrou.

-Boa noite, pessoal.

Boa noite. Todos responderam. Ângelo ficou pontilhando o violão sem querer olhá-la.

-Gente, deixe o Ângelo e a Fernanda aí conversando e vamos lá para o meu quarto. –Verônica convidou.

Eles entraram.

Fernanda ajeitou os cabelos e se sentou num banquinho sem encosto no qual Ângelo apoiava o braço.

-Como foi o ensaio de vocês?

-Foi legal, Fernanda. –respondeu meio sem jeito.

Ao vê-lo se levantar, Fernanda imaginou que ele estivesse fugindo dela e isso a fez se sentir péssima.

-E você como tem passado? –Ângelo perguntou se sentando no outro banquinho.

-Bem!... Estou estudando muito. As aulas vão recomeçar na semana que vem.

-É... Eu soube.

Os dois evitavam os olhares. Fernanda havia mentido ao dizer que estava passando bem, afinal, os dias e noites dela não tinham o mesmo sabor de antes. Os passeios que fizera com sua mãe não foram suficientes para fazê-la não pensar nele. Ela buscava nos estudos algo para distraí-la.

Ângelo aprendeu à conviver com a solidão, embora ele ainda não soubesse o que era solidão por estar sempre rodeado de amigos e amigas aonde quer que ele estivesse, e sempre antes de dormir ele estudava sobre os temas da vida nos manuscritos de seu Cândido, atualmente ele lia sobre o “O tesouro do rei”, escrito manualmente pelo seu velho amigo.

-Você está diferente Ângelo. O que foi?

-Deve ser o meu uniforme de trabalho.

Fernanda quis dizer que ele estava bem com o novo corte de cabelo. Mas resolveu não dizê-lo.

-Você quer me dizer alguma coisa Fernanda?

Ele sabe que eu quero. Ela pensou.

–Não Ângelo. -falou.

-Então me dê licença eu...

-Espere! –disse ela impedindo-o de levantar. –Como você tem passado os seus dias? –perguntou encarando-o.

-Vou levando um dia após o outro.

-Eu soube que você está namorando.

-Não Fernanda. Eu estou muito bem sozinho.

Ao ouvir a resposta, ela sentiu um calor tomar seu rosto.

-Eu também estou muito bem sozinha.

Ângelo à observou e notou que ele não precisava ser um expert em expressões física e facial para saber que ela mentiu.

-Antes só do que mal acompanhado. Não é Fernanda? –disse ele olhando no rosto dela.

-Eu não quis dizer isso Ângelo. Eu só queria que você soubesse que eu também estou levando a vida sem você.

-Que bom! Eu sempre quero que as pessoas com quem eu me envolva possam viver melhores comigo e até depois que tudo se acabe entre nós.

Mas eu não estou vivendo melhor sem você. Ela pensou.

-A vida ensina a gente à conviver com as perdas. –ela disse.

-Você acha que perdeu algo comigo Fernanda?

-Não sei. Eu só sei que foi bom o pouco que eu pensei em viver com você...

Ângelo evitava deixar que ela percebesse que ele notou os olhos dela brilhando e revelando que agora sim ela estava sendo sincera. Por um momento ele pensou em dizer que a queria, porém ele queria que tudo fosse de modo simples, sem choro, juras de amor ou pedidos de desculpas. Ele percebeu que ela o queria também, mas se fosse naquelas circunstâncias era provàvel que depois ela ficasse se sentindo fraca e arrependida por ter praticamente implorado à ele. Para ela, a maioria das pessoas se sente mal por ter dado o braço à torcer ao começar um romance.

Ele precisava ser categórico.

-Fernanda, eu tenho trabalhado muito ultimamente, fazendo alguns trabalhos extras... E pra ser sincero com você, quando eu terminar e ter conseguido tudo o que eu quero,eu pretendo me casar...

-Ai Ângelo! Tà bom! Eu entendo. – disse ela tristemente. –Eu preciso ir embora. -se levantou e tentou sair.

