segunda-feira, 26 de setembro de 2022

O FINDAR DAS ILUSÕES; Leitura pra você se emocionar, sorrir e chorar.

 


                   O FINDAR DAS ILUSÕES


















 Pai, meu melhor amigo. Sei que, o único. 1930 * 1981

Mãe, minha melhor amiga. Sei que, a única. 1942 * 2013.















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Um velho homem estava parado ao centro de uma encruzilhada quando um jovem o abordou e o interrogou: – Á qual desses caminhos eu devo seguir? Então o homem respondeu: – O caminho que escolheres, siga nele sem querer voltar para trás. Mas se tiver que regressar, volte. O jovem lhe fez outra pergunta: – O que o senhor encontrou em um desses caminhos, que o fez voltar?  –Obstáculos. – disse o velho. –Encucado o jovem novamente o perguntou: – Por qual deles o senhor seguiu?  –Por todos. –respondeu o ancião estradeiro. –E por que o senhor agora se põe parado justamente na encruzilhada dos caminhos?–– Fechando os olhos já embaçados pela poeira do tempo, o velho respondeu: – Para reparar os erros que eu cometi. Mas, eu sinto que não terei mais o tempo necessário.

Quando nós chegamos á um determinado ponto em nossas vidas, olhamos para trás e vemos o passado em preto e branco, mesmo que as cores estejam lá. –sim, elas estão lá. Mas os nossos olhos embaçados pela poeira da estrada, faz com que tudo pareça um filme em preto e branco. Então, só entendemos que se tivéssemos sido de outra forma, agido de outra maneira, as nossas escolhas poderiam ter sido melhores ou piores, mas, até descobrirmos, as teremos vivido intensamente. Concluímos então, que nossas escolhas, por mais que elas tenham sido boas ou ruins, no presente, no hoje, no agora, tudo que vivemos valeu a pena. 

Todo ser humano em si, em qualquer fase de sua vida, sendo ela breve, mediana ou longa, traz em sua cronologia, conteúdo suficiente para escrever centenas e até milhares de livros com um número expressivo de páginas. Portanto, seria impossível transpor em folhas de papel ou em arquivos de computadores todos os mínimos detalhes de uma trajetória de vida de um ser humano. A partir dessa verdade irrefutável, eu João Batista Ribeiro Oliveira me limitarei apenas em contar de forma escrita alguns fragmentos de minha história.

Devido á minha racional certeza juntamente com o meu senso prático, eu acredito que não faria sentido levar ao conhecimento dos que leem sobre mim, detalhes irrelevante da minha vida desde o meu nascimento á idade á qual hoje tenho. Porém, trarei á tona alguns acontecimentos vivenciados por mim desde a minha tenra idade, em forma de referências anteriores para respaldo dos meus dias atuais.

O objetivo destes relatos, não é levar ao leitor á ter pontos de vistas á favor ou contra á minha pessoa, o meu caráter, a minha personalidade, ou das ideias que eu defendo. No entanto, há de ser que, em alguns trechos existam similaridades de fatos, atitudes e concepções entre mim e o leitor.


O que vivi foi intenso, de acordo o meu modo de ver, ouvir, entender e agir. E com os meus erros e acertos eu vivi intensamente a minha infância, adolescência e juventude do modo que eu compreendia os meus medos, coragem, insegurança e confiança, verdades e ilusões.


A história que se segue trata-se de uma história real, com a narrativa em primeira pessoa, sendo eu o próprio personagem central. Todos os fatos aqui expostos são verídicos e possíveis de comprovações.






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                           O nascimento


Campinorte. Goiás.


Numa quarta feira, exatamente ás 1: 40 da madrugada do dia 13 de setembro de 1972, sobre uma cama de madeira rústica e colchão de capim, Pedro Simeão Ribeiro, procedia com o trabalho de parto de dona Francisca Cardoso Ribeiro, com perícia ginecológica e obstetrícia adquirida sem estudos de tais ciências médicas, e sim por razão de que na década de 70 a maioria das mulheres dava á luz em suas casas, tendo a assistência de uma vizinha parteira, ou o próprio marido.     

   Nessa oitava façanha bem sucedida de um médico autodidata e uma parturiente extremamente corajosa, nasceu João Batista Ribeiro Oliveira, o oitavo filho de um casal que ainda traria ao mundo mais quatro rebentos.

Antes de eu nascer, uma irmãzinha minha havia morrido no seu sétimo dia de vida. Maria Madalena era o nome dela. Não me lembro de tê-la visto nem ao menos em fotografia, mas Aos meus cinco ou seis anos de idade, eu recordo bem de ouvir parentes meus dizendo que ela era uma menininha muito linda. Em relação á beleza dela e sua morte prematura, supersticiosos da época diziam que a pobrezinha fora vítima de “maloiado” – á mais de quarenta anos atrás, era assim que se dizia de um olhar capaz de ceifar a vida de um ser angelical.

Avançarei até o ano 1978, pois eu acho que antes dos meus seis anos de idade eu não teria nada de muito interessante á escrever, fora o fato de eu ter perdido mais dois irmãozinhos e uma irmãzinha, todos mais novos do que eu num curto período de apenas um ano á um e meio. Rubens abaixo de mim, um ou dois anos e Marta abaixo dele um ano.  –com estes eu brinquei e ao perdê-los, chorei.

Levi, o último irmão meu á morrer, sua vida foi tão curta quanto a escrita do nome dele que nem chegou á ser registrado. Acreditem, eu ouvi o choro dele ao nascer, e escutei o grito de minha mãe dizendo ao meu pai horas depois: –Pedro, acode aqui. O meu “fie” morreu. O meu pai saiu de algum cômodo da casa com uma lamparina na mão, eu o acompanhei indo em direção ao quarto, então, lá estava o meu irmãozinho Levi nos braços de minha mãe, desfalecido, imóvel. –calma Chiquinha, ele não morreu. –disse meu pai á minha mãe chorosa. –João Batista, volta pra sua cama. –ordenou á mim.

Talvez o meu pai tivesse dito a verdade, e Levi ainda não estivesse morto. Eu não pude ter a certeza, pois o meu pai me mandou voltar para a cama naquela hora da noite, e ordens de um pai, tinham de serem cumpridas imediatamente naqueles tempos. Mas infelizmente, no dia seguinte, a vizinhança estava novamente na sala de nossa humilde casa assistindo á mais um funeral.

Nos anos 70, crianças morriam vítimas de sarampo, coqueluche, caxumba, rubéola, e até por “sapinha na língua” por falta de assistência médica negligenciada aos pobres, era comum á uma criança nascer, sem a mãe ter se submetido á acompanhamento de profissionais da área médica hospitalar e domiciliar. O processo de pré-natal era algo desconhecido pela maioria das gestantes, ou por todas da classe pobre. Tamanha era a carência de cuidados médicos nos referentes anos em que os meus irmãos morreram, que eu devo dizer que se fossem nos dias atuais, nenhum deles teria morrido.

A morte extremamente pré–matura de Maria Madalena aos sete dias de vida, foi considerada como causas-mortes a doença do sétimo dia. A culpa ficou nas pessoas que a achavam bela como um anjo.

Rubens sofria de uma infecção no ouvido, e aquilo o levou á óbito aos quatro anos de idade. Eu acredito que Rubinho, – como ele era chamado, – necessitava apenas de uma drenagem no aparelho auricular. Mas naquele tempo, pobre se virava com azeitinho, mastruz, e outros remedinhos fitoterápicos.

Marta morreu com três anos de idade, por razões de uma febre muito alta. Os desinformados daquela época achavam que febre era um sintoma oriundo de uma infecção na garganta ou de uma machucadura visível. Marta não apresentava nenhum sintoma dessa categoria. Porém, com certeza, em um exame médico feito atualmente, se constataria que ela havia contraído algum tipo de agente infeccioso patógeno causador da morte dela.

Levi, pobrezinho, talvez tenha morrido por alguma deficiência interorgânica no período da gestação, ou por insalubridade no ato do parto.

A religiosidade das pessoas era o que falava mais alto, particularmente no seio de minha família, portanto, a desculpa era: – eles morreram porque Deus quis.

Consideremos também o grau de pobreza e da situação precária da grande família Ribeiro. Tempos difíceis aqueles, quando o país vivia sob o regime militar, sob o comando de Garrastazul Médici.

Recordo-me de ouvir um carro de propaganda anunciando num alto-falante as seguintes siglas partidárias: MDB e ARENA. Ás vezes, um monomotor sobrevoava em altura mediana com enormes faixas de propagandas políticas ou comercial. 

Bons tempos aqueles, que, quando eu via um avião, eu deixava tudo, até o prato de comida em qualquer lugar e saía correndo para ver o avião. Eu sonhava em voar, mas, a situação de pobreza extrema da família Ribeiro não nos deixava nem ao menos decolar como o14 Bis.



                                                                        A mudança

                                                                       

Em 1978, a já reduzida família Ribeiro empreendeu mudança para a grande Goiânia. Então éramos nove membros, compostos por sete filhos, sendo duas mulheres e cinco homens, meu pai e minha mãe.

Um caminhão trazia os nossos poucos móveis. Em que condução e condições os meus irmãos, irmãs e minha mãe vieram eu não saberia precisamente dizer, mas posteriormente eu soube que a minha mãe veio com as minhas duas irmãs em outro veículo. Sistematicamente era assim que funcionavam as coisas referentes á cuidados com os filhos. Meninas acompanhavam as mães, meninos recebiam o monitoramento dos pais. Dentro de um Fusca não caberia sete pessoas, incluindo o motorista, e sendo assim, confortavelmente, Joãozinho e Rildo viajavam no banco traseiro do “Vôquis” 1300, ano 76 enquanto Pedro Simeão do lado do prudente motorista Peixoto riscava o asfalto da BR 153, á 70 quilômetros por horas em direção á capital Goiânia.

A conversa dos dois homens sérios discorria sobre assuntos os quais, eu com meus seis anos de idade e meu irmão Rildo com oito, não saberíamos assimilar bem, por seguir uma regra imposta por meu pai: – criança não deve ficar ouvindo a conversa dos mais velhos. Te atipa menino. –Convenhamos estávamos nos anos 70, e, os pais daquela época falavam com os olhos, os filhos obedeciam ou sentiam o nada carinhoso cinto de couro acariciar seus lombos, ou se preferir e sem preferir, dariam a mão á palmatória. A palmatória... Ôh madeirinha redondinha com um furinho no meio pra doer, pensa!

No banco de trás, eu e meu irmão Rildo falávamos sobre a realização de nosso sonho de morar na capital. Em nosso imaginário tudo seria diferente e as mudanças seriam para melhor. Eu me lembro como se fosse hoje, quando eu, com toda expetativa positiva de que teríamos uma vida próspera na cidade grande, sugeri ao meu irmão que á partir do dia seguinte nós chamaríamos o nosso pai de papai. Foi quando Rildo entusiasmado emendou: – e a nossa mãe de mamãe.

–É isso aí! –concordei sapateando no assoalho do fuscão creme.


308 quilômetros percorridos, Goiânia despontou esplendorosa aos nossos olhos sonhadores.

–Nois vai morar nessa cidade cheia de carro e casa? – com o rosto colado ao vidro do automóvel, eu perguntei á meu pai.

–É mais adiante. – respondeu apontando a reta da BR.


Vila Brasília. Avenida São Paulo. Quadra 06. Lote 07.

Já estava escurecendo quando o Caminhão “fenemê” chegou com a mudança. Não era bem o castelo que eu fantasiei em meu maravilhoso mundo de sonhos, mas se comparando á uma casa de adobe de barro vermelho, produzido á mãos e queimados pelo calor do sol numa minúscula cidade interiorana, aquele barracão gigante de madeira, coberto com telha de amianto, localizado á mais ou menos mil metros da capital, podia por mim, ser chamado de “o palácio real da nobreza Ribeiro” Seria ali a nossa nova morada. Eu já havia dado uma sondada nas acomodações, afinal de contas, fomos os primeiros á chegar quando ainda o sol se aproximava de dar o ar de sua graça aos orientais. O barraco era de tábua bem aplainada e tinha lá seu charme. Sala, cozinha e dois quartos. Eu não podia dar como certo, qual dos cômodos era a cozinha, pois o que diferencia um cômodo do outro são os acessórios peculiares á tais ambiente. E, para eu ser sincero, todos eles estavam vazios. Por dedução, eu arrisquei que o segundo cômodo da direita para a esquerda, que não possuía sequer uma pia para se lavar vasilha, era a cozinha. 

Do lado de dentro de cada cômodo, dava para se contemplar o céu estrelado e a lua exuberante ao chegar à noite. Todo esse vislumbre noturno era possível de se ter por causa da posição das tábuas de trinta centímetros de largura apregoadas no sentido vertical permitindo que sobrassem frestas de um centímetro de distância entre uma e outra tábua. Quatro janelas e uma porta apenas propiciavam melhores anglos de visão para uma vista panorâmica de um matagal na lateral esquerda do terreno, com nossa nova casa ecológica e suspensa á sessenta centímetros do chão, sustentada por estacas de vigotas de Angelim vermelho. Do outro lado da avenida, era possível pressentir que naquele mato tinha coelhos, raposas e onças.

Percorri pelo quintal e me deparei com uma cisterna quase ao centro do terreiro. A descoberta me revelava que em se tratando de abastecimento de água potável, a engenhoca para a retirada do H2O não diferenciava nenhum pouco da que ficara á 320 quilômetros de distância no norte de Goiás. Eu sabia que em algum ponto ás margens da circunferência daquele poço, o meu pai fincaria ali uma estaca e a ornaria com uma carretilha para que a corda deslizasse sobre ela com um balde pendurado na ponta. Bom, neste aspecto nada mudou. Talvez fosse por eu já ter me familiarizado com sons agudos emitidos por carretilhas e rangeres de cordas esticadas ao máximo, que bem cedo eu aprendi a diagramação das notas do violino.

Tratei logo de me esconder para não ter que ajudar na empreitada de carregar os nossos, digamos, utensílios domésticos. Debaixo de um pé de amoras havia um tanque de cimento com uma bacia e um batedor. O meu esconderijo estava bem acessível. Eu teria que me tornar invisível á todos, exclusivamente, do meu irmão Rildo. Ele era fera em esconde-esconde. 

Subi no tanque e trepei no pé de amoras. Lá de cima eu via um formigueiro humano carregando os “trêm” para dentro do palacete. Eu não poderia chamar de mobília os objetos que desciam daquele caminhão sucatão. Não tínhamos armário, guarda roupa e nem sofás. Era tudo tão tosco e grosseiro. Bancos, tamboretes, prateleiras, camas, mesa... tudo em madeira talhada á “inchó” O meu pai era um grande artesão.

Eu não sabia de onde apareceu tanta gente, mas eu tinha certeza de que a maioria daquelas pessoas não saiu da barriga da minha mãe e nem que havia sido o meu pai que deu a primeira tapinha em suas bundas quando eles nasceram. Aquilo foi o primeiro sinal de que a família Ribeiro estava sendo bem-vinda á vizinhança.

Continuei nas “grimpas” da amoreira. Quando desci, a mudança já estava concluída. Os meus dentes estavam da cor de vinho tinto. As amoras eram docinhas.

Naquela hora eu procurei o banheiro, e o encontrei próximo á um abacateiro, á uns dezoito metros distante da casa, no lado esquerdo do quintal. Era uma privada feita de adobe também. Francamente, o habitat natural dos Ribeiro teria sempre que contar com muita madeira, e terra manufaturada.

A Avenida São Paulo, apesar de ser a principal avenida do bairro, apresentava corrosões e fiçuras capazes de me engolir. Eu estava morando na quadra 06. Lote 07. Quatro quadras abaixo, as crateras tinham espaços suficientes para engolirem o caminhão que trouxe a mudança.


                                                                                 *


O tempo foi passando normalmente, e em cada dia superado, uma nova surpresa. Rildo acompanhava o nosso pai em suas andanças pela capital á procura de cadeiras de fios para reformar, e também para vender bonés de couro feitos por ele mesmo. Assim ele conseguia obter o nosso sustento. Meus irmãos mais velhos começaram á trabalhar em obras. As minhas irmãs Airta e Ana Rita faziam faxinas nas casas de pessoas abonadas. Minha mãe cuidava como podia dos afazeres domésticos. O estado emocional dela estava severamente abalado por ela ter perdido quatro filhos em tão pouco tempo.

Eu ficava em casa, por enquanto.

O quintal era o meu mundo. O matagal do lado era a extensão do meu universo. Bem cedo descobri o artista musical, por natureza, que eu era, e fiz a minha primeira violinha de quatro cordas, um berimbau e uma flautinha de canudos de mamonas. Surgiria então um infante-multi-instrumentista, não fosse a decisão que eu tomei de transformar o berimbau em arco de flecha, as cordas da viola em amarras de arapuca, e a flautinha em canudinho para bolhas de sabão. Tudo isso em apenas uma semana na luxuosa nova residência. A floresta amazônica do lado do meu quintal me inspirava á brincar de índio e manejar bem o meu arco e flecha, tendo como alvos inúmeros anús, tizius e galinhos-do-campo.  E, de vez em quando codornas e inhambus eram trancafiados em minha arapuca para logo mais virarem saborosos petiscos. Bocas para devorá-las eram o que não faltariam.

As minhas manhãs eram cheias de tarefas a serem cumpridas. A primeira delas era lavar o rosto meio que mais ou menos, para em seguida pegar um pequeno tablete de margarina e passar uma quantia exagerada dela em um pedaço de pão. Eu não perdia tempo pondo café na caneca, despejava da garrafa para o miolo do pão. O pão ficava uma delícia e bem fácil de ser engolido sem a necessidade de ser mastigado. Depois de limpar a boca usando o antebraço, eu estava pronto para a recreação.

Havia no enorme terreiro, alguns pontos á serem explorados por mim. O tanque de cimento que ficava debaixo do pé de amora, eu não devia escalá-lo mais, porque devido á multifuncionalidade dele eu não esperei levar umas lapadas de cinto do meu pai, pra saber que em lugar que se lava roupa, vasilhas, e se higieniza bucalmente, não seria conveniente que um moleque colocasse os pés dentro dele ou sobre suas bordas. Mas, eu tinha outra opção para me sentir no topo do mundo: o pé de abacate.

Lá estava ele com dois troncos anexados um ao outro, rente ao muro lateral que separava o nosso lote e o do vizinho do lado. Chegar ao galho mais alto foi tão fácil quanto planejar o que eu iria fazer com as folhas que eu traria presas ao meu calçãozinho quando eu descesse do abacateiro. Bem, a minha ideia era colher as folhas mais novas e transformá-las em dinheiro para as apostas que eu faria contra mim mesmo. Eu me desafiava para uma competição, e a que eu tinha em mente era: vamos ver quem acerta quanto é dois mais dois, cinco mais cinco. Eu tinha apenas seis anos de idade, e já bancava ser o matemático. Por incrível que pareça, nessa idade eu já sabia fazer contas de cabeça. Na noite anterior, uma vizinha veio nos visitar. Minha mãe e dona Rita, – era esse o nome daquela senhora bem vestida e de cabelos lisos, castanhos e, muito bem tratado, – conversavam próximas á cisterna, enquanto minha mãe puxava um balde d’água. Eu estava por ali ao redor, quando escutei minha mãe dizendo que ao todo, ela havia perdido o quarto filho, e agora éramos sete apena. Eu achei meio esquisito aquele negócio de “quarto filho”, pois, o último á morrer fora Levi, e, o nome dele não era “quarto”. E, nenhum dos que estavam vivos se chamava sete apenas. Então eu atalhei o assunto.

–Mãe, foi o Levi, não o quarto. E os nomes dos meus irmãos é Deir, Airta, Oripe, Ana, Ismael e Rildo.

Dona Rita e minha mãe riram.

–João Batista, o Levi foi o quarto puiquê primeiro morreu a Maria Madalena, depois o Rúbim, depois a Marta e depois o Levi.

–Ah, intindi. Um, dois, três, quatro...

–É menininho esperto. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11. Menos 4=7. –disse dona Rita.

Voltei á correr pelo quintal, mas não deixei de pensar nos números.

Durante o dia eu fiquei encabulado com a informação obtida por eu ter ouvido a conversa da minha mãe e a vizinha. Eu trouxe de volta á vida todos os meus irmãos que havia morrido somente para desenvolver uma estratégia de somatória. Tanto fiquei encafifado, que, antes de dormir eu desafiei o meu irmão Rildo para um duelo aritmético. Ele abriu fora dizendo que estava com sono. Parti para o outro lado da cama e lancei o desafio ao meu irmão Ismael. Ele tinha dez anos. Ao que ele respondeu: – amanhã nois brinca. Vai duimi. 

Diante das recusas, eu parti para o auto-desafio. Foi aí que eu fui apresentado ao meu amigo oculto. E olha que esse meu amigo me acompanharia para sempre. Não era nada sobrenatural ou mística a nossa sintonia, mas acreditem, através de nossos diálogos íntimos, eu fui desenvolvendo o meu intelecto para aprender á ler, escrever e lidar com algumas operações numéricas.

Desci do pé de abacate, “buíado” de folhinhas de um cruzeiro e me sentei debaixo do pé de amora.

Eis a disputa:

 – Joãozim, conto é três mais três?

–Espera aí... eu tem três cruzeiro.–passei três folhinhas para o meu lado direito.  –Agora me dá mais três... pronto. Três mais um, quatro. Mais um, cinco, mais um, seis. Seis.