-Você continua à mesma. Nunca dà tempo à gente para concluir o que se está dizendo.

-Eu sei o que você quer dizer...

-Sabe mesmo? –perguntou se levantando. –Então me diz o que eu ia dizer. –desafiou-a bem próximo à ela.

Os dois se encararam frente à frente. O olhar dela se perdeu no olhar dele, deixando-a sem palavras. Ele tocou os cabelos dela e em seguida acariciou lhe o rosto com o dorso da mão. Por alguns segundos, Fernanda fechou os olhos e parecia sonhar. Ela queria abraçà-lo, mas Ângelo beijou suavemente seus lábios.

-Ângelo o que significa isso? –quis saber se despertando.

-Significa que eu nunca achei que tivéssemos terminado nosso namoro sem tê-lo começado. Ou você prefere que fique como estava?

-Não... Eu também nunca me vi longe de você, e você sabe disso.

-Sei Fernanda, e sei também que você é a garota que eu quero pra vida inteira. À propósito, você fez falta no ensaio. Você faz falta em minha vida...

Num ímpeto Fernanda o abraçou sem nada dizer. Ela sentia que palavras não seriam suficientes para externar tudo que sentia naquele momento. Ao senti-la apertando-o no abraço e ouvir o suspirar apaixonado dela sobre seu ombro, Ângelo sentiu que valeu todo suspense que ele fez para fazê-la entender que ela era, e sempre seria a garota que ele amava e amaria por toda à vida.

-Quando a gente se casar você promete que vai se vestir desse jeito.  -perguntou segurando as mãos dela.

Ela deu uma rápida olhada no seu vestido azul claro, bàsico e discreto.

-Não. Eu vou vestida de véu e grinalda. –respondeu balançando as mãos pra lá e pra cá, sorrindo e fazendo charme. –Eu te amo Ângelo. –confessou olhando nos olhos dele.

-Então não me prometa, mas procure entender os erros que cometi...

-Ângelo, o Valdir não era meu pai, e, ele não pode impedir o nosso namoro.

-Que bom, Fernanda! Que bom! –exclamou apertando-a em seus braços. –Você quer se casar comigo?

-Quero, quero , quero! –respondeu beijando-o três vezes.

-Então eu preciso de tempo para preparar tudo.

-Eu te dou o tempo que você precisar... Mas não demore!

-Venham todos pra dentro. Vamos comer. –Andreza anunciou. –Oi Nandinha, vem, entrem vocês dois. Isso vai dar casamento. –disse ela, ao ver Fernanda grudada à cintura do Ângelo.

-Vai dar mesmo, né meu amor?

-Se depender de mim, a gente se casa amanhã.

Eles entraram e viram que quase todos jà estavam comendo sanduíches e tomando refrigerantes. Menos Marcelo e a nova amiga que, conversavam frente à frente no balcãozinho da cozinha.

-Qual é o seu nome?

-Michelle. E o seu?

-Marcelo. Você vai fazer parte do nosso grupo?

-Eu gostaria muito. Vocês todos são namorados uns das outras?

-Eu não entendi a sua pergunta.

-Eu quero saber quem de vocês namora quem.

-O Ângelo namora à Fernanda, o Paulinho namora a Flávia.

-E você, namora quem?

-Ninguém. Eu sou muito tímido.

Marcelo mentiu passando a mão no balcão e olhando para a turma comendo. Paulinho chacoalhava os dedos para ele, como quem dizia chega junto.

-Você tà a fim de dar um passeio com a gente amanhã. Vamos, eu, você, o Paulinho, a Flavia, a Verônica e outro amigo da gente. Aí você aproveita pra conhecer ele e ver o quanto ele é engraçado e bacana. O nome dele é JP.

-Eu vou sim. Eu gosto muito de passear.

-Espera aí. –Marcelo se virou para a sala. –Ângelo que horas que você volta do Centro?

-Centro! O que você vai fazer no Centro Ângelo?

-Eu vou na loja para comprar um presente pra você Fernanda. –respondeu a ela. –Antes do almoço ô dedo duro do caramba. –disse ao Marcelo.

-Ih, foi mal! –coçou a cabeça e virou-se para Michelle. –O Ângelo e a Fernanda também vão com a gente.

-Legal! Vocês são tão amigos, não são?

-Nós somos irmãos. Pode perguntar ao Ricardo. Quer ver? Ricardo... O que eu, você, Paulinho e o Ângelo somos uns dos outros?

-Irmãos. –respondeu com a boca cheia.

-Tà bom, eu acredito viu! –disse ela desconfiada.

-Você sabia que nós temos um trato de namorarmos as amigas de nossas amigas,pra quando a gente se casar, morar na mesma casa?

-E você quer namorar que amiga delas?

-Você, é claro. Na hora que eu te vi, me apaixonei.

-Acredito. Vai ver que você diz isso à todas. –disse Michelle ajuntando as tranças dos cabelos e prendendo-as para tràs.

-Então quer dizer que você não quer namorar comigo?

-Amanhã eu te respondo.

Tà no papo. Pensou Marcelo.

–Seus dentes são lindos. –disse.

-Os seus também!

Paulinho estava de olho nos dois que conversam muito de perto.

-Pessoal, olhem lá os dois.

-Paulinho, deixe de ser curioso. –Ângelo o advertiu.

Enquanto Marcelo e Michelle conversavam sobre a ideia de eles namorarem, o papo na sala de Andreza girava em torno de casamento coletivo.

Provavelmente, eles casariam com as garotas. Fernanda e Ângelo eram certos que se casariam. Verônica confessou que teria coragem de se casar com JP, mesmo sabendo que ele era um tremendo aventureiro. Flávia concordou em se casar com Paulinho. E pra fazer valer o que Marcelo disse à Michelle, eles morariam todos na mesma casa.













*



Débora e Fátima gritavam uma com a outra pelo fato de as duas terem dormido além da conta e, por incrível que pudesse parecer, ambas estavam sem nenhuma disposição para os afazeres domésticos em uma casa estranha para elas. Nenhuma das duas podia dizer o que elas tinham feito ou deixado de fazer durante tanto tempo. Foram perguntar para Ângelo que estava no quarto dele arrumando as roupas de cama.

–Ângelo, foi você que nos trouxe pra essa casa? –Fátima quis saber.

–Eu acordei agora. –respondeu estendendo o lençol.

–Ai, meu Deus! –Débora clamou buscando coragem para perguntar. –Você dormiu comigo Ângelo?

–Não, sei lá... algo muito estranho aconteceu.

–Então foi a Fátima.

–Débora. Não à julgue precipitadamente.

–Mas só pode ter sido ela, Ângelo... foi essa daí mesmo.

Fátima não quis culpar à Débora. Sabia que seria difícil fazê-la entender que ela viveu a maior parte da vida dela enclausurada dentro de uma velha casa de atmosfera pesada, buscando alternativas para pôr fim a sua vida sem sentido, sem graça, tornando-se uma mulher qualquer entregue à bebidas, cigarros e à homens que satisfazia seus vícios, não seu desejo de ser amada, ou, simplesmente compreendida. E na obscuridade de suas ideias, ela quis até sair pelo mundo sem rumo certo. Mas quando ela se sentia no auge da insensatez, Ângelo apareceu mostrando à ela que viver valeria a pena.

–Foi ela sim. Olha só, a cara dessa loira...

–Débora, menos, menos. –Ângelo a fez calar a boca.

Nervosa, Débora abriu a porta do quarto e deparou com Darlene que escutou toda a conversa. De cabeça , Darlene passou pelos três, entrou no quarto sem nada dizer e se sentou na cama de Ângelo.