–Acertou. –Agora é a minha vez. –Joãozim... Joãozim não. Ocê é o Mim, só Mim. 

–Tá bão. Intão vai. 

–Mim, conto é quatro mais quatro?

–Xeu vê... eu tem quatro cruzeiro... mais quatro... oito. –dessa vez eu nem separei as folhinhas. O meu amigo interno me superou. Mas eu não me dei por vencido. 

Parei para pensar um pouco e aumentei o valor da aposta e o número de folhas.

–Um, dois, três, quatro, cinco, seis. –passei para o lado esquerdo. –Um, dois, três, quatro, cinco. –para o lado direito. –Pronto. Conto é seis mais cinco, Mim?

Mim pensou um pouco e chegou á conclusão de que ele e nem eu, não sabia qual era o número depois de dez. levantei-me e recorri á dona Francisca. –mãe, qual é o número depois de dez? –gritei.

–Onze, meu fie. Puiquê?–ela gritou da cozinha.

–Nada não. Deus abençoa a sinhora. –agradeci á ela e dei o resultado da soma á Mim. –Onze. Ganhei. Iuhull.

Com seis anos de idade, eu nunca havia entrado em uma sala de aula, e também não tinha acesso á dinheiro e ninguém que me ensinasse alguma coisa do meio estudantil. Meus irmãos e irmãs á muito já haviam parado com os estudos.

Até ao final dos anos 70 era bem fácil distinguir a classe social de uma pessoa através do nível educacional dela. Estatisticamente falando, as famílias no nível de pobreza extrema como a nossa, eram indubitavelmente classificadas como á não alfabetizadas, pois naquela época, pobres honestos tinham apenas um meio de sobrevivência, trabalhar braçalmente. Sonhos profissionais eram para os da classe média, ou ricos. 

É lógico que existia um baixo percentual de estudantes pobres na rede pública de ensino, mas com certeza, esses tais não dormiam amontoados em uma cama, não tinham que acender lamparinas para iluminar a casa ao cair da noite, e nem comiam mamão verde cozido á água, óleo e sal para servir de mistura no almoço e janta.


                                                                            *


Com muita expectativa positiva a família Ribeiro chegou ao ano 1979. O meu pai passou á fazer e vender encosto de bancos de automóveis, e era uma novidade até então. A armação era de ferro 5x16 e revestido por fios de plásticos, tipo espaguete, o mesmo material usado nas cadeiras que ele consertava. Alguns clientes motoristas de ônibus da empresa Araguaína já haviam encomendado alguns encostos. Á partir de então, o meu pai daria mais lucro a loja Seringueira, comprando dela mais fios plásticos para cumprir com as demandas.  Minhas irmãs Airta e Ana Rita foram efetivadas empregadas domésticas em residências diferentes. Os meus irmãos Edeir e Eurípedis trabalhavam em diárias com pedreiros particulares. Ismael, eu não sabia por onde é que ele andava, mas de vez em quando ele aparecia com um bom pedaço de salame e uma lata de extrato de tomate. Quanto ao Rildo, aos poucos eu ia perdendo a companhia dele. Para evitar que eu o visse apenas ao anoitecer, por razões de ele ir trabalhar com o meu pai e só voltar á noite para casa, eu pedi á meu pai que me levasse também.

Para mim, foi uma viagem muito divertida, o nosso trajeto até á um setor chamado Crimeia leste. Fomos de ônibus, e era muito legal ficar olhando pela janela aqueles carros diferentes e mais bonitos do que os que a gente via em Campinorte e na própria Vila Brasília. Era interessante ver os passageiros puxando uma cordinha para avisar ao motorista que eles iam descer no próximo ponto.

Naquele dia, o meu pai foi fazer um orçamento para o concerto de duas cadeiras de balanços, e de um jogo de sofá. As pessoas não eram ricas, mais havia uma Belina na garagem grande daquela casa com grades nas janelas de vidro. A parte interna da casa, nós não chegamos á conhecer, mas o que se via do lado de fora era aquilo que eu poderia chamar de casa bonita de pessoas que tinham condições de vida superiores e muito, á nossa.

A reforma ficou combinada através de uma conversa entre o meu pai e a dona da casa. O esposo dela havia saído, mas deixara com ela a ordem de fechar negócio com o meu pai. Teríamos que ir ao centro de Goiânia. Íamos á pé, quando o Rildo reclamou que estava cansado, então rumamos para o ponto de ônibus. Perdemos o ônibus daquela hora. Rildo teria que suportar o cansaço. Talvez não tivesse motivo para ele estar cansado. Porém, o tempo se encarregaria de me revelar o porquê de seu cansaço.

Continuamos andando. No trajeto nós passamos sobre a estrada de ferro. Perguntei ao meu pai pra que era aquele tanto de ferro atravessado sobre britas no chão. Ele respondeu que aquilo era o caminho do progresso, e que era pra gente atravessar depressa, para não corrermos o risco de sermos atropelados pela Maria fumaça. –não entendi. Minutos depois chegamos á uma extensa avenida á qual o meu pai falou que ela se chamava Independência. Logo que caminhamos por ela mais um pouco, Rildo me apontou um monumento com um enorme relógio analógico no cimo. Era ali a estação do trem. Só que o “trem” não estava lá. Dobramos á esquerda da avenida e chegamos á outra um pouco mais movimentada. Estávamos no Setor Central.

Confesso que fiquei encantado com o centro de Goiânia. Eram muitos os carros, pessoas e alguns edifícios... e inúmeras oportunidades de negócios, principalmente no ramo de roçagem, pois, em plena avenida do setor Central da capital, ainda existia lotes baldios e cheios de mato. Para se brincar de macaquinho era uma boa alternativa. No calçadão entre as duas pistas havia canteiros de arbustos, árvores e pés de cocos. Era mesmo uma pena, que o meu pai não me deixasse subir naquelas árvores, agarrar em uma palha de coqueiro e voar em círculo feito quem pendura numa cadeira de chapéu mexicano em movimento.

O meu pai fez eu e meu irmão andar feitos desvalidos até chegarmos á loja Seringueira. Tivemos que superar bem uns quinhentos quarteirões para então chegarmos á tal loja. Mas enquanto isso eu seguia observando tudo.

Já era quase hora do almoço, quando saímos da loja. Nosso destino seria o restaurante da vovó. Pernas pra que te quero.

Quando chegamos, o meu pai foi até á atendente e conversou alguma coisa com ela. Eu ficava girando pelo salão, olhando pessoas comendo e outras palitando os dentes. As mesas quadradas, forradas com toalhas coloridas estampadas em desenhos de frutas, não aumentaram em nada o meu apetite, pois eu já estava á ponto de comer até as frutas das toalhas.

Uma senhora simpática nos serviu três “surtidos” Eu nuca tinha visto tanta carne num prato exclusivamente meu, e nem nos dos meus irmãos, irmãs, pai e mãe. A circunferência do prato era semelhante á de uma calota da roda de um Cadilac. Clientes ali notaram o tamanho da minha admiração no momento em que eu exclamei: –nossa, ó os “tamanão” dessas coxa de frango!

–Cala a boca Joãozim. –disse–me Rildo, dando uma cutucada na minha perna esquerda.

O ano referido, 79, foi o marco para a minha mudança de atitude. Eu não seria mais aquele molequinho que fazia do terreiro de sua casa o seu parque de diversões. As brincadeiras foram deixadas para depois que eu voltasse do trabalho. Comecei então á ganhar um dinheirinho. O meu pai nos abonava com uns trocadinhos, e vez e outra, eu e Rildo ganhávamos algumas gorjetas das pessoas ás quais nós consertava as suas cadeiras e sofás. Comíamos em pensões pelo centro de Goiânia e sempre trazíamos algum enlatado para servir de mistura para comermos em nossa casa. O ano passava rápido como um raio, e quando foi no mês de outubro, nós consertávamos algumas cadeiras numa casa no setor Campinas, quando a dona da casa chegou á mim e Rildo e nos entregou dois carrinhos de plásticos e nos desejou feliz natal. Em pleno mês de outubro alguém desejou á nós feliz natal.

Dois ou três meses depois, meu irmão Rildo teve de ser internado no hospital Lúcio Rebelo. Ele estava com pneumonia, mas em estágio não muito grave. Quando ele foi levado para o hospital, eu não o acompanhei, mas três dias depois, eu e o meu pai fomos visitá-lo e, ele voltou conosco. Nesse dia, eu conheceria a CCB do Jardim Bela vista. No domingo seguinte, eu, Rildo e o meu pai fomos para o culto de jovem. A segunda igreja á receber a nossa presença nos cultos seria a do Cruzeiro do Sul. Depois Parque Amazonas, e enfim, Vila Brasília. As promessas de que dias melhores viriam, eram consecutivas á culto. Mas no decorrer do ano 1979, as coisas não mudariam no sentido de pobreza familiar. Mais pobres não ficaríamos, aliás, todos, exceto minha mãe, estávamos ganhando o nosso dinheiro. As minhas moedinhas, eu ás economizava, não para me tornar um menino rico num futuro bem próximo, mas sim para usá-las de modo á melhorar o meu conhecimento em matemática. O meu contato com dinheiro, me fez entender que os números eram algo infinito, e que eu precisava aprender outras frações numéricas. Somas maiores eu já havia aprendido parcialmente. Eu comprava balinhas, paçoquinhas e outras guloseimas, mais para aprender matemática do que por vontade de devorá-las. –mas, eu ás devorava, e como devora. Então, eu pegava uma caixa de fósforos e comprava os palitos. Cada um valeria cinco centavos, que eu os pagaria com as minhas moedas.

O meu amigo oculto era o vendedor.

–Eu quero dez palitos.

–Cinquenta centavos.

–Toma. –eu entregava á mim mesmo uma moedona de cinquenta centavos.

Foi com as minhas compras e vendas com o meu amigo oculto, que eu aprendi que os valores vinham representados em números descritivos. E, abaixo dos números havia uma palavra escrita em letras alfabéticas. Perguntei ao meu pai, o que estava escrito ali. Ele me respondeu que era Centavos, e que do outro lado da moeda estava escrito Brasil. Captei as informações, e á partir de então, eu não iria mais perder tempo com matemática porque eu já me achava um grande calculista financeiro. Então eu iria aprender á escrever tudo que eu visse escrito. Depois, eu aprenderia á ler. Virei copiador de letras. Eu reproduzia o que eu via escrito em um lugar, depois eu perguntava ao meu pai o que significava aquelas palavras. Ele me respondia.

Era incrível, mas, eu conseguia memorizar tudo, e, aonde eu visse palavras com as letras nas mesmas posições, eu conseguia lê-las. E foi assim que comecei á viajar pelo maravilhoso mundo da leitura e da escrita.


                                                                               *


Certo dia em uma residência no Setor Sul, eu estava esperando a volta do meu pai e do meu irmão Rildo. Eles haviam ido comprar fios para terminar de enrolar as cadeiras, pois o estoque de matéria prima tinha se esgotado. Não querendo eu ficar na garagem da casa, fui para calçada. Chegando lá avistei uma árvore, e, numa rápida varredura visual que eu fiz, percebi que o muro rente à calçada era de meia altura. Seria a minha plataforma para eu alçar voo e agarrar no galho alto daquela árvore. O meu amigo oculto me desafiou, - quem de nós dois alcançaria o ponto mais distante do galho. –E, eu aceitei o desafio. 

Na competição entre eu e Mim, Mim estava vencendo. Então, eu cuidei logo de empatar a disputa. O placar ficou de três á três. Satisfeitos, nós, eu e Mim, chegamos à conclusão de que nós seríamos invencíveis.

Sentei-me ao pé da árvore e fiquei dialogando com Mim. Eu confidenciei á Mim, que eu iria desafiar o meu irmão Rildo. Mim, me dizia pra eu não fazer isso, porque Rildo era nosso irmão. Eu dizia que eu só tinha o Rildo para competir contra ele. Mim me redarguiu dizendo que eu não podia ficar querendo ser melhor do que ninguém. Eu achava que aquele conselho transmitido á mim pelo meu subconsciente fosse porque eu crescia num lar onde pai e mãe eram cristãos e me ensinava á ser simples e humilde. Mas, Mim parecia querer me fazer compreender algo que eu ainda não conseguia entender.

Coloquei os meus braços sobre os meus joelhos e apoiei a cabeça sobre os antebraços, me pus á escutar a voz latente do Mim falando em meu consciente. –não queira ser melhor que ninguém. -Essa advertência era pronunciada assim: – num quêra sê mió que ninguém. O português do Mim não era em nada diferente do meu. Não era simplesmente uma voz internalizada e pressentida apenas. Mim não tinha uma forma corpórea e nenhum aspecto físico, mas era como se ele estivesse do meu lado, falando comigo e me ouvindo.

De repente eu fui interrompido por alguém que chegou e disse: – ei menino, vamos brincar de pular no galho.

Quando ergui a cabeça, eu vi um garoto de aproximadamente nove ou dez anos de idade. Cabelos lisos como seda, e castanhos. A pele dele era alva e muito bem cuidada. Nariz afilado e dentes perfeitos. Vestia uma camiseta cor de abóbora, uma bermuda Jeans e calçava tênis branco de couro com meias brancas. A marca do tênis eu não pude deixar de ler, pois eu já havia copiado aquelas letras á dois dias atrás, quando eu passava próximo á uma loja de calçados e me encantei com o par de tênis. Copiei o nome, e ao mostrar á meu pai, ele disse que eu havia escrito Adidas. Eu percebi logo que aquele menino era rico. Aceitei o convite, e nós fomos brincar como ele sugeriu. Havíamos dado alguns saltos e sempre alcançávamos quase o mesmo ponto daquele galho. Até que em um dado momento eu lancei o desafio ao coleguinha.

–Vamo vê quem pula mais longe?

–Vamos. Você pula primeiro.

E lá fui eu para o salto fatal.

Quando acordei, eu senti uma dor aguda e ardente sobre a minha sobrancelha. Eu estava sobre a cadeira de um hospital com duas pessoas vestidas de branco ao meu redor. Eram um médico e uma enfermeira. Quem havia me levado ao hospital fora a irmã do riquinho. Pela primeira vez eu andara em um Alfa Romeo. O médico me fez perguntas do tipo: onde você mora, quantos anos você tem e onde estavam os meus pais. Respondi todas elas. Em seguida, a enfermeira pegou um esparadrapo e veio em minha direção. Foi a minha vez de perguntar o que tinha acontecido com o meu olho. O médico me disse que felizmente o meu olho estava em perfeitas condições. Então a enfermeira trouxe um pequeno espelho e colocou na frente do meu rosto. Assustei-me quando vi o resultado da minha natureza desafiadora. Levei um corte profundo de maneira tal á deixar á mostra o osso da borda supraorbital. Oito pontos á cima do meu olho esquerdo eu ganhei de prêmio pela minha teimosia. Imaginei que a minha sobrancelha jamais ficaria completamente coberta de cabelo. 

Eu não havia ficado muito tempo desacordado, pois quando a irmã do garoto me levou de volta para a casa onde eu esperava o regresso do meu pai e do Rildo, os dois ainda não haviam chegado. O garoto me esperava no local. Ele havia tomado um banho e trocado de roupas. Seus cabelos molhados pareciam ter recebido gel fixador e estavam penteados para trás. Os olhos dele transmitiam tristeza e preocupação. O resultado da disputa entre nós dois eu já sabia e sentia o efeito. Toda a minha testa doía muito, mas eu queria saber o que foi que houve. Então ele me contou como foi o final do nosso desafio.

–Não fui eu quem te empurrou. Você pulou e alcançou a parte mais grossa do galho, mas você não conseguiu segurar com firmeza, e as suas mãos escorregaram, e você bateu com a testa no tronco da árvore.

–Tem nada não. Outro dia nois brinca de novo. –falei.

Á partir daquele dia eu não iria mais acompanhar o meu pai e o Rildo no trabalho, enquanto eu não me visse livre dos pontos sobre minha sobrancelha. O castigo que eu recebi do meu pai, seria de certo modo bem aceito por mim, não fosse o fato de eu ter que ficar sem ganhar as gorjetas e presentes dos nossos clientes de consertos de cadeiras e sofás.


Eu aproveitava a licença trabalhista e cuidei de escrever o máximo de palavras que eu pudesse. Foi quando um nome feminino surgiu em minha lista. Maurinha era o diminutivo do nome da minha vizinha do outro lado do muro. Eu estava na sala escrevendo a palavra Corcel. Isso porque quando voltávamos para a nossa casa no dia anterior, mesmo com o olho doendo bastante e quase tapado pelo esparadrapo, eu vi exposto na banca de jornal do ponto final de ônibus da vila, uma capa de revista que trazia uma propaganda do Corcel 2. Ano 79. Um rapaz e uma moça bonita apresentavam o lançamento do ano. Eu disse ao Rildo, que aquele carro era bonito, ele me falou que a moça era mais ainda. Mas, eu preferi a beleza do Corcel cor de abóbora, igual à cor da camisa do riquinho que assistiu de camarote o encontro da minha testa com o tronco da árvore.

    Dona Rita, veio visitar a minha mãe novamente. Só que dessa vez ela trouxe a filha caçula. Eu estava na sala sentado no tamborete de três pernas. A quarta perna já havia sido amputada no mês anterior. A folha de papel estava sobre uma cadeira que fazia parte do trio da mesa da cozinha. A quarta cadeira, eu nuca á vi.

Quando dona Rita chegou e procurou pela minha mãe, dona Francisca ouviu a voz dela e saiu do quarto para recebê-la. As duas foram para a cozinha. Maurinha ficou na porta sem querer entrar.

Ela me olhava. Aquela olhar que, para mim era mesclado de desencanto, decepção, e talvez tivesse também uma pitada de compaixão pela situação de pobreza do observado.

Eu a ignorei e continuei escrevendo. 

–Corcel. 2. –falei, depois de escrever.

Notei que Maurinha escutou a minha fala. Fiquei sem graça e parei com a escrita.

–Entra, senta. –disse eu á ela, desocupando a cadeira.

Ela entrou e se sentou. Eu fui ao quarto e guardei a folha debaixo do colchão. E quem disse que eu tinha coragem para ir fazer sala á Maurinha? Ela era, uns dois ou três anos mais velha do que eu, morava numa casa toda murada, com uma Belina na garagem e vitrôs gradeados. Eu descobri esse contraste entre a qualidade de vida dela e a minha quando subi pela terceira vez no pé de abacate para fazer um saque de notinhas verdes.

Pele clara, cabelos e olhos castanhos.  E... tão bonita quanto a boneca Barbie. Outro detalhe, ela estudava. Quer saber mais? Os pais dela eram donos da mercearia da esquina. O preço daquele vestidinho amarelo que ela vestia naquela bendita hora daria para comprar o meu calçãozinho roto, a minha camiseta de malha, meu par de congas, e ainda levaria a minha graninha que eu tinha guardado em uma lata de marmelada entre as molas do colchão da cama da minha mãe e do meu pai. Fiquei no quarto, e... 

...ela entrou no quarto.

Ô caramba. Já não bastava á ela ter visto a falta de móveis na sala, ainda tinha que ver que eu estava calçando o pé da cama com um pedaço de vigota, porque quando eu tirei a lata de marmela de dentro do colchão para eu conferir os meus trocados, a grade da cama se soltou e arredou o calço do lugar.

–O que aconteceu com o seu olho?

–Nada. –falei meio que gemendo por causo do peso da cama.

–Quer que eu te ajude?

–Não.

Houve silêncio, até que eu terminasse o calçamento.

–Pronto. –falei saindo do quarto.

O cômodo não era muito grande, mas cabia a cama de casal, duas de campanha, uma caixa de madeira para por as roupas e um guarda roupa de duas portas, sem as portas. Mas, eu passei por entre o guarda-trapos e a Maurinha próxima á porta sem triscar na barra do vestido dela. E, de cara virada eu me sentei no tamborete tripé.

–Você sabe escrever? –ela me perguntou se sentando na cadeira.

–Sei. –respondi sem olhar para ela.

–Cadê a caneta?

–Tá na cama.

–Vai buscar ela pra gente escrever um pouco.

Voltei ao quarto e peguei a caneta e o papel. O papel era um saquinho de embalagem que veio da mercearia do pai dela com cem gramas de açúcar. Eu o abri e o enchi de palavras escritas.

–Toma. Pega. –entreguei á ela o meu material didático.

Maurinha puxou para baixo a barra do vestido e cruzou as pernas, para então estender o papel sobre a coxa dela.

–O que você quer que eu escreva?

–Sei lá. Seu nome. Ocê que sabe.

Ela riu.

–Ocê não. Você.

Começamos mal a nossa amizade. Ela me corrigiu na cara dura e nem notou a minha vergonha.

–Eu já sei o que eu vou escrever. –disse, juntando os cabelos e os jogando para a parte frontal do corpo dela. Depois de uns cinco segundos, ela me devolveu o papel, sem a caneta.

–Escreve o seu agora.

–O meu o quê?

–Seu nome. Eu escrevi o meu...

–Eu não sei escrevê o meu nome ainda.

–Você não sabe ler?

–Mais omeno. –falei.

–Mais ou menos. –ela me corrigiu novamente.

Grilei.

–Me dá o meu papel e a minha caneta. Num vô escrevê nada não.

Ela tentou esconder o meu material atrás das costas dela, mas eu parti pra cima dela, e na minha investida, nossos rostos se tocaram por algumas vezes, o meu machucado doeu.  Até que ela cedeu e me devolveu os objetos.