–Eu fui ao salão, como você pediu Ângelo. –disse ela meio sem jeito. -Me levantei mais cedo, com um dor de cabeça terrível, mas fui...

Os três à olhavam sem nada dizer, esperando que ela apresentasse uma explicação para os acontecimentos estranhos da noite anterior. Darlene era outra mulher, de cabelos escovados e maquiagem perfeita para o rosto dela. Débora estava à ponto de agarrà-la pelos braços e enxotà-la porta à fora. Fátima queria ouvir Darlene dizer que não teria sido ela, mas que, ela teria visto alguém entrando e saindo da casa, e também não seria ela, Fátima, que teria feito algo de errado com todos ali. Darlene também não poderia dizer nada sobre os últimos acontecimentos. Ângelo se sentou do lado de Darlene e anunciou que ele seria honesto com todas naquela hora. Ângelo se levantou e pediu para que as três companheiras se sentassem na cama para ouvir a confissão dele. Elas ficaram completamente estarrecidas por presumirem antecipadamente que elas tiveram suas privacidades e, talvez, suas intimidades violadas por aquele que estaria isento de qualquer suspeita?

–Eu sei que vocês devem estar imaginando que eu fiz algo desrespeitoso à vocês. Mas, eu não fiz. Vocês podem acreditar que eu não toquei em parte íntima alguma de nenhuma das três. Vocês não se lembram porque eu dei uma droga para vocês beberem. Eu a encontrei no... –ele ia dizer no quarto do bebê de Fátima. –Eu a encontrei em algum lugar em São Paulo. -Eu tinha que trazer vocês antes que alguém ferisse vocês.

–Mas por que você fez isso, Ângelo? –Fátima perguntou.

–Eu tenho os meus motivos.

–Só que você não devia agir assim com a gente. Se fosse um mau elemento eu o teria deixado fazer o que quisesse comigo sem eu saber com quem eu estaria fazendo.

–Fazendo o quê, Débora?. Eu hem! Você gosta dele e queria fazer aquilo com ele... Ângelo, eu a vi cheirando a sua camisa antes de lavá-la. Ela me falou que queria saber se você estava usando o perfume que ela te deu de presente, e disse que dormiria com você.  Eu não sei não. Isso é paixonite, e...

Ângelo riu de Darlene.

–Olha aqui. Não te interessa. E você? Aposto que se arreganhou toda pensando que ele queria...

–E daí se eu quisesse fazer com ele o que me viesse na telha? Eu sou solteira mesmo, e se eu soubesse que era ele, eu teria...

–Ah, Ângelo, agora você achou o que não procurava. –Fátima observou e se levantou.

–Débora e Fátima, nos deem licença. Eu preciso falar com a Darlene.

–Não, eu não vou deixar você ficar sozinho com ela. –Débora protestou irada.

–Estou indo, Ângelo. –Fátima avisou e saiu.

–Tudo bem. Eu, a Fátima e a Darlene, vamos morar em outra casa.

–Não Ângelo, eu... eu já vou deixar vocês à sós. Até mais para vocês dois.

Vendo Débora sair, Darlene não perderia a oportunidade de fazer uma pergunta indiscreta à Ângelo.

–Ângelo, você aprendeu a arte de conquistar as mulheres? Eu nunca vi alguém igual à você. Para seu governo, se é que você não sabe ainda...

–Você fala rápido demais. E a sua pergunta foi pura especulação sem sentido. Você conheceu sim, grandes sedutores de mulheres. Por exemplo, os homens que te conquistaram.

–Está enganado. Eu só tive um marido, e de namoricos eu corro léguas.

Ângelo começou a agitar as mãos à frente do corpo dele.

–Não, não o machuque... tà bom, eu bebo com você.

Darlene ficou séria e procurou entender a sutacação que ele fez. Prendeu melhor os cabelos, agora bem lisos e brilhosos, com uma liga e se pôs pronta à discutir a relação.

–Eu sei que a Débora e a Fátima são apaixonadas por você. E vou confessar que eu também me sinto atraída por você, mas disputas não são comigo. Se você quer ser meu namorado, terá que dizer às duas que a escolha foi sua. Eu nunca tentei roubar namorado ou marido de ninguém nessa minha vida. E, se você gosta de mim, então me assuma, senão... e você me pediu para cortar o meu cabelo e me pintar pra eu ficar parecida com a Sílvia Bandeira. Não sei pra que foi que eu fui cair na sua conversa e...

–Darlene, por favor, – pediu como quem unisse as mãos em uma prece. –A Débora me falou que você se parece com essa atriz de novela, e a Fátima acha você bonita.

–Eu também a conheço.

–Por isso eu pedi pra você se produzir um pouco. Você é uma mulher linda e não deve continuar se isolando do mundo. Mas, eu não quero falar de namoro.

Ela fez hum e ficou séria.

–Olha pra mim.

–Tà bom. Fala. –disse depois de passar as mãos no rosto, batendo os pés no piso.

Ângelo alinhou as sobrancelhas dela e com delicadeza deslizou as pontas dos dedos desde os lados do nariz às orelhas dela, para desfazer a expressão de contrariedade no rosto dela.

–Você ficou linda assim. –disse.

–Tà bom, mas fala logo. Eu tenho muita coisa pra fazer nessa casa tão grande. Se você moraria apenas com a Fátima, porque foi que você comprou uma casa tão grande assim? Vai, fala logo o que você quer me falar.

–Tà bom, Darlene. –ele riu de si mesmo.

–Tà me imitando, não é? –e riu também, sem querer.

–Agora me diz. Quando você foi dar a luz, aonde aconteceu o parto?

–Eu acordei numa sala.

–Tinha alguns objetos que você conseguiria se lembrar do formato de alguns deles?

–Nada. Estava vazia. Só tinha uma cama com colchão duro feito pedra. Daí a luz se apagou e alguém me deu um troço pra eu beber, e eu voltei à dormir. Acordei não sei que dia, com outras mulheres e um casal de pessoas mais velhas, mas, sem o meu neném.

–Você acha que eu poderia ser o seu filho?

–Não. As mães têm a intuição muito forte em se tratando de filhos. Se você fosse meu filho eu não sentiria atração física nenhuma por você. Pode rir de mim, mas quando eu conversei com você pela primeira vez na minha casa, dali por diante eu só pensava em namorar você. Mas agora eu sei que você não teria coragem de me...

–Darleneeee. –disse ele estendendo a última sílaba do nome dela. –Você acha que eu me pareço com o Augusto?

–Nem um pouco. Ele era mais branco, mais alto e de cabelos claros. Era bonito, mas você... não và ficar convencido, mas você é mais bonito do que ele. Eu só me lembro dele porque eu tive que prestar depoimento sobre a morte dele. Aí, eu vi algumas fotos dele. Ele tinha cara de cafajeste, canalha, sem vergonha...

–É tudo a mesma coisa, minha coisinha fofa, faladeira, amor meu. –Ângelo à deitou na cama e se deitou em cima dela. –Hoje não é o seu dia de cuidar dessa nova casa, para não ter que desfazer essa belezura que você ficou. –deu a ordem selando os lábios dela e a deixou livre em seguida. –Vou falar com a Débora.

–Tà bom. –consentiu soltando os cabelos.


Chegando ao quarto de Débora, ela estava ajoelhada no piso, com o dorso sobre a cama, elevando à Deus suas súplicas. Escorado ao portal da porta, Ângelo escutava o clamor fervoroso dela em prol de alguém.

Quando Débora finalizou a oração com o amém em nome de Jesus, ao abrir os olhos ela viu Ângelo e se levantou vagarosamente.

–Oi Ângelo. –disse com voz profundamente triste. –Eu estava aqui rogando à Deus em favor do delegado Valdir.

Ângelo foi até à ela e a abraçou.

–O que houve com ele?