–Ocê é bobona. –critiquei.

–E você é... um bobo. Deixou meus braços vermelhos.

Enquanto ela alisava os braços para se livrar da ardência e dos hematomas deixados pelas minhas mãos. Eu vazei para o matagal, e lá fiquei decorando o nome dela. Mas, ela escreveu com letras minúsculas, e eu só copiava as palavras escritas em maiúscula.

Guardei com carinho a folha, e já imaginava quem seria a minha intérprete. Airta, a mais escolarizada da família Ribeiro. –sétima série.

No matagal eu fiquei por alguns minutos catando flores de lobeira para ver se passava a minha vontade de ir falar com ela novamente.  Quando eu á vi saindo com a mãe dela, fechei a cara e fiz bico. Então o meu amiguinho oculto me aconselhou. –pede discuipa pra ela Joãozim. Ela é boazinha.  Então eu fui até a beira da cerca de arame farpado para gritar:

–Minina, me discuipa. 

Ela sorriu, acenou tchauzinho e se foi.

Para um menino de apenas sete anos de idade, o sexo oposto não despertava grandes emoções, e tampouco sentimentos afetivos, ou libidinosos. A inocência infantil prevalecia. No entanto, sentimentos de carinho, gratidão, amizade e outros mais, sempre estarão configurando nossos relacionamentos em qualquer fase de nossa vida. Entre mim e Maurinha no primeiro momento, com certeza houve reciprocidade de sentimentos negativos. Acontece que, ela tinha o seu jeito próprio de lidar com as ofensas advindas de outro alguém. Por outro lado, eu tinha os meus motivos para tê-la ofendido, ainda que não houvesse razão para tal. Eu sabia que ela não era para o meu bico. Esse meu auto-preconceito era devido à diferença de padrão de vida da família dela e da minha. Na realidade eu achava que meninas iguais á ela, eram chatas e exibidas. Mas no fundo do meu coraçãozinho, eu sentia que ela não havia ficado com raiva de mim. Por isso, eu passei á procurar uma oportunidade de me aproximar dela outra vez para começarmos tudo de novo.

Nos anos que se seguiram, durante o tempo em que fomos vizinhos, Maurinha foi a primeira á encabeçar a página da minha história, a minha primeira coleguinha.

Com ela, eu aprenderia á falar “você”. “mais ou menos”. Á falar corretamente as palavras, e sobre tudo que, a primeira impressão nem sempre é a que fica. E que, se valorizamos demais uma pessoa, é bom que nos coloquemos á altura dela, assim poderemos dar e também receber o devido valor á ambas as partes.



                                                                            1980


O ano 1980 principiou trazendo muitas surpresas. Algumas delas, já orquestrada em 79. Vamos ás manchetes. Em setembro eu havia completado os meus sete anos de idade. No início de 80 já me sentia com oito, porque eu tinha conseguido contar e fazer algumas somas com resultados á cima de cem.

Numa noite, eu perguntei ao meu irmão Eurípedes, qual foi o ano que eu nasci. Ele respondeu que fora em 72. Aí eu saí contando até chegar á 80... –Oito, eu tem... eu “tenho” oito anos. Mas faltavam quase nove meses ainda. O meu vocabulário estava sendo treinado também.

Airta, minha irmã mais velha arrumou um namorado, e o relacionamento dos dois foi ficando sério, sério, sério, até que eles resolveram brincar daquilo, e acionou a cegonha para que ela trouxesse o brinquedinho que os dois haviam encomendado, – seria uma bonequinha fofucha.

O nome do brincalhão parceiro da minha irmã era Nilson. Rapaz de boa altura, amarelo e de cabelo assim meio que anelado. Sorriso aberto muito espontâneo. Ele era pedreiro de obras, mas com a anunciação da chegada da fofuchinha ele teve que fazer bicos particulares.   

Eu acredito que ele sacou logo que com um bercinho á mais dentro das dependências do nosso barracão de tábua, a Airta teria que dormir debaixo do pé de abacate. E, para não deixar a namorada no relento, ele cuidou de trabalhar até nos finais de semanas.

Quando Nilson foi apresentado aos demais cunhados e sogros, eu não sei, mas eu estava em casa na noite em que ele chegou com um feixe de traíras e piaus. Não tinha lugar pra eu me sentar na sala. Apesar de que nós já tínhamos um sofá de couro sintético preto, vindo não sei de onde. –é que quando eu saí cedinho com o meu pai e o Rildo, aquele “enguiço” não estava no conjunto de mobília da nossa sala. Eu tinha absoluta certeza de que ás seis e meia da manhã, o tamboretinho perneta e as duas caixas de verduras, eram os únicos assentos que tínhamos ali naquele cômodo. O sofá era para três pessoas, mas, o Ismael, o Rildo e Ana Rita, ocuparam o tamborete e as caixas. Airta sentou-se do lado direito do sofá, Nilson do lado esquerdo. Sobrou o meio do assento para mim. Porém se eu me sentasse naquele ponto, eu iria parar no assoalho de tábua do barracão. Havia um buraco do tamanho da via láctea no centro do assento, entre aspas. Para remendá-lo seria necessário que o meu pai usasse todo o estoque de Napo que ele possuía. –obs. O nome Napo era dado á material de couro sintético para o revestimento de sofás. Mas acreditem, aquilo era um sofá, há uns trinta anos anteriores, mas para a família Ribeiro, ele seria bem mais do que isso. –a nossa necessidade o transformaria em uma confortável cama também.

Voltando ao cunhado e os peixes.  Naquela noite eu quase tive a pele do meu rosto escalpelada. Airta buchudinha, me deu a incumbência de ficar de olho nos peixes sendo fritado numa rabeirinha de fundo raso. A minha ânsia por vê-los crocantes era tanta, que, eu parecia querer ajudar na fritura usando os meus olhos como lança-chamas. Só que estava no início da fritura, mas o óleo já estava superaquecido. E eu lá... com a cara quase dentro da frigideira. De repente, o danado do piau deu uma chilapada dentro da panelinha, e a gordura espirrou no meu rosto.

Desculpe-me pelo palavrão, mas eu extrapolei todo o bom censo, o vocabulário e a minha educação, para gritar: – Ai pêxe fie dunha puta. Ô Airta, vem oiar esse pêxe disgramado aqui.

–Quê que foi, Joãozim?

Corri para a sala passando a camiseta no rosto.

–Aquele fie dunha égua tá vivo.

Nilson ria e batia as mãos nas próprias pernas.

–Vem cá, Joãozim. –disse ele, vindo ao meu encontro.

Quando eu me aproximei dele, Ismael, Rildo e Ana ficaram batendo cabeças uma nas outras, e quase queimando os seus rostos com a lamparina, para junto com Nilson examinarem meu rosto.

Olhando meio estrábico para o telhado eu esperava o diagnóstico de algum deles.

–Ah, foi só um susto. –disse Ismael farfalhando o meu cabelo.

–Esse minino mata a gente de susto. –disse Ana Rita voltando á se sentar.

–Os pêxe já tá frito? –Ismael perguntou indo á cozinha.

Airta voltou da cozinha e anunciou que os peixes ficariam á ponto de me pagarem pela sepecada na cara, á aproximadamente uns três minutos. Em seguida ela se sentou no seu lugar de antes. Nilson sentou novamente no lugar que ele estava.

Eu estava em pé, revirando os olhos para ter certeza de que eles não ficariam com aspecto de olhos de peixe frito, mas aí, o cunhado me mandou sentar entre os dois.

Quando eu me sentei, – e pra quê eu me sentei, – fui engolido pelo assento, e a posição que eu fiquei fez parecer que o meu corpo era composto apenas de cabeça, braços, canelas e pés. Minhas coxas vieram parar no meu tórax, e a minha boca solapou no meu joelho direito. Mordi a língua, mas isso não me impediu de lascar os dentes nos peixes e triturar traíra e piau com espinha e tudo mais. Eu comeria aqueles danados, mesmo que eles ainda estivessem com escamas e realmente vivos.

–Êh, jõaozim, os pêxes num tava vivo não. È purquê eu acabei de limpá eis, e os neivos deis tava mexeno. –disse Nilson.

Bom, depois da explicação eu descobri que o cunhado seria bem-vindo. Identificamo-nos muito bem com ele. Cara simples, bom pescador e... o vocabulário dele não era diferente da maioria de nós.

Dias depois, eu ganharia um presente ofertado pela minha irmã Airta. Apesar de ela estar morando com Nilson em outro barracão, ela ia muito á nossa casa. Certo dia, Maurinha havia me dado uma Maria-mole, uma espécie de doce esponjoso. Airta me pediu um pedaço, eu soquei tudo na boca, e disse:

–Acabô. –e saí correndo para o mato.

No dia seguinte, eu amanheci com um terçol no olho esquerdo, do tamanho do sol radiante ao meio dia.

     As surpresas continuariam chegando naquele mesmo ano. A maior delas foi que a minha mãe também estava grávida á espera do meu irmão caçula e último.

Sobre a gravidez de minha mãe, era um pouco difícil de esperar, afinal de contas, não era de se imaginar que o meu pai e ela quisessem trazer mais um filho ao mundo. Não que algum de nós achasse que seria inconcebível uma coisa daquelas. Levando em consideração a religiosidade, a falta de aconselhamento em respeito á ter ou não ter filhos e a falta de acesso á medidas preventivas a concepção indesejada ainda que fossem consensuais e não violassem as leis divinas em relação à vida.  Todos esses fatores contribuíam para que os cônjuges naquela época seguissem a filosofia do “onde come um comem dez”.

Sendo assim, se houve um de nós que não gostou da notícia de que dona Francisca aos trinta e oito anos de idade e de pobreza absoluta estava grávida, eu não sei dizer qual deles seria.

Em abril de 1980, nascia uma menininha encantadora que seria e é conhecida até hoje, pelo nome de Katiuscia Carvalho Oliveira, filha de Airta e o pescador.

Em 26 de setembro do mesmo ano, eu João Batista Ribeiro Oliveira me levantei á noite ouvindo o choro de um menino que vinha á esse mundo, sendo tirado por seu próprio pai das entranhas de sua mãe. Ele recebeu o nome de Nelino Simeão Ribeiro. Roubou o meu status de caçula dos irmãos.



                                                         *


Eu descobriria que aprender cortar cabelos, para mim seria a profissão que permitiria dar adeus aos beliscões no pé da orelha e de sobra, ainda ganharia alguns trocados num futuro não muito distante. 

    No banquinho tripé debaixo do pé de amoras, com o queixo grudado ao início frontal do pescoço eu estava, enquanto o meu pai derrubava os meus cachinhos, aliás, os cortavam á tesoura em altura de máquina zero. Eu nunca vi tanta habilidade com a tesoura no corte de cabelo e pra deixar a cabeça da gente parecida a um coco da Bahia descascado.  Vez em quando, quase sempre, Pedro Simeão dava uma de cabeleireiro e mudava o nosso visual, de cabeludos para Kojak. Geralmente, eu era o primeiro á ser transformado em astro da gargalhada.

–Ai pai, minha orelha!

–Fica quieto menino.

–O senhor tá machucando a minha orelha.

–Com quem você tá aprendendo falar direito?

–Com a Maurinha. –respondi com voz prensada, olhando para as amoras maduras esparramadas no chão.

E tec-tec. Tome tesourada.

–Eu fui professor em Orizona.

–É sério pai? –perguntei levantando a cabeça.

–Abaixa a cabeça.

Fiquei surpreso, mas manter um diálogo naquela situação era difícil. O meu pai não era um homem ríspido e nem carrasco com os filhos. No entanto, era muito sistemático, e cá entre nós, saber que a gente tem um pai que fora professor, ainda que fosse numa inexpressiva cidade interiorana, era muito surpreendente para um menino de oito anos de idade que estava esforçando ao máximo para aprender á saber o nome de cada letra do alfabeto. Maurinha me dava aulas orais pronunciando frases inteiras, e, era de vez em quando, num dia qualquer que eu não ia para as ruas trabalhar com o meu pai.

Eu conhecia os sons formados por sílabas, e já formava palavras juntando uma sílaba e outra de palavras diferente. Por exemplo: Eu queria escrever “Bravo”. Então eu sublinhava a silaba Bra de Brasil, e a Vo de você. E muitas outras palavras.

–Eu quero aprender os nomes das letras...

–Depois eu te ensino.

–Sério pai?

–Eu preciso mentir, menino? Agora, fique quieto.

*Ebaaa. –pensei feliz, mas não movi um músculo apenas.

Quando terminou a tosa eu fui á casa da mulher que se tornaria a minha tia e os filhos dela, meus primos. Dona Iovalti era uma baiana de nome estranho, sorriso da Fafá de Belém, dentição perfeito com uma falhinha entre os dois da frente, que seria possível prender um palito de fósforo. Dentes iguais aos dela não correm risco de se formar cáries ou podridão por atritos entre eles. –quem me garantiu isso foi o Sérgio filho mais velho dela. E, ele tinha e ainda tem os dentes emparelhados do mesmo jeito que eram os da mãe dele.

Leonardo, o segundo marido da tia Ovate, –era assim que á chamávamos –,ele estava com a Telefunk ligada, assistindo um jogo de futebol naquele dia de domingo. Eu cheguei á porta da sala e vi aquele aparelho exibindo um estádio lotado de gente como eu jamais havia visto. Meus olhos percorria a tela ´quando um jogador branco dominou a bola no peito com toda “catiguria” e partiu para o ataque. Eu nem ligava para os outros que pareciam ter um pneu de Scânia em volta da cabeça. O camisa 10 seguia com a bola dominada, eu ficava contorcendo o corpo e dizendo, vai, vai, de repente, o craque foi derrubado.   Eu dei uma bicuda no portal da porta. Leonardo me olhou.

–Cê torce pro Flamengo?

–Quem é Flamengo?

–O time de camisa vermelha e...

–Cadê essas camisas vermelhas?

A televisão era em preto e branco.

–O nome desse pereba é Zico.

Ele era Botafogo, e estava secando os dois times.

Para mim, Zico era o melhor jogador do Brasil e do mundo. E, eu seria Flamenguista daquela tarde em diante.

Antes de eu ir embora, tia Ovate preparou um cuscuz e cometeu o erro de oferecê-lo á mim. Ela trouxe uma porção fumegando derretendo a Margarela no prato e meio copo de café. Bom, eu já desfrutava de certa liberdade na casa e já sabia onde ficava o fogão, daí á pouco, tia Ovate teve que molhar mais massa de milho, embrulhá-la no prato, pô–la para cozinhar no banho-maria, e preparar outro cuscuz para o tio Leonardo. –em 1980, cuscuz de pobre era feito assim.

–Joãozim, cê comeu tudo? –tio Leo perguntou.

Eu estava ainda mastigando e não pude responder.

–Deixe o bichinho, tadinho. –tia Ovate o repreendeu.

Dali eu pulei o muro no fundo da casa dos tios, caí na saroba e fui parar do outro lado da Avenida São Paulo. Fiquei no mato por alguns minutos fazendo planos para quando eu aprendesse os nomes das letras.   Não que eu ousasse desacreditar da promessa que meu pai fez, de me ensinar, mas a ansiedade era grande, as expectativas maiores ainda. Acontece que, sinceramente, eu cheguei á entristecer o semblante quando no dado momento em que eu arranquei um cachinho de sangue-de-cristo e contava as bolinhas, eu disse á mim mesmo: – e se ele não me ensinar?

No caso de o meu pai não cumprir com o combinado.  Talvez a Airta, o Edeir ou o Eurípedes, mas infelizmente, eu não sabia se eu podia contar com a ajuda deles.  Cogitei a possibilidade de eu ir pedir á Maurinha para me ensinar, porém, no fundo eu queria era ter algo de mim para apresentar á ela e deixa-la impressionada. Não que eu estivesse apaixonado por ela, eu nem sabia o que era isso. A verdade era que a superioridade intelectual que ela possuía em relação á mim, não deixava que á eu quisesse de outra forma que não fosse amizade.    

Fazia parte da minha natureza, querer mostrar o meu valor ás pessoas que eu gostava. Os meus irmãos eram as pessoas que eu mais gostava, mas aos que eu quis fazê-los saber o quanto eu estava evoluindo no campo do conhecimento, eles não me deram moral, e até me entristeceram. Foi numa noite a qual, os meus pais e o meu irmão Eurípedes estavam na igreja. Nós jantávamos juntos na sala. Eu disse aos que estavam na casa, que eu já sabia escrever as palavras, prato, garfo, arroz e outras que eu não me lembro mais. Todos eles duvidaram. Eu fui ao quarto e peguei a folha de papel com as novas palavras escritas. Mostrei á todos.  Eles continuaram duvidando e dizendo que alguém havia escrito aquelas palavras. Eu busquei a caneta e pedi á qualquer um deles que ditasse uma palavra pra eu escrever. Um deles disse sapato. Foi muito fácil. Escrevi. Todos se calaram. Inocentemente eu disse assim: Agora vocês... -quando eu disse vocês corretamente, eles ficaram se entreolhando e burilando entre eles, que eu estava ficando bobo querendo conversar igual á rico.

As reações deles me feriram. Eu ia perguntar assim: Agora, vocês acredita nimim? Imagine só, se eu já dominasse bem o português e dissesse: Agora, vocês acreditam em mim?

Na opinião deles, se pobre falasse bonito, ele era tido como á um exibido e desprezível. Santa ignorância! 

Mas, o meu português estava melhorando. Simbora Joãozinho!!!

Saí do mato chutando as frutinhas, completamente deprimido com antecedência. Quando eu cheguei a minha casa, minha mãe estava recolhendo as vasilhas para levá-las ao tanque para lavá-las. Com uma mão ela carregava o bule de café e dois copos. Com a outra ela enxugava os olhos.

–O quê que foi mãe? A sinhora tá chorando? Me dá, eu lavo pra sinhora.

Ela me entregou os recipientes e apenas me disse assim: – não fie, né nada não! E foi para o quarto.

Para a maioria das pessoas daquela época, existia apenas um único diagnóstico neurológico sobre alguém que passava por quadros de perturbações psicológicas ou psiquiátricas. Portanto, achar que a minha mãe estava ficando fraca da cabeça, devido á tantos traumas, não seria exagero de minha parte e nem dos que pensasse o mesmo que eu. Apesar de ainda preparar a nossa alimentação, zelar da casa e lavar as nossas roupas, a minha mãe demonstrava sinais de sofrimentos, angústias, e ia aos poucos se definhando e também falando sozinha pelos cantos. Porém, ela continuamente se punha em orações e... talvez fosse as orações que a mantinha viva.

–Oh meu fie, cê tava orano cumigo! –ela exclamou á mim ao se levantar tirando o véu, e me vendo massagear os meus joelhos depois de mais uma longa oração.

-Tava. Agora eu vou lavar as vazias... Vasilhas.

Cenas iguais àquelas seriam, por mim, flagradas, várias vezes.



                                                                                *


Foi em um dia qualquer. Estávamos na quaresma. O dia exato do calendário eu não mais me lembro. Só sei que eu havia subido em um pé de mamão, e ao descer dele eu fui conferir o estrago que eu causei ao deixa-lo cair de uma altura de uns quatro metros. Ele se rachou, mas não se partiu em bandas separadas. Caíra com o talo para baixo. Aquele fruto seria afogado em água, óleo e sal para em seguida, eu e mais alguns da minha nobre família, que apreciavam a iguaria –, assim como eu era forçado por via da falta de algo mais saboroso e nutritivo á comer. –Bom, para todos os efeitos, o mamão apresentou uma “trinca” que partia do talo ao “umbigo” na parte superior dele. Eu peguei aquele mamão, o examinei e disse: – Filho da puta. Por que você rachou? Olhem só, eu estava usando objetos, sendo eles comestíveis ou não, para treinar o meu vocabulário. E estava funcionando. Eu só precisava deixar de ser “grilado”. Pois bem. Após eu constatar que o mamão não estava em perfeitas qualidade de consumo, eu resolvi fazer dele o mesmo que outros já haviam feito e, –eu achei incrível –, uma caveira craniana. Esse elemento assombroso foi criação de alguém muito criativo, mas eu não sei quem inventou aquela parada sinistra. Confira comigo o grau de criatividade em horrores que esse “não-sei-quem inventou”. Para que todos aprendam a maluquice divertida de se aprontar, eu vou explicar de forma bem simples o processo de criação de uma caveira muito sinistra.

Peguei o mamão verde e cortei-lhe o talo. Abri um buraco naquele ponto e tirei toda a semente de dentro dele. Em seguida, fiz dois olhos, um nariz e uma boca. Beleza, o esqueleto do crânio estava pronto. Agora, eu precisava fazê-la reluzir como a que eu vi reluzindo no canto de uma casa na Rua Minuano próximo á casa da minha tia Ovate na noite passada, quando eu voltava de lá depois de ter assistido o filme do Tarzan, e ficado por ali á espera de qualquer coisa para comer. Comi, enchi, vazei.

Deixei a caveira detrás do barracão e fui á cozinha procurar uma vela. Só encontrei a lamparina á querosene e a minha mãe balançando o meu irmãozinho Nelino nos braços enquanto ele mamava no peito dela.

Fucei na prateleira.

–O quê cocê tá caçano João Batista? –minha mãe perguntou.

–Nada. Eu vou ali.

Fui á mercearia do seu Raimundo, pai da Maurinha comprar uma vela com o meu próprio dinheiro. Quase que eu não voltava para terminar a minha assombração. A Maurinha estava vigiando a mercearia, enquanto o pai dela batia o rango.