–Você estava ouvindo a minha oração?

–Alguns trechos. –confirmou, naturalmente. –Só que eu acho que você não deve se martirizar por uma causa perdida.

Débora sentiu que seria mais uma dedução sensata de Ângelo, por razão de ele tê-la ouvido apresentar à Deus o relacionamento do delegado Valdir com a namorada. Ela ficou constrangida com a frieza dele em afirmar que era causa perdida. O desabraçou e foi juntando os cabelos.

–Às vezes você me assusta com sua frieza. O delegado me encontrou na igreja e me pediu pra eu orar para os dois.

Calado, Ângelo a acompanhou até a penteadeira. Ela se sentou na banqueta e se pôs à escovar os cabelos juntados em seu colo para não deixá-los esparramar pelo piso cerâmico. A escova corria vagarosa nos cabelos. Débora, absorta, a manuseava com o pensamento firmado na fé de que o amor do delegado pela mulher fosse correspondido em breve. Ângelo se aproximou dela, pelas costas, embrenhou as mãos entre os longos cabelos e massageava os ombros dela.

–Sabe, Débora, eu jà fui de um extremo ao outro de minhas emoções. Senti o calor ardente me envolver por inteiro ao sentir vontade de me deitar naquela cama com você toda linda, despida e se entregando inteira à mim. Confesso que eu tive que baixar o grau e nível de minhas emoções para não me queimar no desejo ardente de me tornar seu e ter você como minha mulher para todo o sempre.

Ela suspendeu os ombros prensando as mãos dele ao pescoço dela para que ele continuasse à falar sem deixar de tocá-la com tanta suavidade restauradora.

–Mas teve um momento que o medo de te perder me incendiou por dentro e por pouco não me levou à agir precipitadamente por não saber administrar bem as minhas emoções. –se pôs de joelhos aos pés dela e segurou as mãos dela. –Perdendo você eu sofreria e choraria amargamente. Tendo você eu me alegro de emoção e felicidade. Portanto, eu não me considero frio ou insensível. Simplesmente sei por quem eu devo sorrir ou chorar.

Débora se lançou de joelhos ao piso para se envolver nos braços dele.

–Eu não sei do que você está falando, mas prometo que você não irà me perder para ninguém. Eu quero só você, só você, e serei sempre sua, somente sua. –confessou emocionada e apertando o abraço como se ela quisesse que a alma dela se unisse à dele para sempre.

–Eu só preciso que você espere eu me acertar de um negócio. Então eu farei de você a mulher mais feliz do mundo. E, esqueça o Valdir. Deixe que ele siga sozinho em direção ao seu merecido destino.

Concordando, Débora se calou. Os braços dela enlaçaram o corpo dele.


Na sala, Ângelo comunicaria às três.

-Vocês três morarão aqui, enquanto resolvo algumas questões...

-Não, Ângelo, eu não fico sem você. –disse Débora, saltando do sofá, abraçando-o.

-Tudo bem. Eu fico aqui...

-Ai, meu Deus, eu não acostumo com a vida de fica e não fica, vai e volta. Ângelo, você tem que decidir se eu moro ou não moro com você, porque eu jà...

-Cale a boca, sua faladeira. Você nem devia ter vindo morar aqui com a gente.

-Olha aqui, Débora... ai, coitadinha, a Fátima já está...

-Fátima – disse Ângelo deixando as duas na sala para ir ter com ela que saía muito entristecida, da sala. –Espere, minha linda. –e a abraçou. - Eu prometi nunca te abandonar, por isso eu trouxe você.

-Está bem, Ângelo, eu, eu, acredito em você.

-Quer saber de uma coisa? Fátima, minha linda, me espere aqui. Débora, me espere na escola. Darlene, você vem comigo.