Sobre o balcão de madeira tinha uma balança analógica vermelha. Maurinha estava detrás daquelas duas coisas.

–Maurinha, me dá uma vela. –falei apressado.

–Oi primeiro, né!

–É. Oi. Me dá a vela.

–O que foi?

–Nada, Maurinha. Eu quero a vela.

–Eu hem! –disse ela indo para dentro da casa. Da porta ela chamou o pai dela.

Eu escutei o seu Raimundo dizer que já estava vindo. Fiquei esperando. Maurinha me olhava desconfiada, mas não disse nada.

–Puiquê cocê num me vende a vela? –perguntei.

–Não é assim que se fala. –disse ela indo à prateleira.

Quando eu estava grilado, apressado ou conversando com os meus irmãos, eu nem me importava em falar corretamente.

–Maurinha, eu tô “cum” pressa.

–Tá bom. Você quer uma caixa, ou só uma vela?

–Me dá tudo logo.

Deixei Maurinha encafifada, e com a minha nota de cinco cruzeiros. Por incrível que pareça, não sobrou troco.

Voltei á caveira. Meti fogo no pavio da vela, e depois á introduzi dentro do mamão. Estava dia claro naquela hora, por isso não houve aquele efeito arrepiante. Mas, logo mais á noite o mamão iria se transformar em olhos e boca do Motoqueiro fantasma.

A minha peripécia não seria nada se comparada ás inúmeras oferendas para os espíritos do além que a gente encontrava nas encruzilhadas das ruas da Vila Brasília. Sinceramente, eu nunca vi um bairro onde as pessoas faziam trabalho de macumba. Muitas das vezes, as deidades ficavam sem as velas, os frangos, as farofas e as garrafas de pinga. Adivinhe quem surrupiava os elementos dos banquetes. Não, não era eu que me embriagava e enchia a barriga com os alimentos e bebidas, mas eu confesso que matei muitos percevejos com pingos de velas brancas encontradas nas encruzilhadas da vida. Não era desrespeito, era necessidade mesmo. No meu entendimento, as velas brancas eram para um propósito benigno, por isso, os chupadores de sangue humano não morriam chamuscados com cera quentes, de cores vermelhas, pretas, amarelas e outras mais. Mas, eu conhecia muitos esfomeados que não rezavam nem um cruz-credo no momento em que eles cruzavam com pinga, frango e farofa dedicados aos espíritos. –já era uma macumba, amigo. 

E os danados diziam que estavam fazendo um bem ás pessoas que seriam prejudicadas pelos feitiços. Pelo menos as jantas deles, os atrevidos, teriam misturas de primeira.

Sem rodeios, a Vila Brasília nos anos 80 era o bairro de maior concentração de macumbeiros em toda Aparecida de Goiânia.

De volta á caveira carvernosa.

Quando a noite chegou, eu tive que ir á igreja com o meu pai, Eurípedes e Ismael. Voltamos para casa depois das 21 : 00. Ficaria para a próxima noite. Na hora de dormir eu contei ao Rildo sobre obra de arte do espanto, e sugeri á ele que fosse comigo á algum lugar para que pudéssemos expor a assombração.

–Não Joãozim, eu tô mal de novo. Nem sei se eu vô trabaiar cum pai amanhã.

Depois dessas palavras Rildo se encolheu debaixo do cobertor e dormiu. Na manhã seguinte ele ficaria internado pela segunda vez em menos de seis meses. Mas dessa vez eu não o abandonaria.

Nosso pai nos levou á um hospital para que exames fossem feitos em meu irmão. Eu me recordo que um médico extraiu sangue da veia do braço direito do Rildo. Era uma coleta para análise mais minuciosa, porque a internação já havia sido decretada. Há muito tempo, Rildo já apresentava sinais de fraqueza física, inapetência, tosse e peito chiando. Nós dois dormíamos na mesma cama. Eu percebia, mas não tinha ideia do risco.

Eu disse que queria ser examinado também, pois eu queria ter motivos para ficar internado com o meu irmão. O médico achou que seria conveniente me examinar também. Então, ele pegou a seringa, limpou a agulha com um papel toalha e em seguida á levou á chama de uma vela. Para mim, aquele procedimento seria normal. Dessa forma a agulha foi esterilizada naquela época, em um hospital da capital do estado de Goiás, no ano 1981.

O que era, é, e sempre será interessante, é que, em todas as épocas e fases da vida, quando alguém é levado á um hospital com alto risco de morte, sempre se vai ouvir de alguém, que se o doente tivesse chegado com dez ou cinco minutos de atraso seria tarde demais. 

Rildo chegou á tempo. Ele apresentava um quadro de pneumonia em estado bem avançado. Tendo eu ouvido essa reconfortante notícia vinda de não sei de onde ou de quem em minha casa após a internação do meu irmão, eu insisti com o meu pai, que eu iria ficar internado com ele, mesmo não tendo acesso ao diagnóstico médico do meu irmão, e se o tivesse eu não entenderia o porquê da negativa da administração em respeito á me deixar ficar internado com ele naquele hospital na Avenida Anhanguera. O resultado da consulta feita em mim pelo médico do outro centro médico não apresentou nenhuma anormalidade clínica ou patológica. Do diagnóstico laboratorial referente à minha saúde, eu não tive informação, e acredito que nem o meu pai a obteve. –digamos que o sistema era lento naquela época.

De qualquer forma, eu queria estar do lado do meu irmão na enfermaria. Porém, havia certo rigor em relação á hospedagem de acompanhantes de internados naquele hospital. E essa rigorosidade me impediria de estar com Rildo. Eu chorei enquanto uma enfermeira me dava balinhas, e o médico tentava me convencer de que eu não precisava me preocupar, porque o Rildo ficaria bom logo.

Seria muito fácil enganar um menino qualquer de oito anos e meio de idade, dizendo á ele que o irmãozinho dele superaria com facilidade á uma bronquite crônica. Acontece que, eu não era um menino “qualquer”. Eu era o pobre Joãozinho que já havia perdido quatro irmãozinhos.

Insisti, chorei, convenci o médico, e talvez eu tenha sido o primeiro á quebrar as regras daquele hospital. –ok, para uma boa causa, regras foram feitas para serem mudadas.

No Hospital. No primeiro dia, nós não nos vimos. Rildo estava sendo submetido á drenagens de secreções acumuladas em seus pulmões e outros cuidados médicos. Do segundo dia em diante, nós passamos juntos na enfermaria. Ele tomava muito soro aplicado na veia.  Eu o ajudava á ir ao banheiro e á devorar o lanche trazido pela enfermeira. As enfermeiras gostavam de mim porque tinha um menino internado na mesma enfermaria que a nossa com idade igual á minha, acredito eu, e aquele menino devia de ter algum problema mental também. Ele arrancava a agulha do soro do braço dele e saía correndo pelo corredor feito louco. As enfermeiras ficavam contrariadas. Então eu resolvi ajudá-las. Quando ele aprontava as deles, eu corria atrás dele e o trazia de volta para a cama. Eu fiz isso por umas quatro vezes, até que as enfermeiras deram um sossega leão nele, amarrando as mãos e pernas dele. Alguns dias foi o tempo da nossa permanência no hospital. Se eu disser um número exato de tempo, estarei chutando. Porém, quando nós recebemos alta médica e fomos pra a nossa casa, o meu mamão cabeça de caveira, estava murcho e as formigas tinham dado sobre ele. Eu e Rildo tratamos de fazer outra e a expusemos no canto do muro da casa da nossa tia Ovate.

No mês da quaresma do ano 1981, eu quase sofri o horror de perder á mais um irmão meu.



                                                                                *


É bom que entenda que, quando nos pomos a escrever a história de nossa vida, sempre deixaremos de mencionar sobre alguns acontecimentos. E estas faltas de relatos sobre determinadas fases e fatos, vai criando lacunas de continuidade no enredo da nossa história. Então, em um breve resumo, eu devo acrescentar que no início do ano 79, o campo de trabalho do meu pai era ali mesmo na vila e em outros bairros nas proximidades, e outros não tão próximos. Nessa época, eu e Rildo já o acompanhava em suas saídas para as vendas de bonés, bolsas e encostos de banco de automóvel. Numa dessas ocasiões, eu e o meu pai fomos negociar com o caseiro do templo Mãos postas. O terreno onde fora construído o templo ficava num ponto onde muitas ruas iniciavam ou terminavam no círculo de propriedade da Ordem Rosa Cruz.

Com o comodatário daquela instituição filosófica, o meu pai negociava, eu observava aquele prédio que ostentava em seu cimo, o formato de duas mãos unidas. As pontas dos dedos eram cortados e, em minha infantil inocência, e imaginava que o concreto de cimento não havia dado para concluir a construção.

Mas, o que mais chamou a minha atenção, foi o fato de pela primeira vez eu estar vendo uma televisão ligada. Estávamos eu, meu pai e caseiro, na área daquela casa. A porta da sala estava aberta e me permitia ver que no aparelho televisor uma linda paisagem proporcionada por um mar azul esplêndido. Logo aparecia um avião voando baixo sobre aquele mar, para enfim aterrissar em uma ilha paradisíaca. E na sequência um homem vestido em roupas havaianas gritava: Olha o aviãoooooo.

Ai se eu pudesse morar naquele lugar! A ilha da fantasia. Era esse o nome do primeiro filme que eu assisti, já com os meus seis anos e alguns meses. Depois daquela primeira vez, eu ia àquela casa, sozinho. O caseiro era gente fina, conversava comigo e me deixava ver televisão.  Com o passar dos dias, eu comecei á ouvir conversa de que naquele templo existia um bode preto, e o diabo era o líder da membresia daquela Ordem. Eu só posso garantir que, em minhas idas lá, eu nunca me deparei com um bode e sequer vi ou senti manifestações demoníacas nas dependências daquela instituição ou nas pessoas que eu via por lá. –lendas urbanas, sempre estarão presentes em nossas vidas.

Espere. Por que regressar dois anos no tempo e trazer á baila um detalhe tão insignificante? Ora, pois, o homem mais importante da história humana, teve sua história contada de forma muito mais lacônica deixando um vazio cronológico de 18 anos de sua história. Quanto ao meu relato anterior, eu o trouxe á tona para contar que foi numa ida minha ás proximidades do templo Mãos Postas, para caçar figurinhas de chicletes com o desenho do Pato Donald e sua trupe, e tampinhas de garrafas premiadas, que eu tive mais uma de minhas conversas com o meu amigo oculto, o Mim. Naquele dia do ano 1981, eu já havia encontrado algumas tampinhas e figurinhas. Então eu ás guardei no bolso da minha camisa de tergal e cogitei ir á casa do caseiro do templo para ver televisão.

O grande portão era de grades e o enorme quintal era ornado de jardim com roseiras, arbustos e árvores. Ao fundo ficava a casa. Ao chegar ao portão eu notei a porta aberta e a TV ligada. Quando eu levei a mão ao trinco do portão, Mim me falou assim: – e se o pai descobrir que você está vindo aqui para assistir televisão? Eu disse: – nossa, é mesmo! Eu vou embora.

Eu voltava para casa quando encontrei o meu irmão Rildo que saía da casa da nossa tia Ovate. O chamei. Ele me ouviu, mas continuou andando apressado em direção á nossa casa. Corri e o alcancei.

Eu tentei mostrar á ele a quantidade de figurinhas e tampinhas que eu havia conseguido naquela hora. Mas ele não estava para conversas sobre o assunto. Então ele me disse que o meu pai havia acabado de ir para o hospital.

Lacunas em histórias de vidas célebres, são produzidas por omissão proposital, desonestidade intelectual, teológica ou fisolófica e assim se segue os enredos, os caminhos e os descaminhos na composição de nossas histórias de vidas, sendo elas felizes, tristes, abundantes, sofridas.

Serei bem objetivo e lacônico, tornando este trecho bem compacto e resumido.

O meu pai foi internado em um hospital, o qual eu nem sei o nome dele. Durante esse período, eu comecei á engraxar sapatos na Avenida Goiás. Num dia de visitas, Rildo, Ismael e eu, fomos vê–lo. Compramos caquis e laranjas descascadas por uma maquina á manivela na banca de um vendedor de frutas próxima ao hospital. Em dado momento eu disse aos meus dois irmãos, que eu iria contar ao meu pai, que eu já estava trabalhando de engraxate.

Chegamos e ficamos na sala de espera do hospital. O meu pai veio nos receber, sendo assistido por uma enfermeira. Ele estava magro e muito fraco. Ao chegar á ele, nós o abraçamos. Ao desfazer o meu abraço, eu disse á ele que nós íamos levá–lo para casa. Eis as últimas palavras que eu ouvi dele.

–Não meu filho. Eu estou tão magro, que, um vento pode me levar. Vocês não dariam conta de me segurar.

O que Pedro Simeão Ribeiro disse soou em tom jocoso aos nossos ouvidos, até rimos. Eu pensei que os meus irmãos mais velhos e fortes, o levaria para nossa casa. Acreditei que sim. Não sei ao certo que dia foi aquela nossa curta conversa. Porém, na sexta feira daquela mesma semana, eu João Batista Ribeiro Oliveira me aproximei do meu pai e acarinhei as mãos dele unidas sobre seu abdômen, dentro de um caixão de madeira envernizada ao centro da sala de um barracão também de madeira aplainada ás margens da Avenida São Paulo. Quadra 06. Lote 07. Na Vila Brasília. Num dia qualquer do mês de agosto de 1981.

Tudo isso eu vivi. Muitas coisas eu omiti, não por entender que assim seria mais coerente, e que alguns fatos não valiam á pena serem mencionados por não terem nenhum valor para mim, como as enfermidades do meu pai, que eram tantas e, eu nem sequer falava sobre elas. Não!  Como uma criança de minha idade poderia imaginar que os órgãos internos vitais de um homem polivalente em atividades profissionais para garantir a sobrevivência de uma grande e pobre família, estavam infectados pela doença transmitida por um pequeno inseto asqueroso. Como eu poderia perceber que um homem extremamente batalhador em plena atividades profissionais, –eram tantas–, estava aos poucos se sucumbindo á doença de Chagas. Como eu poderia imaginar que os flagras que eu dei em minha mãe quando ela chorava, era porque o esposo dela, meu pai, já á encorajava á seguir a vida sem a companhia dele. Como eu poderia saber que, quando eu perguntava a minha mãe o motivo do seu pranto, ela respondia que não era nada, por razões de já ter sido orientada pelo esposo á não contar para os filhos menores, que ele não chegaria vivo ao final daquele ano.

Eu não era o menino insensível á esse respeito. Eu simplesmente levava a vida difícil brincando no terreiro da minha humilde casa. Subindo em amoreiras, abacateiros e mamoeiros. Brincando de índio, armando arapucas, amarrando uma linguinha no monobloco e o no eixo do carrinho de plástico que eu ganhei de presente de natal de uma senhora, com dois meses de antecedência, só para friccionar as rodas traseiras do brinquedo para vê–lo correndo sozinho feito o do garoto rico que funcionava á controle remoto. Era assim que a pobreza não me afetava e não me deixava reclamar da sorte, e nem de encontrar um jeito carinhoso para agradecer ao meu pai por ele ter me ensinado o abecedário. –á cada lição, eu só dizia Deus te abençoe pai, e ia para o mato com o caderninho e o lápis que ele me deu, comprado na papelaria no centro da cidade quando nós voltávamos de mais um dia de trabalho. –Agora eu vou escrever os nomes dos meus irmãos, da minha mãe, do meu pai, o meu... ah, o meu é fácil...da Maurinha, dos irmãos dela, da tia Ovate, do tio Leonardo e dos filhos deles. Eu vou escrever o nome de todo mundo que eu conheço.

Era discorrendo como á criança levada da breca, que eu era, que eu não me deixava abater pela falta de atenção quando eu queria dizer aos meus irmãos que agora sim, eu já sabia ler e escrever.

Foi por ser um menino que sonhava ser alguém na vida, mas não tinha oportunidades, que eu fantasiava o meu mundo e dentro desse infinito espaço imaginário, eu era o Zico, jogava no Flamengo e milhares de pessoas me aplaudiam no estádio Maracanã. –bateu chutou, é gol, golaço de Joãozico, o craque da camisa 10. Corria de braços abertos para receber o abraço do vento. Depois, guardava a bola de meia e ia tomar banho no tanque debaixo do pé de amoras.

Foi por ser um menino que seguia os passos do meu pai o quanto eu pude, indo ás igrejas, que eu ouvia um pregador dizer que o Senhor Jesus estava na nossa vida, e que chuvas de bênçãos cairiam sobre nossas cabeças. Bastava crer e ser sincero. Eu era puro, o meu pai muito crente. O que faltou então? A sinceridade, ou a fé necessária?


Nos dias que se seguiram depois do falecimento do meu pai eu não dei continuidade a minha nova profissão. –engraxate.

Como já estava prefigurado o estado mental da minha mãe desde antes de nossa chegada á capital, ou talvez antes de passarmos á morar naquele barracão cheio de percevejos e outros insetos malditos. –ah, eu negligenciei á dar essa informação. Pois então saiba que, nós, os Ribeiro, matávamos percevejos entre as costuras dos nossos colchões, á base de pingos de velas e queimadas de lamparinas. Como se não bastasse a falta de acomodações adequadas dentro daquele cortiço, ainda tínhamos que interromper nossos ciclos de sono para ao menos reduzir aquela praga de insetos famintos por sangue fresco.

Eram tantas as dificuldades que nós enfrentamos naquela época, que ás vezes eu, hoje, com os meus quarenta e alguns anos de idade, esqueço–me de relatá–las.

Mas, eis uma pergunta: você perderia o seu tampo se preocupando com percevejos, se o que você queria era superar todas as intempéries da vida impostas por uma qualidade de vida, á qual, a única saída era: sacudir a poeira e dar a volta por cima? Convenhamos, no mês seguinte á Agosto, quando eu tive o desgosto de perder o meu pai, o meu cortador de cabelos, o meu professor... o meu porto seguro, eu completaria nove anos de idade e tinha um irmãozinho caçula, com benditos onze meses de idade e que precisava de cuidados e proteção, porque a nossa mãe não podia apenas dar o peito flácido e murcho para ele sugar dela a substância que lhe garantiria a vida, e também banhá-lo em um tanque de cimento deteriorado e quase despencando do cavalete de madeiras já podres debaixo de um pé de amoras.

Não, eu não podia deixar que a água usada para a higienização do meu irmãozinho Nelino, fosse puxada da cisterna pelas fracas mãos da minha mãe por intermédio de uma corda, uma carretilha e um balde já furado e amassado. Ah meu Deus! Era setembro de 81. Eu completaria nove anos de idade, e por vias do destino perfeitamente aceito por mim, eu tinha que ficar em minha casa em tempo integral, porque a minha mãe não conseguiria dar cabo de todas as tarefas domésticas sem o auxílio de um ajudante para cuidar do bem–estar do pequeno e último rebento da família. Nelino com pouco mais de dez meses extraía cada gota de leite produzido em intervalos de uma á duas horas. Os peitos de minha mãe já descansavam sobre o abdômen dela.

Puxando o balde dágua eu estava naquela manhã, quando a minha mãe se aproximou com o meu irmãozinho nos braços, dando á ele o peito de mamilo saliente sobre a aréola mamária.

–João Batista, vai comprar um quilo de “arrois” ali no Raimundo.

–Tá bom, espera aí. –falei pegando na alça do balde, para então despejar a água em um tambor de 200 litros á beira da cisterna.

Enxuguei as mãos no meu calçãozinho e fiz bilu, bilu para o Nelino. Ele sorriu e me abriu os braços. Mas, eu não o peguei.

–Vai logo meu fie. Eu já vô fazê o aimoço.

–Cadê o dinheiro?

–Pode í lá, o Raimundo já sabe.


Seu Raimundo, pai da Maurinha, foi até ao caixote de arroz á granel, encheu a “cuia”, despejou o arroz dentro do saquinho de papel, me entregou e foi ao balcão pegar a caderneta. Abaixo do nome Pedro, havia anotações especificando os nomes das mercadorias compradas pelo meu falecido pai. Arroz, feijão, açúcar, óleos e outros ingredientes da base alimentar. Devido a minha estupefação diante da dívida deixada pelo meu pai, seu Raimundo me olhou com pena e solidariedade.

–Tem mais de um quilo aí. –disse ele fechando a caderneta e indo ao caixote de feijão. Ele encheu outro saquinho e me entregou. –Leva o feijão também.

Saí com os alimentos e com uma dúvida na cabeça: quem pagaria aquela conta?


Já era quase meio dia, quando o meu irmão Eurípedes chegou para almoçar. Ele trabalhava em frente á nossa casa do lado da avenida numa fabrica de artefatos de cimentos. Se havia alguém dos Ribeiro que pudesse pagar aquela dívida, seria ele. O terceiro mais velho de nós. O mais responsável e sério em seus negócios. E que também já detinha certo tino para ser o arrimo de família.

Não conversamos á respeito da conta em aberto na mercearia da esquina, pelo fato de que Eurípedes era um rapaz de pouca conversa e de pouco tempo durante a semana, por razão de ele ter apenas uma hora para o almoço. Outro motivo era que ele almoçava sempre dentro do quarto que outrora pertenceu ao meu pai e a minha mãe. Na ausência eterna do meu pai, Eurípedes ocupou aquele quarto e fez dele a sua residência particular. Respeitamos a autoridade exercida por ele, pois, afinal de contas, ele era o único com moral suficiente para exercê-la.