***


Parada em frente à loja de vestidos para noivas, Flávia olhava na vitrine o vestido que seria o sonho de toda moça que quisesse se casar. O longo branco, com véu arrastando ao chão acompanhado de grinalda um lindo arranjo, tudo bem branco como manda o figurino. Seu olhar sonhador parecia se perder no encanto do que seus olhos vislumbram. Ela cresceu com o sonho de um ia se casar numa igreja toda enfeitada, cheia de convidados admirados pela sua atitude de se casar virgem, fator este que valorizava a moral de qualquer garota.

O enorme bolo que seria servido aos convidados. Também a pilha de presentes que ela ganharia, no caso, se ela houvesse sido mais popular com as pessoas. – Nisso ela preferia não pensar.

-Nossa que vestido lindo! –exclamou ao ver um todo azul. –Eu acho que ele cairia bem em mim.

-Com certeza este vestido vai ficar muito bem em você moça. –disse Darlene. Ela também procurava um vestido na loja.

-Ãh, oi! Eu acho que vou ficar com ele.

Flávia escolheu o vestido considerando o gosto de seu namorado Paulinho pela cor azul. Outro motivo foi o fato do vestido não ter decotes extravagantes. Depois da noite que ela tentou provocá-lo, vestindo algo mais ousado e, depois de tudo que ouviu dele, ela descobriu que seu futuro esposo não era nada feticheiro, assim sendo, ela continuaria vestindo-se comportadamente, mas também não queria perder a chance de ouvi-lo dizendo que ela estava linda de vestidinho bàsico.

-Você tem muito bom gosto. É pra uma ocasião especial?

-Sim. Muito especial. –disse Ângelo abraçando as duas por sobre os ombros dela. –Ela vai se casar e precisa de um vestido como este e de uma mãe para entregá-la ao noivo no altar. Então eu pensei em presenteá-la com o vestido, e convidar à você para dà-la em casamento ao meu amigo Paulinho ruivinho.

Não daria para narrar tudo que Darlene destampou à dizer em meio à pranto e muito agradecimento à Ângelo, ao mesmo tempo em que Flávia chorando só conseguia dizer: mamãe, mamãe, você é minha mãe. E, ambas se desmanchavam em lágrimas de felicidades.



                                                                                 ***


O último ensaio musical não passaria de uma rápida explicação dada por Ângelo à seus alunos, sobre as fermatas. Não havia necessidade de explicações teóricas, pois, em sua melodia não constavam tal sinal. Portanto, ele os fez saber que o sinal significava expressões dos sentimentos dos seres humanos diante daquilo que os surpreendem e os fazem reagirem externando duas formas de surpresas que são reveladas, uma por som monossilábico, se expressado por voz: Ah.  E outra, normalmente sentida, mas raramente externada com voz: Oh. Mas, se música é a arte de expressar sentimentos, os instrumentos transmitem-nos através do som. Por isso usamos Ah e Oh em forma de expressões sonoras.

-Aí, bate a real. Como assim, maninho? – quis saber melhor, a heavy-metal Verônica, que apesar de ter um linguajar cheio de gírias urbanas, tinha a voz em tom de lá bemol maior, suave, meigo.

-Verônica, digamos que eu tenho uma surpresa para você. –pegou algo de dentro da capa do violão e foi ao encontro dela no canto da sala. –Isto que está em minha mão é um presente que eu vou dar à você.

-O que é?

-Eu jà disse, é surpresa. Você quer?

Todos os outros ficaram de pé, curiosos para saberem do que se tratava.

-Quero. Abra a mão. –disse a mocinha que jà tinha certa afinidade com o amigo compositor.

Ângelo abriu de imediato.

-Ah, um toco de giz. Quero não.

-E se eu disser que você tem a voz mais musical que eu jà tive a oportunidade ouvir?

Verônica congelou-se e internalizou o que ela sentiu no momento. Porém, os demais colegas de classe deixaram escapar sonoramente a expressão de agradàvel surpresa.

“Ohhhhhh” foi o que se ouviu unissonamente dentro da sala de aula.