                                     CAPÍULO II


Logo após a morte do meu pai, e eu me tornar engraxate por questões de sobrevivência, embora eu já houvesse iniciado na profissão após a internação dele. Mas á partir do início do ano 1982, engraxar sapatos no centro da cidade passou á ser para mim e para os meus irmãos a garantia da nossa sobrevivência. Consequentemente, nós ganhávamos gorjetas também para levar as compras de mantimento que as donas de casas faziam no Supermercado Cobal na esquina da Avenida Goiás com a Rua 01, até as suas residências nos edifícios e casas no Setor central.

     Um mundo novo se poria á minha frente. Nas avenidas e ruas da capital, eu descobriria que existiam pessoas em piores condições que a minha, e boa parte delas fazia do calçadão da Avenida Goiás o seu local de trabalho para garantir a sobrevivência honestamente, tal como eu e os meus irmãos. Outros viviam de esmolas, e os mais audaciosos roubavam o que viam pela frente. Estes maus elementos, eram o cheiradores de esmaltes e cola de sapateiros. Estas foram as primeiras drogas alucinógenas das quais eu ouviria falar e presenciar meninos da mesma faixa de idade que eu ás usando.

Apesar de que, eu e os meus irmãos estivéssemos ganhando muito dinheiro, trabalhando e pedindo ajuda em épocas natalinas nos sinaleiros da cidade e os outros mais velhos trabalhando formalmente, a condição de pobreza no sentido geral continuava. Quando o nosso pai vivia, ele era a coluna mestre e nos mantinham unidos, porque ele era o nosso sustentáculo e nos dava noção de que no âmbito familiar, não importava se éramos pobres, a união tinha que prevalecer. Então vivíamos de certa forma em situações precárias, porém, éramos um pelo outro. Sem o nosso pai, víamos essa estrutura ruindo á cada dia que se passava. Se antes comíamos todos da mesma comida, passamos á comprar as nossas misturas industrializadas separadamente. Ás vezes nós brigávamos um com o outro por causa de pedaço de sardinha, salame, Kituti, e até por um pouco de extrato de tomate.  Ficávamos de mau um com o outro, e também havia muita ofensa verbal e agressões físicas. Aos pouco eu fui me tornando um menino rebelde e muito brigão. Eu, Rildo e Ismael, passávamos mais tempo juntos, então por esse motivo, eu desentendia muito com os dois. Mas, com Rildo eu não brigava pelo fato de ele ser sempre muito humilde e de pouca saúde também. Na verdade, a maioria de minhas brigas com moleques no centro de Goiânia acontecia justamente porque eles queriam aproveitar da passividade dele. Quanto ao Ismael, eu sempre dava uns mogangos nele, mas era porque ele tinha pena de bater em mim. Certa vez, numa discussão entre nós dois na cozinha do barracão, por causa de um pedaço de mortadela suína, eu dei um soco no peito dele. Ele foi reclamar á minha mãe. A minha irmã Ana Rita se doeu e mandou que ele me desse uma surra pra eu parar de ser encrenqueiro. Ele ouviu o conselho dela e me deu uns tabefes. Eu o ataquei com um garfo ferindo o braço dele. Nunca mais entramos em confronto físico, mas nós ficamos muito tempo sem se falar.

O nosso irmão mais velho, tornou-se num viciado em jogos apostados. Baralho, sinuca e tudo quanto era tipo de jogo, desde que fosse valendo dinheiro. Numa manhã de domingo eu fui conferir o meu dinheiro que eu guardava na lata de marmelada dentro do colchão de molas. Não encontrei sequer um centavo. Eu já sabia que era ele o larápio. Fui cobrar dele, levei uns telequetes. Dei-lhe uma bicuda na canela. Ele correu atrás de mim. E vendo que não me pegaria correndo em volta do quintal, ele caçou algum objeto para jogar em mim. –meu Deus, quanta maldade a dele. Eu ficava me movimentando para um lado e outro debaixo do pé de abacates enquanto ele me jogava pedaços de tijolos. Por sorte, nenhum me acertou. Nessa época, eu tinha dez anos de idade.


A situação levavam as pessoas á crerem que os três filhos de dona Francisca, fossem virar trombadinhas também. Então tínhamos que seguir os princípios morais deixados á nós pelo nosso pai. Apenas essas qualidades eram o que nos diferenciariam daqueles delinquentes, e outros de pior espécie. De qualquer forma, as ruas sempre ditam as regras de comportamentos em relação á convivência com pessoas de todas as naturezas, personalidades e caráteres diferentes. Eu teria que me adaptar á estas regras. A primeira destas diretrizes que a vida nas ruas me ensinaria, era que eu tinha que me alimentar por ali mesmo. Meu local de trabalho era na quadra do relógio na Avenida Goiás, em frente á um coreto na avenida que circulava a Praça Cívica. Dias depois, eu desceria um pouco mais e ficaria entre a Rua 01 e a 02. Na hora do almoço, eu, meus irmãos e alguns colegas, íamos ganhar sobras de comida dos funcionários da prefeitura, os garis que almoçavam pontualmente ás onze horas no estacionamento da churrascaria Maranata, localizada na bifurcação da Avenida Araguaia e a Rua 07.

Com o tempo, local para eu ganhar comida foi aumentando gradativamente. Existia um restaurante na Avenida Goiás, que se chamava SEVA, Bastava eu levar uma vasilha, que, as cozinheiras me davam a minha janta, com uma condição, eu teria que ir pegar a comida pelos fundos do restaurante. Ali mesmo na viela eu devorava o rango. Quando eu não levava uma vasilha, a boia vinha num saquinho de plástico. Virava uma gororoba, mas era gostosa assim mesmo.

Um homem jovem ainda abriu um bar restaurante na contra esquina da Rua 02 com a 08. Ele era chamado de Ceará. O restaurante dele era minúsculo, e no corredor entre o balcão e a parede lateral mal passava uma pessoa de porte físico mediano. As refeições eram servidas á pratos feitos na calçada do estabelecimento. Eu fui um dos primeiros á ganhar comida daquele bom sujeito. Dois anos atrás, em 2014, eu e minha esposa almoçamos no restaurante desse grande empreendedor nordestino, mas paguei em dinheiro pela deliciosa refeição.

Nas horas dos lanches da manhã e á tarde eu ganhava do seu Jenarinho e seu Osvaldo, donos da lanchonete Só Lanche, na Avenida Goiás em frente ao meu ponto de trabalho. Batia a fome, eu atravessava a avenida e voltava comendo salgado e bebendo leite com café. Vez e outra, eu andava mais um pouco e ia parar na lanchonete Pão de queijo, na Rua 07. Na Rua 08, próximo á Rua 01 eu comia os melhores doces que eu já vi em toda a minha vida. O nome daquela fábrica de guloseimas era Confeitaria Holandesa. 

No supermercado Cobal, de vez em quando eu garantia a mistura para a janta em minha casa. Salsichas, linguições e muxibas de gados, caprichadas. A Cobal foi fechada, e o mesmo local passou á ser uma loja de calçados de um homem chamado Robério dono da loja Star Chic. Eu o conheci quando ele estacionou o automóvel dele em frente á loja, então eu perguntei á ele se ele queria que eu vigiasse o seu Escort XR3 conversível. Ele respondeu que só ia entrar na loja e sair rapidinho. Então eu emendei: – enquanto o senhor compra o tênis, eu fico olhando o seu carro. –Eu sou o dono da loja. –disse ele á mim.  

Robério sofreu alguns revezes em sua trajetória de vida, mas eu torcia por ele. Ele era um cara legal.

Quando eu queria beber garapa de cana eu ia a uma barraquinha na esquina da Avenida Goiás com a Rua 01. Moe e Coe era o nome da barraca. O nome do dono eu não me recordo mais. 

No Di Loyola lanches na Rua 02 com a Rua 08, eu comia saborosos empadões goianos, e ás vezes Arroz com fritas que era servido em bandejões. Resumindo, de fome eu não morreria. E já estava com o couro liso de tanto comer.

Eu fui aluno do mestre Garavelo, o fera da capoeira em 84 e 85. Treinávamos no mesmo palco de madeira que foi construído para receber Tancredo Neves que seria, mas não foi o presidente da república em 86. Eu estava lá, na Praça Cívica quando Tancredo, Iris Rezende e outros políticos embalavam o movimento, “Diretas já”. Eu, Mestre Garavelo, contramestre Rayovac e o professor Serginho, fizemos uma apresentação de capoeira no programa televisivo Goiânia Urgente. Sem contar que, eu ia sempre á academia Hugo Nakamura na viela entre a Rua 02 e a 03 no centro de Goiânia para ver pessoas lutando caratê.

A loja Cardealtur Transporte e Turismo pertencia a outro homem bom que me ajudava bastante, dando–me dinheiro e bilhetes com a assinatura dele para eu lanchar por conta dele na lanchonete Só Lanche. Airton Machado era o nome dele.

Para apurarmos uma graninha extra nos finais de anos, íamos para os sinaleiros com uma caixa de sapatos embrulhada com papel de presente e com um furinho no meio. Pedíamos que os motoristas colaborassem com o nosso natal. Eu imagino que o cantor Léo Jaime compôs a música Nada mudou, inspirado em mim, meus irmãos e amigos. ♪Crianças pedem nas janelas dos carros, até nas noites de natal.

O meu cunhado Nilson me levou ao estádio Serra Dourada, para assistirmos o jogo entre Goiás e Goiânia. No caminho ele me falou sobre o Jogador Bill, que ele era bom jogador, mas o Goiás iria ganhar do Goiânia. Eu não me lembro de qual foi o placar daquele jogo. Mas de um lance eu me lembro bem. No meio do campo, um jogador do Goiás deu uma entrada faltosa no jogador Bill. Bill não abandonou a partida, mas eu me lembre de que ele não fez nenhum gol naquele jogo. Passei á torcer pelo Vila nova. A minha vibração deu sorte. Tigrão foi campeão naquele ano em cima do Goiás. Tempos depois eu voltaria ao serra Dourada, apenas para ganhar presentes de natal.

Trinta anos depois daquele campeonato de 82, eu seria o cabeleireiro que raspava a cabeça do ex-jogador Bill. Em uma ida dele ao meu salão ele me contou que ele já havia jogado em outros times de outros países, mas eu não me lembro de quais eram esses times. Disse-me também, que um filho dele estava na Espanha. Numa outra e última ida dele ao meu salão, ele estava triste e muito abatido porque acabava de vir do hospital onde a esposa dele estava internada por causa de um câncer. Ele temia que ela fosse morrer. Dei uma força á ele usando palavras de ânimo. Porém, aquela seria a última vez que eu raspava o cabelo dele. Ele foi atropelado na BR 153 á menos de um quilômetro da casa dele e morreu na malha asfáltica da BR 153.


Vale destacar João Cambão e sua turma da pesada. Todo mundo tinha medo daqueles caras. Eles só aprontavam em turmas, e com mulheres, mutilando partes de seus corpos com ferramentas como alicate. Sozinhos eram caras comuns. Eu conhecia alguns deles pelos nomes e por já ter até conversado com eles.  JC teve vida curta e foi assassinado na noite do seu aniversário. Um dos tiros acertou o pescoço dele. Na segunda feira, ele estampava a primeira página do Jornal.

Numa festa próximo á minha casa, mataram o Pesada á facadas. Ele era um membro da turma do JC. Eu havia acabado de sair de lá. Na semana seguinte, deram um tiro na perna de outro deles, que tinha o apelido de Reba. Almir vazou para São Paulo. Juninho levou um tiro na espinha e ficou paralítico.

Conheci Nilo Gato. Mãozinha do Parque Real. Depois eu conheceria a turma do Canecão o Daniel Bonnie das Ss do Setor Pedro. Ralf, Ratinho, Juninho. Estes sim eram muito doidos. Mas foram gente fina comigo, quando eu o conheci. Bugão da espada, Frangão, Valdomiro e a patota do Parque Santa Cruz. Os carecas do Parque Amazônia. Ulcimar, Capanga, Calango, Nonô, Sebastian e outros caras perigosos da Vila Mutirão.

Da minha infância, até a minha pré-adolescência, eu conheci todas essas pessoas, vivi no tempo deles, estive em lugares que eles estavam, conversamos e com alguns deles eu até andei lado á lado. Em minha pré-adolescência eu já me considerava um rapaz de vinte. Minha personalidade ia de formando através de minhas experiências vividas. 


Nas ruas da cidade, a gente botava moral, ou virava alvo fácil para os maloqueiros. Eu cansei de bater e apanhar daqueles pilantras, mas eu não “afinava” para nenhum deles. 

Numa tarde da sexta feira, eu engraxava nos pares da cidade. Eram já quase seis horas da tarde quando um maloqueiro me agarrou por trás e enquanto ele me enforcava, o outro arrancava o meu dinheiro que estava amarrado pelo cordão do meu short.  Quando o que me enforcava me soltou eu segurei na gola da camisa do que me tirou o meu dinheiro, e esmurrei a cara dele até quebrar os dentes da frente da boca dele. O outro correu e foi chamar o resto da patota. Era a turma do Donizete, o Babão. Seis pivetes. Todos eles cheiradores de cola e ladrões. Eu apanhei bastante naquela tarde.


Conheci pessoas importantes e ricas. Entre elas, Jaime Câmera, o dono das organizações Jaime Câmera. Ele morava no décimo quinto andar de um edifício na Rua 02. Era um bom homem que dava dinheiro á mim, meus irmãos e á todos que o esperava em frente ao prédio. Um dia, eu subi até ao apartamento dele para engraxar os sapatos dele. O curioso foi que ele me deu um dinheiro e me pediu pra eu ir á banca de jornal e comprasse um jornal O popular para ele. Então eu o perguntei: – Doutor Jaime, porque o senhor quer que eu compre o jornal que o senhor é dono dele?

–Ele sorriu e me disse: – aproveite e fique com o troco.

Fui até a banca e comprei o jornal. Levei para ele e desci de lá “buíado” de grana.

Uma vez por semana, ele ia á pés de onde ele morava até TV Anhanguera no Setor Serrinha. Eu o acompanhava. Uma vez eu sentei do lado dele no banco traseiro do Landau dele. O motorista Maurício ficou uma fera, me olhando pelo espelhinho central durante a viagem até ao prédio da TV Anhanguera. Daquele motorista, ninguém gostava, e muito menos eu. Uma vez, ele rumou o molho de chaves em minha cabeça. Ele queria ser o dono do dinheiro do patrão dele.

De vez em quando aos domingos, eu acompanhava seu Jaime Câmera até á igreja Católica na Rua 10. Foram muitas as vezes que aquele bom homem, político, empresário e jornalista ajudou a mim e aos meus irmãos. Jaime Câmera Júnior, o filho dele não se importava quando nos via ganhando dinheiro do pai dele, e nem com as minhas andanças do lado dele. Era uma boa pessoa também. 

De vez em quando eu dava uma de apreciador de obras de artes, e ia á Casa Blanca Galeria de Artes na Rua 08, que pertencia á dona Célia esposa do seu Jaime Câmera. Era interessante ver as pessoas paradas diante de uma tela, admirando aquilo que na verdade, eu particularmente não fazia ideia do grau de significância há em uma imagem inanimada pendurada na parede. Mas, lá estava eu com uma mão cofiando o queixo e a outra servindo de apoio para o cotovelo, como quem entendia á fundo de obras de artes, encafifado com a feiura da Monaliza. Eu dizia que aquele ser indefinido era uma mulher-homem com lábios de Giletes e sem sobrancelhas.

Tempos depois, eu começaria á receber uns trocados para passar tinta Nugget nos tênis brancos e de couro do jogador Cacau do Goiás Esporte Clube. Ele morava no sétimo andar de um edifício do lado do seu Jaime Câmera na Rua 02. Cacau tinha uma moto DT 180 cilindradas. Uma vez, eu perguntei á ele se ele queria que eu engraxasse as rodas da moto dele. Ele disse: – você ficou maluco?

Aí eu disse: – então me dá um trocado. Ele apalpou os bolsos da calça Jeans e não encontrou nem a carteira. Dessa vez ele passou batido. E eu também.

Tempos depois, eu vigiava o carro importado de outro jogador do Goiás. Ele era goleiro e se chamava Edson. Um dia ele estacionou o carro em frente á Cardealtur Transporte e Turismo, e entrou naquela empresa de passagens aérea. Eu o conhecia, e por isso eu me encostei-me ao carro dele. O alarme disparou, ele foi conferir e viu que era eu que estava ali. Então, ele desligou o alarme e falou: – Ah, é você. Fique de olho aí. Quando ele regressou, uma nota de um barão saiu do bolso dele e entrou no meu.

Outro jogador que eu conheci, foi o Gilson Jader. Ele tinha uma CB 400. Uma vez eu estava pedindo colaboração para o meu natal no sinaleiro, e, ele estava parado com sua moto no sinal fechado. Quando eu o abordei para ganhar um gorjeta, ele tentou tirar a carteira, mas o sinal abriu. Ele dobrou a esquina, parou e me chamou.

Tirou uma grana da carteira, colocou dentro da minha caixinha e me disse: – Feliz natal pra você. –Depois seguiu. Eu não sei quanto foi que ele me deu, pois, a caixinha já estava abarrotada de moedas e notas.


O vitiligo deixou minhas sobrancelhas manchadas de branco. Isso me afetou muito eu passei por uma fase de grande deprimência por causa desse fato. Certo dia eu engraxava os sapatos de um rapaz, e ele me disse que eu não iria conseguir me casar porque aquelas manchas iam espalhar pelo meu rosto e me deixar muito feio. Por sorte naquela mesma semana, um casal de irmãos adolescentes que moravam em um edifício na Avenida Goiás com a Rua 02 chegou a mim no calçadão e disse pra eu ir ao prédio ao meio dia daquele dia de sábado em algum mês do ano 1982, para eu pegar com eles uma pomada Viticromin. No horário combinado eu cheguei ao local. Recebi deles o remédio, o usei nas partes afetadas, e antes de a pomadinha acabar, as minhas sobrancelhas já estavam com o mesmo tom e cor de minha pele normal.

Comecei á praticar pequenos delitos. Um deles era pescar no Bosque dos Buritis. Outro era roubar coco nas residências dos ricos. Tudo por diversão e aventura. Eu cansei de ver objetos de valor nas garagens das casas, mas eu não os roubava, afinal de contas, eu tinha princípios morais cristãos. Mas quem foi que disse que algumas infrações cometidas na minha infância era motivo para eu me tornar um excomungado indigno do perdão de Deus?


O governador eleito Iris Rezende, pautou, implantou e concluiu um programa de habitação favorecendo as famílias mais pobres da grande Goiânia. Mil casas populares foram feitas em um único dia. Esse feito o lançou ao rol dos políticos mais notórios do Brasil. E também levaria a família Ribeiro á morar em uma daquelas casas pré–moldadas, mas por opção diante da necessidade a minha mãe cedeu a casa que ela havia ganhado do governador Iris Rezende, á minha irmã Airta, seu esposo Nilson e suas duas filhas Katiuscia e Karise.

Foi quando eu descobri que a nossa pobreza era ainda pior do que eu imaginava. O barraco de tábua em que nós morávamos não pertencia á nós. O gesto de solidariedade da minha mãe para com a filha mais velha doando a casa á ela, era uma forma de reconhecimento pelo o que um senhor de nome Osvaldo fizera com o meu pai ao ceder á ele o barracão madeiroso em que nós vivíamos na Vila Brasília.

O comandante Iris Rezende também aderiu ao movimento Diretas já! Em 85 foi construído um enorme palanque de madeira na Praça Cívica para receber a presença de Tancredo Neves e seus aliados. Eu estava lá e os meus olhos contemplavam a figura de um homem muito magro. Em toda a minha vida eu nunca havia visto um cidadão tão magro daquele jeito. Eu ria muito e o comparava com o meu colega caveirinha.  Somente depois da eleição presidencial foi que eu fiquei sabendo que o fininho era o vice-presidente Marcos Maciel.

Depois de o palco ter sido usado pelos políticos, nós engraxates assumimos o controle sobre ele. Foi quando Garavelo, mestre de capoeira, passou á nos ensinar a arte do mestre Zumbi dos palmares em cima daquele palco que era largo, extenso e coberto. Quem visse o mestre Garavelo pela primeira vez imaginaria que ele era lutador de Sumô. Ele era baiano, branco e gordo, mas também era muito ágil no jogo do falcão. Através dele eu conheci os mestres Canarinho, passarinho e Cão. Um destes praticava outra modalidade de luta, mas este também ia assistir a gente treinar e gingar capoeira em grandes rodas que se formavam na Praça Cívica.

Também tive colegas engraxates que eram “viadinhos”, e gays fregueses de engraxadas. Homossexuais pobres eram chamados de viados. Ricos eram chamados de gays. 

Um indivíduo, o qual eu não pude descobrir qual era a dele, certa vez me assediou me convidando para ir para o banheiro de um bar. Ele me ofereceu dez cruzeiros por cinco minutos de sacanagem. Na verdade eu não entendi se ele queria que eu fosse ser o violador ou o violado. Certo é que eu o mandei ir tomar no órgão excretor dele. Enquanto eu engraxava o sapato dele, ele ainda insistia com a proposta indecente. Até que eu chorei, e na raiva, eu me levantei antes de terminar a empreita de engraxar os sapatos dele e, mandei a quina da minha caixa de graxa na canela dele, e fiz um estardalhaço. Era sexta feira á noite e o bar estava lotado. Aquele filho da mãe passou o maior vexame da vida dele. As pessoas ali me viram chorando e xingando o sem vergonha, de tarado, safado e o escambal. O pilantra foi embora sem pagar a conta, de tão hostilizado verbalmente que ele foi pela turma do boteco.

Mas certo dia já no período da tarde, um homem bem vistoso e aparentemente á cima de qualquer suspeita, convidou três colegas meus, ambos, mais velhos do que eu, á irem á algum lugar para buscar algumas roupas e calçados usados. Na oportunidade, ele disse pra que eu fosse também. Entramos nós quatro engraxates mais aquele homem dentro de um Fiat 147 que pertencia á ele. O trajeto que fizemos eu não conhecia bem, mas me lembro de que nós passamos pelo estádio Serra dourada e seguimos até á um matagal bem fechado de forma á não permitir que a gente visse dali o estádio de futebol, mas estávamos ali por perto. A densidade demográfica daquela região era um habitante por mil equitares de mato.

Certo é que aquele homem me mandou ficar dentro do carro parado em local logo á frente de um cruzamento de duas ruas de terra pura e muito mato alto. –se aparecer alguém, você dá uma buzinada. –Ele me recomendou e em seguida entrou no matagal com os meus três amigos. Esperei por mais ou menos meia hora á quarenta minutos. Quando os quatro voltaram eu quis saber onde estavam os sapatos e as roupas. A resposta dada pelo sujeito foi que alguém havia descoberto o esconderijo e surrupiou os objetos. O carro cortou caminho de volta, e nós desembarcamos no mesmo local em que havíamos embarcado no centro. Recebi do homem um dinheiro o qual eu não poderia hoje dar como certa a quantia que á mim ele deu naquele já começo de noite. Os meus três colegas estavam alegres e satisfeitos também, mas eu não entendia o porquê da alegria a satisfação.

Dias foram passando e aquele mesmo homem estava indo sempre no nosso ponto de trabalho para levar os meus colegas, e eu de contra peso, á lugares diferentes da cidade. Eu era bem inocente e ainda não desconfiava de nada, pois o importante era que ele me desse uma gorjeta pra eu ficar dentro do carro dele e apertar a buzina se aparecesse alguém por ali. Até que um dia, eu e um colega meu, de dezessete anos, estávamos procurando fios de cobre, alumínio ou qualquer outro objeto de valor que pudéssemos achar nos entulhos do prédio interditado por problema de declínio na Avenida Goiás. Foi depois da hora do almoço, porque eu e o meu amigo havíamos ido á churrascaria Maranata para pegar duas marmitex e depois de comermos, voltamos á viela e entramos nos fundos do prédio abandonado. Então aquele mesmo homem chegou com uma ânsia animalesca dizendo naquele momento, que ele era louco pelo meu colega e foi logo baixando a calça dele e a bermuda do meu colega, e me mandou ficar vigiando para os dois não serem flagrados fazendo sexo em plena luz do dia.

Tinha um Madeirite isolando o acesso das pessoas aos fundos do edifício. Mas, o isolamento já havia sido o rompido, mas ficara o madeirite no mesmo lugar. Eu fiquei entre o madeirite e a parede para dar um sinal, se alguém viesse pelo corredor longo da porta de entrada do prédio e saída pelos fundos. Curioso eu olhava os dois praticando sexo. O “homem” dizia que queria se engravidar do meu amigo. Eu nunca me esqueço daquela pornografia esquisita e da conversa daquele indivíduo dizendo: – ai, eu te amo, vai, vai, eu quero engravidar de um filho seu, faz um filho em mim.  Até que em um momento, depois de tanta demora, pois eles começaram com sexo oral. –Eu disse: – anda logo, senão eu vou embora e deixo “cês” dois aí. –Mas os dois, nem me ouviram. Eu não imaginava que aquele sujeito fosse gay e capaz de protagonizar com o meu colega aquela cena tão grotesca na minha frente.

Dias depois eu conheci um gay assumido que se chamava Maurício. Ele era o homossexual de maior notoriedade em Goiânia. Um dia, ele não me notou atravessando a avenida e quase passou por cima de mim com a sua bicicleta Caloi de dez marchas. Quando ele passava por mim, – sempre pedalando–, me dava tchauzinho movimentando as pontas dos dedos. Costas envergada, bunda empinada e, seguindo em frente. Oh bichinha que gostava de pedalar! Eu nunca o vi parado em um lugar e nem agarrado á outro homem. Ele era um travesti loiro e gente fina.

Negro Ná, – esse era hétero –, e era um grande camarada. Éramos “chegados” também. De vez em quando a gente trocava umas ideias na feira hippie que era realizada na Praça Cívica aos domingos. Ele me chamava de maninho.

Somente nos anos noventa foi que eu descobriria que ele era o astro maior do carnaval de Goiânia. O cara era rodeado de mulheres bonitas, e até já distribuía autógrafo para os fãs, nós dois conversamos por algumas vezes sentados no degrau do monumento Três raças em frente ao Palácio das esmeraldas, sede do governador, e eu não fazia ideia do grau de importância do grã-persona. Tem cabimento uma coisa dessas? Bom, eu era criança ainda.

Roberto, campeão de Motocross nos anos 80, me deixava almoçar na cozinha da loja de moto do Pai dele. O nome da loja era Mil Yamaha, e ficava situada na Rua 02 no centro. Ao lado da Rodart papelaria. Eu e Mirone o meu amigo de todas as horas, lustramos as centenas de troféus dele em um depósito de outra loja em Campinas.

Por falar em Mirone Francisco Fonseca, ele foi trabalhar na Poligráfica na Vila Brasília entre os anos 83 á 84 se não me falha a memória. Éramos tão amigos que, eu levava o almoço para ele no trabalho dele. Ele era branco e bom de briga. Quanto a mim, resta dizer que nós dois, éramos como irmãos. –jamais brigamos um contra o outro... porém, damos e recebemos muitas bordoadas pelos bairros de Goiânia e Aparecida.

      Embora eu estivesse em condições de menino de rua junto com os demais colegas de profissão, eu não dormia na rua. Portanto, eu havia adentrado á um mundo que teria que ser por mim desbravado. Como o único homem o qual me poderia disciplinar já havia morrido, a minha conduta á partir dali seria baseada na noção que eu tinha de que cada cabeça é seu próprio guia.



                                                                                *


Falar de uma época, – especificamente anos 80–, e não mencionar Michael Jackson seria o mesmo que um velho escritor austríaco escrevesse um livro de memórias dos anos 30 e 40 e não relatasse sobre a segunda guerra mundial com destaque para Adolf Hitler. Desde 83, Michael havia mudado o gênero musical dançante individualmente, de discoteca para pop music. Em Goiânia e arredores só se via rapazes vestidos semelhantes á ele. Foi uma verdadeira revolução no vestuário e no comportamento da juventude e até de muitos homens já maduros. Tudo que eu disser sobre Michael Jackson será simplesmente dispensável, pois aquele “neguinho” dos anos 80 dispensava comentário.

Eu era fã do Michael Jackson, por isso eu não fui ao Serra dourada para ver o show do Grupo Menudo, mas eu estive no meio da “meninada” em frente ao Umuarama hotel esperando para ver os Porto–riquenhos. O único que teve consideração com as fãs, – não comigo, que estava ali por acaso, –foi o Rick. Ele foi á janela do segundo andar e deu um tchauzinho Xôxo. –aquele tchauzinho me revelava coisas que futuramente seriam descoberta. Se eu não me engano, isso aconteceu em 85 num dia de sábado.

Mas, eu tenho algo particular á relatar sobre a onda Michael. Em 83 ou 84 eu, meus dois irmãos, Rildo e Ismael, mais alguns amigos e milhares de outros fãs fomos assistir á um concurso de dança no ginásio Rio vermelho em Goiânia. Era a época do Breack dance. Aquela dança que a galera dançava se quebrando, fazendo cobrinha no piso e espalmando as mãos em uma vitrine imaginária. Mas, quem ganhou o concurso naquela noite? Banana, o sósia do Michael Jackson. O cara arrasou dançando Billy Jean com direito á moonwalk e rodadinhas, parando nas pontas dos dedos dos pés.

Uma semana depois daquele show, eu estava em uma festa na casa dos irmãos metralhas. Fui inventar de fazer o moonwalk. Na segunda arrastada de pé, o esquerdo travou em uma saliência no piso e, eu me desequilibrei e saí tropeçando no pessoal que formava a roda. Eu nunca passei tanta vergonha como a daquela tentativa frustrada de bancar o MJ. –vazei daquela festa. Mas, Michael Jackson continuaria sendo para mim, o maior de todos os artistas da música, dança e ícone de uma geração. As únicas danças que eu sabia dançar era música lenta e xote do manhoso. Já era o suficiente para eu me dar bem com algumas garotas. O Funk eu aprenderia posteriormente.

Em 84 eu conheci Cláudia. –como esquecer aquela garota? Tudo aconteceu quando eu cheguei á festa na casa do “Boquinha” –ele tinha a boca puxada para o lado direito e os olhos espremidos. Parecia estar sempre rindo, mas pronto para moer na porrada, qualquer um que ousasse zombar dele. Fã número um de Bruce Lee e bom de briga tanto quanto o rei das artes marciais.

Pois bem, Cláudia dançava com um garoto. Quando eu á olhei ela me olhou e sorriu meio cúmplice com a mão sobre o ombro do moleque e com o queixo dela sobre a mão dela. Saí da casa e fui até á um carro parado na rua. Conferi o meu visual. Cabelos batidos caindo na testa e com as laterais em corte curto. O Biotômico e a emulsão de Scott deixaram–me bem nutrido e saradinho. Doze anos, um metro e cinquenta. O meu tórax com a região peitoral bem definida fazia que caísse bem em mim a camisa gola–polo azul que eu usava naquela noite.

Ajeitei a calça Jeans na cintura, apertei o cadarço do tênis Campeão botinha branco, esfreguei as mãos e disse á mim mesmo: – é hoje.

Voltei para a sala. Meu coração batia á mil por hora. A música que ela dançava era Let it be, do John Lennon. Parecia não acabar mais. Até que, Endless love começou á tocar. Foi o prazo de ela soltar o moleque... Eu a convidei para dançar.

Dançamos três músicas seguidas sem trocar uma palavra. Paramos porque “boquinha” quis ouvir o som de um helicóptero e colocou Pink Floyd para rodar. –The Wall.  A partir daquela noite eu sentiria o meu coração palpitar todas as vezes que eu chegava á uma festa onde Cláudia estava. Foi paixão infantil, mas que duraria por um longo tempo. Nosso relacionamento era quase mudo. Nunca trocamos uma palavra á mais do que, – qual é o seu nome, onde você mora e quantos anos você tem, onde você estuda. –ela estudava, eu dizia que havia parado de estudar. –mentiroso, o menino!

Mas eu estudava os meus personagens de histórias em quadrinhos. Nessa época eu já sonhava ser um escritor. Oseias era o dono de uma banca de revistas no ponto final da Vila Brasília. Na banca dele eu comprava muitos gibis. Certo dia ele me perguntou se eu estudava, respondi que não. Então ele me disse assim: – você engraxou os sapatos do homem que pode te ajudar. –Eu não dei muita atenção á conversa dele porque eu queria era ler os gibis que eu havia acabado de comprar dele.

Mas por Cláudia, eu decidi que iria estudar e procurei ajuda com um bom homem de nome professor Alcides. Eu já o conhecia e já havia engraxado os sapatos dele na Panificadora Mineira que pertencia á outro bom sujeito, Saulo era o nome deste. Eu queria estudar no colégio Alfredo Nasser, mas devido ao fato de que eu estaria iniciando, o professor Alcides me encaminhou para o colégio Ernesto Camargo da Fonseca, abaixo do Templo Mãos postas. Coincidência ou não, Professor Alcides deu um jeito de encontrar uma vaga para mim no mesmo colégio que Cláudia estudava. Consegui me matricular no Colégio Ernesto Camargo da Fonseca. Professor Alcides era o homem o qual Oseias teria me falado sobre dias atrás. Anos depois eu descobriria que Alcides era o dono do Colégio Alfredo Nasser que viria á ser a Faculdade Unifan.

Cláudia estava na segunda série, eu comecei no Pré. Por uns dois meses, eu frequentei a escola, deixando professoras surpresas com a minha capacidade para a leitura e escrita. Logo as aulas seriam interrompidas. Muitas pessoas de outros estados do Brasil estavam vindo para o estado de Goiás tendo como destino específico á grande Goiânia e com a chegada massiva destes imigrantes aumentou de modo expressivo o número de alunos matriculados na rede pública estadual e municipal de ensino. E o Baixo número de escolas existente em Goiânia e na grande Goiânia ocasionou uma superlotação nas salas de aulas. O baixo efetivo do corpo docente fez com que a secretaria de educação fizesse uma reformulação da carga horária dos professores. E assim á verba extra que os professores recebiam do governo como forma de abono salarial, com o aumento das horas aulas passou se a ser uma espécie de complemento do piso salarial da categoria. Com isso os professores se sentiam lesados por ter seus salários defasados. –decorei bem a fala do sindicalista. –Eu também entoava junto com os manifestantes pela á Avenida Goiás até á Praça Cívica: O povo unido jamais será vencido. Caminhando e cantando, e seguindo a canção... e por aí vai. Quando acabou a greve, eu não quis regressar á escola. Uma aluna levou a professora até á minha casa para ela pedir a minha mãe que me convencesse á voltar á estudar, com a promessa de que ela me passaria para o segundo ano direto. Beleza. Aceitei a proposta. Eu tinha a oportunidade de estudar junto com a Cláudia amor meu. A professora cumpriu o que ela havia me prometido. No ano seguinte, 85, eu estudava na segunda série. Acontece que, a Cláudia também passou de ano indo para a terceira série. Eu fiquei bolado. Nas horas dos recreios, Cláudia me apontava para as amigas dela, mas nunca se aproximava de mim. Eu ficava sobremaneira contrariado, pensando que ela estivesse tirando uma com a minha cara. Certo dia, um aluno da minha sala me disse que ele havia ficado sabendo que eu gostava dela. Mas, que, ela não gostava de mim. Dias depois, eu parei de estudar, mas foi por causa da greve dos professores. Parece mentira, mas era verdade. Houve novos protestos. Sindicâncias foram feitas, e foi indo, foi indo, até que a greve acabou e... a minha paixão por Cláudia também se foi. Será? Apesar de tudo ou de nada, eu posso dizer que Cláudia foi o meu primeiro amor. E, eu sentia que ela só esperava uma iniciativa da minha parte. Com nenhum outro menino ela dançava mais do que uma música. Apenas comigo ela se deixava levar na onda dos rostinhos colados, até que a música pop de Michael Jackson, Holling Stone, Queen e outras agitadas, nos faziam se separar. Nunca nos beijamos, nem saímos de mãos dadas ao término de uma dança. De qualquer forma, era coisa de pele, classe social e afeição ao primeiro olhar. Cláudia, a moreninha de beleza brejeira, simplória, mas que figurava no mesmo nível de pobreza que eu, embora, ela morasse em um barracão de alvenaria com vitrôs basculantes. –eu ainda era mais pobre que ela.

O problema era que eu não conseguia dizer algo para conquistar um brôto. –meninas eram chamadas de brôtos nos anos 80. O fato de eu ser engraxate me deixava com complexo de inferioridade em relação á todas as pessoas. A experiência malograda que eu tive com Cláudia, ainda que nada ficasse esclarecido sobre o que o meu ex–colega de escola havia me dito sobre ela não gostar de mim. Mesmo assim, eu tinha medo de tentar conquistar uma garota.

Resolvi que teria de mudar de profissão, e fui procurar trabalho de jardineiro nas mansões do Setor Sul, Marista e Bueno.

Certo dia eu cruzava a Avenida T–10 com outra avenida á qual eu não sei se é a T–1 ou a T–4, pois uma é continuação da outra. Quando no meio do cruzamento eu ouvi o meu amigo Mim me dizendo: – volte para a calçada. –Eu não teimei e voltei. Fiquei em pé sobre o meio fio e esperei por alguns segundos. De repente, Mim me fez uma pergunta: se você arrumar emprego agora, você agradece á Deus na igreja? Eu respondi de pronto, que agradeceria. Tinha uma panificadora na esquina das avenidas. Quando eu olhei para o balcão, uma mulher e um homem falavam de entre eles, e era sobre o flagra que eles me deram ao me ouvir falando sozinho. Fui até á eles e perguntei se os dois não sabiam de alguém que precisasse de um jardineiro. Antes de me darem a resposta, a mulher me perguntou com quem era que eu estava conversando na beira da pista. Eu disse que era com ninguém.

–Eu hem! Você parece maluco. –disse o homem. Passou a flanela no balcão e saiu.

A mulher, apenas meneou a cabeça e foi ajeitar alguns doces na vitrina. Eu voltou para a calçada e fiquei sem saber para onde eu iria. Quando olhei para a minha direita, eu vi um sobrado. O sobrado distava á uns dez metros da grade de ferros torcidos. Para chegar á porta de entrada do biplex, uma passarela de degraus de um por um metro de largura e comprimento, com superfície de cerâmica em acabamento rústico, acessava as pessoas até á varanda onde ficava a porta de entrada. À mansão não possuía hall de entrada, apenas á entrada, para sobrar mais espaço suficiente para acomodar os dois carros e mais um micro–ônibus atravessado. Caso o proprietário quisesse adquirir um. As janelas da parte de cima no sobrado eram de esquadrias e alumínio na parte externa e blindex do lado interno. Uma porta com largura de um metro e vinte padronizando com o mesmo material das janelas, dava acesso á uma sacada descoberta para receber á luz do sol dá manhã. Entre o sobrado e o muro lateral do lado direito de quem chega á residência, Sobrava um espaço de uns oito metros de largura por uns quinze de comprimento, indo do portão de entrada até ao portão de acesso ao fundo do quintal. Diante de todo esse luxo residencial estava eu, desejando que os proprietários me contratassem para trabalhar ali. Com fé apertei a campainha. –vai dar certo. –disse Mim á mim. Quem atendeu o interfone foi a própria dona da casa. Eu disse á ela que eu procurava emprego de jardineiro. Ela desligou o interfone e veio me atender no portão, me mandando entrar. Combinamos os afazeres e o preço pelo meu trabalho. Convém–me relatar que, eu trabalhei naquela mansão, cuidando do jardim, dos cachorros Agus e Kelly, levando varanda, garagem, aspirando os carpetes dos quartos no segundo piso, asseando as suítes e limpando a piscina por um salário razoável. Se havia algo que eu precisava experimentar e conhecer até a minha pré–adolescência, era o convívio direto com pessoas ricas e bondosas. Nair Almeida Avelar com seu esposo Mário Lúcio Avelar, seus filhos Mario Lúcio, Carlos Alberto, Paulo Henrique e Flávio, me tratavam como á um membro da família Avelar. Durante o tempo em que eu convivi com essas pessoas ricas, eu adquiri experiência de vida que moldaria o meu caráter moral, e também o meus pontos de vista em relação á pessoas de diferentes classes sociais. Algumas situações envolvendo á mim e os filhos do casal Almeida Avelar ficaram vividamente marcadas em minha memória.

Certa manhã eu higienizava o carpete do quarto do Paulo Henrique e encontrei um pacotinho com pólvora debaixo da cama confortável e espaçosa que ele dormia. Quando ele chegou, eu o perguntei para o que servia aquela pólvora. Ele me respondeu que ele fabricava bombas para explosões. Eu tinha intimidade com ele e, por isso demonstrei duvidar da resposta dele. Então ele me contou um segredo e pediu para que eu não saísse espalhando aos membros da família dele e nem á ninguém. Paulo Henrique Aguiar, universitário, aos dezessete anos de idade, me contou que ele havia detonado uma bomba no banheiro do vestiário da faculdade que ele, nela estudava.  Ele me chamava para ouvir música do grupo Scorpions na sala de áudio e vídeo da mansão dele e traduzia as letras em tempo simultâneo, falava inglês fluentemente e encarava isso com naturalidade. Eu achava que eu pudesse impressionar as pessoas e fazer elas me admirarem, falando um português básico do básico do básico popular, e quando recebia críticas dos meus mais próximos.

O sonho de Mário Lúcio Avelar Filho era ser advogado atuante no meio político nacional. Em 85 ele já fazia faculdade de direito. Era fã de Tancredo Neves e chorou a morte dele, sem querer tomar o café da manhã do dia seguinte. Eu tentei consolá-lo depois de eu ter engolido o meu pedaço de pão, do lado dele na mesa. –chora não Mário Lucio, meu pai também morreu quando eu tinha oito anos. Lembro–me de que ele então me respondeu: – as pessoas boas morrem, e as más vão ficando. E enxugou os olhos.

Carlos Alberto Aguiar. Um rapaz de dezenove Anos, calado e de aspecto triste. Vivia trancado em seu quarto, deitado na cama olhando para o teto. –Carlos Alberto, por que você é tão quieto e calado desse jeito? –eu o perguntei. –Ah, Joãozinho, a vida é assim. A gente é o que tem que ser. Não adianta tentar mudar. –ele respondeu e fechou os olhos, ainda mais entristecido.