-Ok, agora vocês entenderam. –disse Ângelo voltando para o lado de Débora que esperava ansiosa pela surpresa que seria apresentada à mocinha Verônica.

-E como saber se é Ah ou Oh a expressão, Ângelo? –Marcelo quis saber.

-Na posição do arco da fermata. Quando você diz Ah externando contrariedade, você exprime; fermata com arco para cima. Quando diz Oh expressando satisfação, você reprime; fermata com arco para baixo...

-Ângelo, eu toco tuba. Mas quando a fermata na nota é muito grave eu não consigo executà-la. –confessou Paulinho coçando a cabeça.

-Daí você pensa que é mà embocadura?

-Não seria?

-Não. É apenas um erro de execução, porque você tenta reprimir o som em todas as fermatas, aí o som sai pipocado. Muitos músicos cortam o som para que não se perceba que ele não consegue estendê-lo com precisão. Porém, basta conhecer as posições das fermatas para executà-las com perfeição. Nas notas mais graves as fermatas estarão com arco para cima, ou seja, AhhhH. Começa com a intensidade normal, vai baixando até o meio e subindo gradativamente para terminar forte... o sino jà vai tocar, mas, vocês entenderam que a execução de uma é ao contràrio da outra. E, Junho chegou... o tempo de férias preludiou. Boas férias para todos nós.

“AhhhH” –exprimiram juntos.

Aos poucos eles foram saindo.

-Vai Ângelo, mostre à ela o que o senhor Cândido te mandou mostrar. –Débora incitou inocentemente.

Verônica curiosa olhava para as mãos de Ângelo, para não ser surpreendida novamente por um pedaço de giz.

-Ela jà está vendo. Alguém tão linda assim não passa despercebida nem por uma garota cega.

O suspense deixou as duas suando frio.

-Bom. –disse ele. - Eu tenho aqui em meu bolso um registro natalício. E nele consta que, Verônica Elis Meneses é filha de Débora Albuquerque Meneses.

As palavras mãe e filha foram entoadas simultaneamente, seguidas de abraços, afagos nos rostos, beijos nas faces, lágrimas nos olhos.



***


Acompanhado por alguém muito especial, Ângelo chegou à casa dele e ao entrar sozinho, sentiu a atmosfera diferente. Fátima não foi recebê-lo na porta como de costume. Ao se dirigir para o quarto, ele ouviu um choro e soluços sussurrados.

–Fátima, eu trouxe um presente para você.

-Outro?

-Está lá do outro lado da porta. Và ver o que é.

Ela foi às pressas. Ao abrir a porta, se surpreendeu ao ver uma moça linda com um buquê de flores brancas em suas mãos. Seus olhos castanhos claros estavam vermelhos por causa do pranto, mas sua expressão era de alegria sem fim.

-Eu às trouxe pra você, mamãe. –disse Fernanda, com lágrimas nos olhos.

-Minha filha... –e chorando a abraçou de modo à fazer as rosas sofrerem a pressão do abraço que às esmagou entre dois corpos, de uma mãe que fora impedido de viver com a filha que ela perdera à dezessete anos atrás. E de uma moça outrora infeliz por não ter tido o carinho, os cuidados e o amor de sua verdadeira mãe.

Ângelo sorria em silêncio vendo mãe e filha abraçadas.

Os seguros de vida Classe A, que Ângelo era o mantenedor, eram de Norato, Alceu e Paulo. As beneficiárias eram Fátima, Débora e Darlene. As apólices de Valquíria, Amaro Galdino e Valdir Augusto foram pagas às mocinhas Flávia, Verônica e Fernanda. A estipuladora dos seguros pertencia ao próprio Amaro Galdino. Todo o dinheiro sujo acumulado por ele foi transferido para as contas bancárias das beneficiadas.

Ângelo casou-se com Fernanda, e seus três melhores amigos, Marcelo, Paulinho e João Pedro casaram com as três garotas e formaram uma grande e harmoniosa família feliz.


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