Com Flávio, o filho caçula do casal Almeida Aguiar, eu brincava de vôlei e outras brincadeira nas minhas horas vagas. Um dia ele me chamou para brincar de vôlei com as suas amigas ricas. Brincamos naquele dia e em outros dias. Em outra ocasião eu recusei o convite, porque na última vez, uma das moças mais adulta, branca de cor uniforme, me escolheu para ser o parceiro dela e de sua amiga. –o Joãozinho é da minha equipe. Passa para cá neguinho bom de vôlei. –e me puxou pelo braço.

Mas, como diz o ditado: nada dura para sempre. Em 1986 eu tive parar de trabalhar para essa família por razão da nossa mudança para um bairro mais distante do Setor Bueno. Até hoje eu agradeço á Deus por ele ter me preparado aquele emprego e quero um dia poder reencontrar aquelas pessoas tão maravilhosas. Inclusive a empregada Joseilda.










                                                                    CAPÍTULO III



À partir do ano 86 ocorreriam mudanças consideráveis em minha vida. Meu irmão Eurípedes havia comprado um lote em um setor mais próximo do centro de Aparecida de Goiânia e bem mais distante do centro da capital. Ele e eu começamos á construir uma casa neste terreno. Trabalhei de servente de pedreiro para ele até o fim da construção. Em agosto do corrente ano, mudamos para a nova residência. Então, Eurípedes, minha mãe, Nelino e eu morávamos em uma casa de alvenaria com chuveiro elétrico, geladeira, enfim, confortável e esteticamente mais agradável aos olhos. O que não me agradava era o setor no modo geral. Poucos moradores, muito mato e ruas que mais se pareciam “trieiros” de roças. Tudo que eu queria era voltar para a Vila Brasília. Lá estavam os meus amigos, minha tia Ovate, seus filhos que eram como irmãos para mim. –inclusive, o mais velho dele, o Sérgio fez um filho na minha irmã Ana. Luís Carlos é o nome do meu sobrinho. Mas, Sérgio assumiu a paternidade e o amor que ele tinha por Ana Rita e ajuntou os trapos com ela. (Amasiaram–se.)

Sob a tutela do Eurípedes, eu devia ficar em casa para ajudar a minha mãe á cuidar dos afazeres domésticos e do Nelino que tinha apenas seis anos de idade.

Com o passar do tempo eu fui conseguindo me adaptar. Conheci as minhas primeiras amigas, Aninha, Ângela e Kelly. Elas eram crentes da mesma igreja da minha mãe e Eurípedes. Na casa delas eram realizados cultos aos domingos ás quatorze horas, nos quais eu passei á frequentar. Então, estreitei mais a amizade com a parentela delas, que era formada por seus avós, tios e primas. Pessoas maravilhosas.

Dias depois, eu conheceria Reinaldo cabeça, e Eduardo secão. Ambos, irmãos biológicos de pai e mãe. Romualdo era o irmão mais velho dos dois, mas filho apenas da mesma mãe.

O tempo que eu passava em casa, só não era monótono porque eu inventava um monte de brincadeiras de adultos para brincar com o cabeça, o secão e o Nelino. Uma delas era produzir filmes de pancadaria. –eu era o artista, o produtor e o contra regra da sequência. Nelino era o meu coadjuvante. Cabeção e secão eram os bandidos, e consequentemente os nossos sacos de pancadas. Os dois queriam figurar como os mocinhos dos filmes, mas somente eu tinha gabarito para o tal papel.

Cá entre nós. Eu tinha ou não motivos de sobra para ser o ator bom de briga de uma porcaria de um curta, mais muito curta metragem de um filmeco de ação produzido apenas para que eu pudesse sair do marasmo de um setorzinho com pouco mais de algumas dezenas de moradores?

Até que os dois irmãos resolveram mudar o Gênero cinematográfico e arrumaram duas amiguinhas para contracenarem com eles. Então, eu operava a garrafa–câmera e filmava os quatro em cenas de abraços e selinhos na boca. –ora, ora, como eu já disse, eu era um garoto de quase quatorze anos de idade, com ideias evoluídas, e não iria dar uma de pedófilo para contracenar com menininhas de dez, doze anos. Parei com a profissão de cinegrafista.

Passei á ir vender lanches em uma firma com a dona Neuza mãe dos dois atores mirins e, para frente feito capô de Fuscas.

A saúde da minha mãe começou á ter melhoras. Ela ia ganhando peso á cada dia, e, isso me alegrava muito. Sofremos muito na Vila Brasília. Muitas coisas eu preferi não mencionar, mas tudo que passamos servir–me há de complemento para o compêndio da minha história.

Na medida em que os dias foram passando naquele meu novo endereço no decorrente ano, eu ainda trazia comigo a insatisfação por ter me mudado para um lugar onde o progresso á meu ver andava montado á carroça puxada por uma mula manca e empacadora.  A diferença entre Vila Brasília e Setor Expansul era exorbitante em todos os sentidos. Digo em todos os sentidos, para não ter que discorrer sobre tamanha discrepância em relação aos dois bairros. Se na vila eu tinha meia quadra de matagal para as minhas brincadeiras de criança até o ano 81, no Expansul em 86 eu tinha e teria uma Savana africana pra eu fazer safaris por muitos anos vindouros.

O próprio Setor Central da cidade Aparecida usava de elementos da agropecuária para ornar a Praça da Matriz. A praça parecia um presépio com carros de bois e outros objetos do meio rural.  A avenida paralela á BR 153 tinha em sua extensão algumas engrenagens de máquinas agrícolas como monumentos de enfeites paisagísticos.   Oh lugarzinho mais ou menos, sô!

Como eu sentia falta da panificadora Mineira no ponto final da Vila Brasília. O supermercado Rubão. A banca de revistas do Oseias. Das feiras aos domingos de manhã na Avenida São Paulo.

Para mim, ter morado na Vila Brasília, e vir parar no Expansul, significava o mesmo que ter me mudado de Nova York para um vilarejo qualquer da Etiópia. Eu me sentia o rei das cocadas pretas, brancas e marrons. Embora eu não deixasse transparecer tal grau de orgulho. Acontece que, a Vila Brasília era sem dúvida, um dos melhores, talvez o melhor bairro de Aparecida. Tal era, que, nas placas de endereços das propriedades residenciais e comerciais, comumente se lia: Rua tal. Quadra tal. Vila Brasília. Município de Aparecida de Goiânia. Descrição esta, que revelava a intenção clara do órgão administrativo municipal em deixar bem explícito á todos que a “vilinha” pertencia á Aparecida, e Goiânia não á tascaria de seus domínios. Possibilidades de incluir tal bairro na área distrital da capital já tramitavam no gabinete do governo estadual.

Tratei logo, de fazer um estilingue. Fui á caça e descobri uma represinha no baixão do bairro há três quadras á sudeste da minha nova moradia. Alguns barrigudinhos já estavam com suas peles cinzentas de tanto mergulhar na água esbranquiçada. Tinha uma mata ao fundo. Adentrei nela e me deparei com micos e macacos. Os nossos primos faziam para mim um desfile de boas vindas. Foi muito legal aquele meu safari.

Eu só não vi onças e outros da classe dos felinos, mas quando eu saía da mata eu encontrei outro caçador que se aventurava por ali, ele me garantiu que já tinha ouvido rumores sobre a presença de onça por ali. O nome era Ubiratan. Ele seria o meu primeiro colega mais velho do que eu neste setor. Tempos depois eu descobriria que havia na mata, jacarés, sucuris, bandeiras e uma trinca de outros animais que eu só os via no Zoológico. Embrenhando mais, mata á dentro, encontramos cheirinho, outro caçador. Ficamos amigos também.

Abreviarei esta fase compactuando o texto. Enquanto durou a minha época de caças, eu, cheirinho e um xará meu, que tinha o apelido de Bilô, encontramos dois ninhos de periquitos em pés de buritis com seis ovos em cada um dos coqueiros. Depositamos seis de um ninho no outro ninho. Vingaram nove buguelinhos. Uma semana depois, os levamos para nossas casas. Eu fiquei com três, Cheirinho com quatro, Bilô abilolado com dois, – ele era mesmo debilóide. Tomava remédios controlados para não se descontrolar. Com toda a minha sinceridade, ele se parecia com o Jim Carrey do filme Debby e Loide. –podem acreditar.

Tratei dos meus periquitinhos com papinhas até eles ficarem adultos. Dei nomes aos três. Pepe, Peri e Pequito. Tempo depois, pequito morreu dentro da gaiola. Peri teve a mesma sina.  A morte do Pepe foi um dia marcante para mim. Eu não consigo me esquecer daquele dia. Nelino soltou o coitadinho e, não o encontrou para trancá–lo na gaiola novamente. Então, eu e ele procuramos o pobrezinho por todo o quintal e não o encontrávamos. Quando eu olhei dentro de um tubo de cimento que era o coletor de água da chuva e do ladrão da caixa–d’água, lá estava o bichinho morto. Morreu afogado o coitadinho. Culpei Nelino pela tragédia da morte do meu periquitinho. Tentei dar nele um puxão de orelha, ele foi correndo para a barra da saia da minha mãe. Fui atrás dele e consegui dar um cascudinho na cabeça dele. Ele fez um drama danado. Minha mãe pegou o que tinha mais próximo dela, – passou a mão num pedaço de fio de energia, – e por impulso, ela me deu uma lapada nas costas.

Confesso que, não foi a lapada, nem tampouco a morte do periquitinho que me doeu. Ah meu Deus! Eu não tinha lembrança de ter levado uma surra, ou que fosse uma simples lapada de fio desferida pela minha mãe. O que eu disse á ela naquela hora permanece nítido e latente em minha memória...

–Mãe, a senhora nunca mais vai me bater. –falei num rompante que a deixou profundamente estarrecida.

Então minha mãe exclamou:

–Oh meu fie!...–e foi para o quarto. Nelino a acompanhou.

Através do vitrô eu a vi se ajoelhar aos pés da cama. Ela ia orar.

Eu não sabia o que dizer e nem o que pensar naquele momento. Eu sei que fui muito áspero em minha expressão. Só em pensar que eu falei com aquela autoridade toda, deixando minha mãe naquele estado de alma, me machucou muito. Da forma com a qual eu falei, soou como a uma ameaça de revide da minha parte, no caso de ela querer me bater novamente. Eu sabia que foi isso que ela pensou. Na verdade eu nem sabia qual seria a minha reação se acaso ela me batesse em outra ocasião.

Arrependido por ter sido tão ríspido com ela, eu me sentei na tampa da cisterna. Levantei logo em seguida desconsolado e fui para debaixo de um pé de gameleira no final da rua onde nós morávamos. Tudo que eu queria era poder voltar á cinco minutos atrás para eu ter engolido aquelas palavras antes de tê–las dito á minha mãe.

Ela estava feliz. Naquele dia nós havíamos ido á um curtume do outro lado da BR 153 para buscar sebo de gado para fazer mais sabão. Desde que mudamos para o Expansul, ela transformou–se em uma mulher disposta, vigorosa e cheia de disposição para a vida. Como prova dessa mudança, ela não ficava mais chorando pelos cantos como antes. Fez amizade com as mulheres senhoras na vizinhança. Fazia pastéis, bolos e roscas para nós comermos. Cantava hinos de louvores á Deus e fazia compras na feira do centro de Aparecida. Eu sabia que eu a fiz chorar naquele momento.

Peguei um pedaço de graveto e fiquei riscando o chão debaixo da gameleira. O tempo parecia ter parado naquela hora. Se eu fosse revelar o que em silêncio eu ouvi do meu fiel amigo íntimo, alguém poderia pensar que eu sou um grande contador de “estória” Minutos depois eu voltei para casa.

Minha mãe estava na área, próxima ao tanque de lavar roupas, desocupando a caixa de papelão na qual ela guardava os sabões de bola já prontos. Então eu me aproximei dela.  –Mãe, se a senhora cortar esses sabões, eu vou vender eles e trazer o dinheiro pra senhora.  –Eu temia que antes da resposta, ela fosse me dar uma bronca, mas, mãe é mãe. –Eu tava “pensano” nisso memo meu fie. Mas será que vende?

–Não sei. Eu vou tentar.

Com pouco tempo eu seria apelidado de Joãozinho do sabão. E, pode acreditar, a minha mãe nunca mais me bateu.

O dinheiro que eu arrecadava com a venda do sabão, era o suficiente para a minha mãe dar nas coletas da igreja, ajudar o meu irmão Eurípedes com as compras de alimento, agradar as pessoas com presentinhos, e de sobra me dar uma grana pra eu gastar na única mercearia que existia no setor Expansul. Domingos era o nome do proprietário dela.


O meu irmão Eurípedes determinou, desde que nós mudamos para o Expansul, que eu não devia mais ir para o centro de Goiânia, por razão de eu ter que ficar assistindo e ajudando a minha mãe na criação do Nelino e também para, no caso de uma emergência, eu estar ali por perto. Ele temia que a minha mãe fosse ter uma recaída. -mas que nada, ela estava sadia feito um coco. E a nova dona Francisca recebia tantas visitas em nossa casa, que, realmente, eu não sei se eu seria tão utilizado para uma possível situação emergencial em relação á saúde dela. As amigas da minha mãe eram pessoas excelentíssimas. Sabe aquele tipo de vizinha que vai á casa da gente levando um agrado, e que não preocupava com a hora de voltar para casa? Pois bem. Dona Neusa, dona Maria do seu Martins, irmã Maria do irmão Sebastião e uma porção de outras vizinhas eram dessas tais.  Nessa época, a situação financeira da minha mãe, já era o suficiente para uma troca de agrado. Também tinha o estoque de sabão que se esgotava á cada visita recebida. Na opinião das agraciadas com o espumante, o sabão de bola da dona Francisca era de muito boa qualidade. Continuávamos sendo pobres, mas a matriarca da família Ribeiro sempre soube ser caridosa. Ela dividia o pouco que possuía, com a igreja e com pessoas necessitadas e até com as que não necessitavam tanto assim. –Mãe, a senhora tá vendendo mais sabão do que eu.

–Não João Batista. É que eu gosto de dar um agradim para quem vem aqui “im casa”. Ela era analfabeta, simples e muito humilde, mas, muito bondosa com as pessoas.

Em setembro de 1987 eu anunciei á minha mãe e ao meu irmão Eurípedes, que eu iria voltar á engraxar sapatos, porque eu precisava ganhar mais dinheiro para eu poder comprar as minhas coisas. As vendas de sabão iam mais ou menos. O Nelino firmou parceria com Cabeção e Secão. A filha de uma vizinha não saía lá de casa e já havia me deixado um bilhetinho com versos romântico. O nome dela era, -digamos, Edna. E, numa certa manhã, ela passou em minha casa antes de ir para a escola. Eu havia acabado de escovar os dentes quando ela me entregou uma rosa Bem–me–quer, e me tascou um beijo no rosto. –tchau! Eu vou para a escola. –foi o que ela me disse antes de girar em um pé só e sair em disparada feminina. – aquela corridinha engraçada de cabeça baixa e uma paradinha para ajeitar a mochila nas costas, aproveitando a deixa, para dar mais uma olhadinha e um tchauzinho ao pretendido namorado. Eu tinha ainda quatorze anos. Ela tinha onze. Bonitinha, e bem encorpada. – não era gordinha, mas tinha uma leve tendência á aumentar o manequim. Pele clara. Cabelos castanhos escuros e longos, sempre amarrados em um molho só. Edna se revelou uma garotinha muito pra frente logo assim que nos conhecemos. Ela ia ao meu quarto, mexia nos meus gibis e ficava querendo saber se eu namorava uma das netas da irmã Maria.

–Qual delas?

–A Kelly.

–Não, menina. As três são minhas amigas. E, elas são crentes.

Ela tentava esticar a conversar com papinhos bobos, perguntando o que eu achava das três e dela também. Mas o interesse maior dela era saber sobre a Kelly, porque Kelly era uma garota muito recatada, porém, muito simpática com as pessoas de modo geral. Sobretudo, porque devido a minha frequência na casa dela nos cultos de domingo, a gente tinha certo grau de afinidade muito respeitoso e sem nenhum interesse afetivo. Sem contar que os avós dela me tratavam como á um filho.

Para evitar prolongar a conversa com Edna á respeito de Kelly, eu disse á ela que eu havia trabalhado para uma família no Setor Bueno, a qual tinha uma cachorra que se chamava Kelly. No domingo seguinte eu fui ao culto. Kelly me chamou para fora ao terminar a celebração. Então ela me perguntou se eu havia dito que o nome dela era nome que se dava á cadelas.

–Quem te disse isso Kelly?

–Nossa, Joãozinho, eu não esperava isso de você.

–Quem te disse isso?

–Não. Deixa pra lá. Você virá ao culto domingo que vem?

–Não sei não.

Eu já sabia quem foi que aprontou aquela lambança.

De qualquer forma, foi bom ter acontecido o que aconteceu. Continuei indo aos cultos e descobri que a tal Edna sabia mudar a frase e a expressão da fala para causar um contratempo entre amigos. Como eu já sabia que ela tinha a natureza impulsiva, tratei de cortar a amizade com ela. Não iria dar certo. Eu nunca tinha sequer dado um beijo numa garota. Sinceramente, eu realmente não tinha estímulo para me aventurar em um romance com garota nenhuma. Mas até quando isso duraria?

Rildo e Ismael, meus irmãos, nos visitavam de vez em quando, sendo acompanhados por mulheres bonitas que usavam calças de couros e jaquetões. Cabeção me contou que o Romualdo irmão dele, “garrava” as garotas mais gatas do mundo. (garrava” era assim que se falava quando um cara conquistava uma garota)

Ismael, Rildo e Romualdo. Cada qual em âmbito social diferente, mas ambos aproveitando a vida da melhor maneira possível. E eu? Qual era o meu âmbito social? O mesmo que os deles. Mas quais as minhas experiências com as duas garotas Maurinha e Cláudia? A minha frustração com Cláudia ainda fustigava o meu sentimento. Sentimentos ímpares e bem compreendidos por mim que crescia analisando esse tema da vida e encontrando mecanismos psicológicos para poder me precaver e não me deixar ser fisgado por outra paixão mal resolvida.

Maurinha foi, para mim, a garotinha mais adorável em minha vida, mas o que eu nutria por ela se resumia apenas em consideração, gratidão e complexo de inferioridade por ela ter me tratado com tanta atenção e dolo. Dolo sim, pois, eu sentia que ela tinha apenas dó de mim.

Garotas de todas as eras e décadas encabeçam a lista das melhores coisas da vida. Para mim naquele tempo, elas encabeçavam aquilo que eu queria que tivesse sido uma página virada na minha história.

*Agora eu vou escrever o nome da Maurinha.

*Joãozinho, você gosta da Cláudia, mas ela não gosta de você.

São retrospectos de uma infância e puberdade de um garoto que ainda tinha muito que aprender sobre a vida.


                                                                        *


O meu décimo quinto aniversário foi inesquecível. Anteriormente, eu apenas ficava mais velho, mas naquele 13/09/87 eu fui surpreendido. Meu irmão Eurípedes resolveu se livrar da velha cama dele, e fez uma de tijolos fixos no quarto. Foi muito engenhoso. Era dia doze de setembro. Eu tive que ceder a minha cama para ele dormir mais confortavelmente, afinal de contas, o trabalho dele era árduo e cansativo numa fábrica de artefatos de cimento. Eu dormi em um colchão estendido no meio da sala. Na manhã seguinte, quando acordei, havia um pedaço de bolo de trigo coberto com glacê branco. A minha mãe fazia bolos simples, não de aniversário. Deduzi então que dona Francisca ou Eurípedes havia se lembrado da minha saída da puberdade e iniciado a adolescência. Aquele gesto simples me deixou muito feliz.

O que ficou marcado também, não só em mim, mas na população goianiense, foi acidente com o césio 137. Por sorte minha, eu não tinha voltado ás ruas do centro para engraxar sapatos. O material foi achado no dia 13, dia do meu aniversário, fora rompido alguns dias depois, causando a contaminação nos arredores onde eu retornaria à engraxar sapatos. Poderia eu ter sido contaminado também, porque eu também catava cobres e alumínios em entulhos de obras pela capital. Engraxate honesto como eu era, juntava até esterco de animal para vender. Eu diria que eu era como a esponja de aço da Bombril “1001 utilidades”.

Em 87 Goiânia começava á colher os louros de uma boa administração e já estava em constante desenvolvimento nos setores públicos e privados. Mas o acidente com o material radiativo levou alguns investidores á desistirem de seus negócios na capital. O receio dos empresários e grandes grupos econômicos causou efeito negativo na economia de todo o estado, principalmente na região da grande Goiânia. O acidente com o Césio 137 fez com que o estado perdesse muitos investidores do ramo empresarial e industrial, e, por esse motivo, deixou-se de arrecadar impostos, e houve muitas perdas em todos os setores da economia estadual e municipais.  Foi repercussão mundial quase que semelhante á Chernobyl. Algumas pessoas morreram. Outras foram contaminadas e morreriam posteriormente por terem sido vítimas daquele material radiativo.

Devido à tragédia de tamanha proporção com o césio, eu continuei no Expansul fazendo amizades com velhos, rapazes, meninos e meninas e vendendo sabão. Quando cheguei á adolescência eu já tinha uma visão de mundo completamente diferente dos garotos da minha época. Constatei essa diferença assim que fiz amizade com alguns deles. A maioria dos garotos não saía do campinho de futebol, e foi nesse local que conheci uma boa parte dos meus novos amigos. Muitos deles eram ótimos jogadores. Com exclusividade para  o Binha e Wallas. . Depois do futebol a gente se sentava no meio do campo e ficava conversando sobre nós. Eu era o que mais tinha algo á contar, afinal, eu era novato entre eles. Há muito tempo eu já vinha driblando as dificuldades da vida. Mas, eu preferia ouvi-los.

O que eles conheciam de aventura era ir á represa do Deraldo, o fazendeiro da região, e na cachoeira do Cepaigo, Complexo prisional estadual. Eu já havia navegado em mar aberto, - lê-se centro de Goiânia. – remado contra as turbulências daquelas águas, as intempéries da vida, para não me tornar um náufrago. Eles invadiam propriedades alheias para pegar a bola que lá ia parar. Eu subia em viga aérea rente á sacada do palácio do governador para dar saltos mortais dando dois giros até tocar o gramado. O gramado do centro administrativo estadual era o meu tatame para eu realizar as minhas peripécias acrobáticas. Eu não temia que os policiais me prendessem. Japão da vadiagem era meu conhecido. Eu escovava as botas de cano médio desse policial, e a pochete que ele trazia sempre recheado com uma arma.  Os homens do quinto DP da polícia Civil eram meus fregueses de engraxadas, me pagavam em dinheiro e ainda me davam marmitex de comida, lacradas.

Alguns fatores comunitários contribuíram para que eu pudesse me relacionar bem com os meus novos amigos. O setor não oferecia riscos de violência até então. Por esse motivo, depois das minhas vendas de sabão que aconteciam no período da manhã, nós ficávamos o dia inteiro rondando pelo bairro, e de tardezinha a gente jogava bola. As conversas e discussões infantis deles me revelaram que eu era nervoso e brigador apenas com moleques metidos á donos das ruas da capital. Com os meus novos amigos, eu não encontrava motivos nem razões para brigar ou ao menos discutir. Alguns deles diziam que folheavam revistas pornográficas. Outros não comentavam. Eu lia Tex, homem aranha e demais gibis da Marvel. Eu tinha coleção destes gibis, e lia também muita literatura fictícia e outras não.

Eu convivi com gente rica, e outras muito pobres. Bons e maus elementos. Então, eu sabia lidar com pessoas de todas as classes sociais. Enquanto eles ainda iam a festas infantis em casas de famílias no bairro, eu já havia vivido os embalos de sábado á noite na Vila Brasília e em outros bairros barras pesadas em Goiânia. 

A maioria daqueles garotos dançava quadrilha em festas juninas, eu dançava funk com o grupo Geração 2000. O maior grupo de funk de Goiânia. Na verdade eu não era um membro desse grupo, mas o meu irmão Rildo o era. Os demais membros, Celsinho, André, Horley, Rildão, Tipopa e Júnior, eram todos meus primos de consideração. Aprendi dançar funk assistindo os ensaios deles na Vila Brasília para duelarem com os Cãs de Rua do Breack liderado por Lagartixa, ou bobão se preferir. Funk mania, Dragões do funk, explosão funk e outros mais.

Mas eu não dizia tudo isso aos meus novos amigos. Com aquela galerinha eu aprendia que, quanto mais a gente adquire experiência de vida, se não soubermos administrá-las bem, mais nos tornamos amargos e arrogantes. Eu tinha ciência disso e precisava trazer de volta á minha vida a minha infância perdida.



                                                                             *


1988 seria o início de uma nova fase em minha vida. Neste ano eu completaria dezesseis anos de idade, e com isso, mudanças radicais aconteceriam comigo.

Eu dançava funk, sozinho e sem música tocando, Mas com a boca eu improvisava as batidas de um funk do Zapp na área da nossa casa. Eurípedes me flagrou ao chegar do trabalho naquele fim de tarde. Eu fiquei meio que na expectativa de uma possível bronca. Sentei–me na mureta da área e esperei que ele guardasse a bicicleta no cômodo lateral. Meus calcanhares socavam a parede da mureta, na medida em que o meu coração ia se estabilizando em batidas normais. Eu queria dizer á ele, que eu iria á uma festa na casa do Zé pretinho, pai do Wallas. Eu não estava com medo, mas um pouco ressabiado. Então ele se desocupou e veio se sentar em uma das nossas duas cadeiras de fio.  Ficou em silêncio por alguns segundos e depois perguntou onde estava a nossa mãe e o Nelino. Eu respondi que eles haviam ido á casa da dona Maria, mãe dos meus amigos cheirinho e bonitinho. Então emendei:

–Eurípedes, eu quero ir á uma festa na casa de um amigo meu, depois de amanhã.

Foi aí que ele expôs a questão.  Resumidamente ele me falou que eu podia ir aonde eu quisesse, mas a hora de eu voltar seria até ás nove da noite. Se passasse deste horário, eu não entraria para dormir dentro de casa. Me deu alguns conselhos referente ao perigo de eu voltar á viver como eu e meus outros irmãos vivíamos na Vila Brasília, e ao final respaldou: – tome cuidado com as coisas do mundo.

Este meu irmão, em toda a sua vida, havia ido á uma única festa, ficando por lá, meros dez minutos e prometeu nunca mais ir à outra. Ele ainda era rapazote na época.

A única bebida alcoólica que ele ingeria era o vinho da ceia.

Porém, tudo que eu conseguia dissociar entre o certo e o errado perante os olhos de Deus, era não matar, não roubar, ser honesto e respeitar pai e mãe. No meu caso, eu teria que respeitar a minha mãe e o meu irmão que estava na qualidade de meu pai. Foi pensando nesta questão, relativa ao meu á ele e no que nós vivíamos juntos que eu entendi as diferença entre respeitar alguém e temer alguém. Eurípedes era o provedor do lar. O irmão que providenciava as minhas e as nossas provisões diárias. Eu o respeitava. Mas não seria apenas por este motivo, que eu iria compreender a diferença entre respeito e temor. Em algum estágio da minha vida, eu comecei á refletir sobre o significado dos temas mais relevantes na vida do ser humano. Então eu descobri que, eu respeitava o meu irmão, eu sempre o queria por perto de mim. E mesmo que na ausência dele eu fazia arte, dizia palavras grosseiras e me comportava de modo indecente, quando ele se apresentava naquele exato momento em qualquer lugar, eu mudava o meu comportamento, media as palavras e também me sossegava no devido lugar. Quanto ao meu irmão mais velho, eu não queria estar perto dele em ocasião alguma.

No sábado seguinte, eu fui àquela festa. Tinha muita gente ali, mas não rolou funk. O forte era forró sem briga. As músicas românticas eu não dançava porque eu não conhecia bem as garotas que não eram tantas assim. E mesmo que eu ás conhecesse, eu não teria coragem de abordá–las para uma dança. Wallas e seus amigos, até que tentaram me incentivar á dançar as músicas pops e românticas de Cindi Lauper, mas eu preferi ficar na minha, de braços cruzados e com o pé direito na parede da sala pista de dança. As horas iam passando e as pessoas raleando. Eu não tinha aonde dormir. Apossei–me de uma cadeira de metal daquelas de bar e abeirei a mesa onde Zé pretinho e seus parceiros jogavam truco debaixo de um grande pé de manga. Experiente com o repertório musical que era usado no quase final de uma festa, eu percebi que a música sertaneja do Milionário e José rico tocando naquela hora da madrugada, era o anúncio de que eu teria passado a noite quase toda em claro sem dançar, mas, alguns novos colegas eu havia conquistado. Aproximadamente quatro horas da manhã, eu deixei o baile e fui para minha casa. Encolhi–me no canto da área e esperei o dia amanhecer. As madrugadas são sempre frias, mas nos anos 80, elas eram piores ainda. Quando minha mãe se levantou de manhãzinha, eu entrei para o quarto e dormi na cama. Sentindo que eu estava livre para voar e descobrir novos horizontes, eu ficava sobrevoando sobre um horizonte e outro; igreja e festas.

Minha mãe, conselheira e desejosa de que eu um dia, finalmente, obedecesse ao chamado de Deus, esperou que eu acordasse já com o sol alto naquele dia, para então ela me dar conselhos. Eu pedi á ela que não se preocupasse comigo, pois, as pessoas do bairro eram tranquilas. Enfim, dei minhas explicações. Ela reservou uma coberta de retalhos que ela havia feito á alguns dias. Era pra eu não dormir descoberto no piso da área. Eu me lembro de ouvir ela me dizer pra eu tomar cuidado. E que ela estava me entregando nas mãos de Deus.

Minha mãe e o meu irmão Eurípedes, não exigiram que eu deixasse de ir ás festas e que eu fosse crente. Os dois foram bem democráticos sobre esta questão. Sem forçar a barra comigo, nós seguíamos levando a vida, cada um ao seu modo. Eles, bem crentes e devotos. Eu, simpatizante e admirador do sistema doutrinário da Congregação Cristã no Brasil. Porém, no decorrer da semana eu fui me envolvendo cada vez mais com a juventude do bairro. Novos moradores vinham chegando, e entre estes, alguns conhecidos meus, da Vila Brasília. Aos poucos eu me identificando com o Expansul.

Dando uma volta pelas cercanias do setor, eu avistei Romualdo e seus três amigos dançando debaixo de um pé de manga no quintal da casa dele. Era bem espaçoso, arejado e sombreado o local. Eu estava no quintal da minha casa, quando os vi. Romualdo era o cara que tinha o título de maior conquistador das redondezas.

Ele e seus parceiros ensaiavam um passe de funk com o toca–fitas portátil rodando You get me hot do Jimmy Bo Horne.

A coreografia dos quatro parceiros do grupo era um pouco diferente do que eu dançava. O funk deles era mais acrobático e frenético. O que eu aprendi com o grupo Geração 2000 era mais aquele estilo de jogo de pernas, passos e braços em movimentos compassados, charmosos e com mudanças de lugares, bem coordenadas entre os parceiros do grupo.

No sábado á noite eu cuidei de guardar na área a minha coberta de retalhos e passar a minha gola–polo branca e a minha calça Jeans que era uma calça de barra comum, mas eu tinha a intenção de apertá–la um pouco mais. Calcei meu Docsaid, orei o pai nosso. Eu estava ansioso durante o dia inteiro, mas não podia me esquecer de orar. Ao terminar, me lembrei de um relógio que eu tinha, mas nunca o tinha usado. Peguei–o dentro gaveta do guarda–roupa, seminovo que o Eurípedes havia posto no quarto onde eu dormia em uma cama de solteiro, e minha mãe com o Nelino em uma de casal. Coloquei o relógio no pulso e saí.

Chegou a hora, eu estava indo ao Clube Recreativo de Aparecida. Fui com Bonito e cheirinho. Romualdo havia ido para outro clube que eu não me lembro se era o Carneiros ou o Sargento. Bonito se apartou de mim e do cheirinho e foi para a casa de show A tarantela.

Ainda era cedo. Eu tinha saído de casa ás oito horas da noite. Eu me lembro bem dessa hora, porque o cheirinho me perguntou se eu havia adiantado a minha caixa dágua em uma hora. Ele era brincalhão. O meu relógio era um daqueles que tinha uma calculadora e não entrava água. Eu o ganhei da minha irmã Airta quando a gente ainda morava na Vila Brasília.

Quando passávamos pelo cemitério, eram oito e quatorze.

–Não é hoje não. –falei.

–E sim. Depois da meia noite.

–Agora que são oito e pouco mocorongo.

–Tá cedo ainda. Vamos para a praça. –ele sugeriu.

Passamos primeiro pelo clube. O DJ ainda testava a aparelhagem. Enquanto ele dizia: som. 1. 2. Testando som. Nós seguíamos rumo a Praça da Matriz. A expectativa era grande. Mas, um detalhe me chamou a atenção. As pessoas ali não usavam roupas iguais a minha. Eu reparava os rapazes e garotas, eu notava que quase todos eles usavam calças Bags e camisetas, outros vestiam camisões por fora da calça. As garotas vestiam calças bem a cima dos seus umbigos, e minissaias de cinturas altas. Tênis de canos curtos estavam em alta entre a maioria. Eu estava me sentindo um “prego”.

O vestuário das pessoas do centro da cidade Aparecida, que recebia gente de todas as regiões e setores do município nas noites de sábado, á meu ver era visivelmente diferente do que eu esperava. Eu havia saído de uma região onde a moda era Calças boca de funil para os homens mais adultos, e calças Hollywood para as mulheres mais atiradas. Fora o fato de que, até em meados dos anos 80, muitos homens usavam calças bocas de sino, camisas sociais coladas ao tronco e desabotoadas. Blusões de couro, e também o estilo Michael Jackson. Por eu ter ido somente á festas realizadas nas casas em diversos setores de Goiânia até o ano 1986, eu tinha uma perspectiva de que o meu visual estava de acordo com o da maioria do pessoal que eu iria encontrar no clube de festas. Para eu ser sincero, a calça e a Y. S. L. e a camisa gola–polo que eu estava usando naquela hora, foram presentes que eu recebi da dona Nair Almeida Avelar, minha ex–patroa em 85 e 86. O sapato eu o comprei na Bobb-socker no centro.

Eu me sentia ultrapassado em relação aos adolescentes da região central da cidade. Mas eu teria que me adaptar á esse novo meio social de comportamentos, modismo e modos de curtir ás noites de sábados.

Cheirinho era tão tímido quanto ele só, e não me apresentou garota e amigo nenhum ali na praça. Ficamos no coreto da praça, vendo o movimento nos bares e centenas de meninas bonitas que desfilavam por ali. Tudo ali era muito diferente do Setor Expansul também. Eu estava no lugar onde todas as tribos se encontravam:

Funkeiros. Heavy–metals. Colegiais. Estereótipos de burgueses. Se haviam ricos, eram os homens com chapelões e botas que engoliam as barras de suas calças Jeans. Nesse aspecto, nada me surpreendia, pois eu coabitei com uma família que ficou rica de modo “sobrenatural” e ficou pobre em pouco tempo. Trabalhei para outras famílias que eram ricas de berços e continuavam sendo de forma honesta.  Da pobreza, eu não havia fugido dela, ainda. Mas, o nível já era outro.

Todas as características que identificavam os grupos de uma juventude transviada ou não, se apresentavam aos meus olhos curiosos e o meu estado analítico enquanto eu permanecia na praça, esperando a hora para ir ao clube.

Eu e cheirinho, passávamos do lado da igreja da Matriz, quando um rapazinho com cabelos negros e lisos como de índio, nos abordou com um jeito alegre e muito legal de ser. Era o Cetinha. –Vambora para o clube. Já começou. Eu já tomei todas, e garrei altos brotos, por aqui. Vamos lá, cheirinho. E aí chegado. –ele nem me conhecia. Pegou em minha mão e completou. –de onde você é? Eu disse á ele que eu morava no Expansul. Ele falou que morava no Jardim Eldorado que fazia divisa com o meu. Em direção ao clube de festas, nós seguimos. Cetinha ia de um lado á outro cumprimentando transeuntes, homens e mulheres que passava por nós. Até que ele sem saber, faria o meu rosto corar de vergonha. –Tá vendo essa gostosa ali? Era uma menina baixinha com minissaia colada ás pernas bem torneadas. Cabelos claros e cacheados das raízes ás pontas, rosto redondo e lábios bem vermelhos de batom.–Cidinha, vem aqui. –ele a chamou. Ela veio. –Esse aqui é o meu chegado, Joãozinho.

Cidinha pegou em minha mão e me deu três beijos no rosto. Depois, Cetinha deu uma tapa na bunda dela e falou: – Vai embora daqui mulher feia. –ele mentiu. Ela não era feia. Tinha um jeito rebelde de ser, mas era muito sensual e atraente. Cheirinho já a conhecia, e antes de ela ir, deu beijos no rosto dele também.

Naquela altura da noite que, já havia me proposto situação de constrangimento de estilos de vestimenta e vergonha por ter ganhado três beijos no rosto, eu queria mesmo era estar na pista de dança.

Chegamos. Compramos os ingressos e entramos. Eu não sei o quanto foi que eu paguei para entrar. Lembro–me apenas, de ter ficado ansioso na fila para enfim chegar a minha vez de entregar uma nota de dinheiro para o bilheteiro e pegar o ingresso. Estávamos no plano Cruzado, novo sistema monetário, então eu não posso assegurar com certeza qual a nota que passei ao bilheteiro e nem quanto foi que ele me devolveu. O cheirinho ficou conversando com alguém do lado de fora, era um rapaz claro e magro.  Quanto ao Cetinha, ele me falou que logo ele estaria lá dentro também. Quando eu estrei, foi fantástico aquela entrada. Ver o globo girando sobre a pista, as luzes multicoloridas, também negras e piscas–piscas. Toda aquela pirotecnia eletrônica dentro de um espaço dezenas de vezes, maior do que as salas das casas onde aconteciam as festas nas periferias da cidade, para mim era espetáculo á parte. Quando o DJ começou a festa, eu não sei. Mas tocava justamente a música funk More Bounce to the ounce do Zapp para me dar as boas vindas. Lembrei–me dos ensaios que eu assistia, do Grupo Geração 2000. Muita gente estava ali dentro, mais estavam chegando e chegaria á cada minuto. O nome e slogan da equipe de som eram: Made in Brasil era. O som do ano 2000.

Recordo–me de naquele momento de total satisfação, eu ter ido rumo á pista no nível rebaixado do piso para dar os meus primeiros passos sobre o primeiro degrau.   Eu movimentava os meus pés para os lados, batendo–os um no outro sem sair do lugar. Movimentando pernas, corpo e braços de maneira compassada e batendo palmas leves e em pulsações ritmadas com as batidas do funk americano. De olhos fechados, só para sentir a emoção e me preparar para uma performance solo entre muitos ali que dançavam e também os que apenas assistiam.

De repente, Cetinha chegou quase que pulando na minha frente, com um rapaz negro. Então, ele me apresentou ao Vanderley, o B.A. Parei de me movimentar para pegar na mão daquele rapaz. Eu estava sendo apresentado á um dos caras mais conhecido e respeitado pelos frequentadores do Clube e de outro lugares.

Num dado momento formou–se uma roda no centro da pista. Os feras do funk em Aparecida estavam reservando aquele espaço para suas apresentações. Eu não me sentia preparado ainda para estar entre eles. Permaneci onde eu estava. B.A se foi para a roda. Cetinha ficou do meu lado por alguns segundos. Mas, ele tinha o jeito só dele, de ser simplesmente, Cetinha, o colega que me colocaria nas situações mais embaraçosas, e ao mesmo tempo, prazerosa de se relacionar com novos amigos e garotas naquela noite.

Chegou a hora da música romântica. Sentei–me em uma cadeira na lateral do espaço. Tinham muitas mesas com cadeiras espalhadas nas partes laterais do clube. As largas passarelas de um lado e outro separavam a pista de dança das áreas de consumo de bebidas. Cetinha foi dar uma volta pelo salão. Quando voltou, trouxe a irmã da Cidinha. As duas eram completamente diferentes uma da outra. Ela tinha os cabelos lisos e escuros, não negros, castanhos talvez. Tinha maior altura e um jeito mais recatado e vestia jeans e camiseta branca. –Oi! Prazer. –eu disse, me levantando e quase caindo sobre a mesa. –João... Joãozinho. –Oi! Luciene. –Três beijinhos, e o meu coração disparou dentro do meu peito. Cetinha e Luciene saíram para dançar. Deu para notar que eles não eram namorados, porque o par dançou apenas uma música. Eu os observei, sentado no mesmo lugar. Continuei por ali olhando tudo ao meu redor. Casais que dançavam. Meninos que corriam entre as pessoas, esbarrando nelas sem parar para pedir desculpas.

Muitas garotas bonitas e outras nem tanto. Em minha mente, ficava a impressão de que eu só precisava ter coragem de convidar uma das meninas para dançar comigo. Mas, eu estava me desprendendo aos poucos. Confesso que com Luciene eu não fiquei envergonhado como da outra inusitada apresentação com a irmã dela. Eu sentia que aos poucos eu ia me ambientando e, isso já era um bom sinal.

Não dancei sequer uma música romântica naquela noite, mas, o funk que eu apresentei na última roda no final daquela festa inesquecível foi o suficiente para eu ter o meu espaço entre os melhores, ser requisitado e desafiado pelos melhores funkeiros que ali dançavam. Eram eles: B.A. Chiqueba. Clóvis e Marquinhos, por enquanto. Conheci outras garotas, por intermédio dessas pessoas naquela mesma noite. De madrugada eu voltei para a minha casa com o B.A que era vizinho do Cetinha no Jardim Eldorado, e que também veio com a gente formando um trio. Cheirinho e bonito eu não sei por onde andavam, e quando foi que eles foram embora. Nas nossas conversas pelo caminho de volta, eu descobri que B.A era mais reservado e desconfiado, mas um grande cara e dançarino. Cetinha era um tremendo fantasiador da vida. Mas que, sobretudo, era alegre e muito feliz. Ele bebia um copo de cerveja ganhado de alguém, e dizia que havia bebido todas, a noite inteira. Andava abraçado com uma garota e garantia que tinha dado uns amassos nela. Ambos se tornaram meus amigos.



                                                         SONHOS PERDIDOS     


Ainda no ano 1988, muitas coisas aconteceriam comigo, e, eu teria que encarar e enfrentar o que a vida me apresentava com a minha pouca experiência adquirida em algumas áreas da vida. De qualquer forma, para mim, com poucos meses á cima dos quinze anos, eu teria que aprender á usar o que eu aprendi em situações anteriores, para com o meu modo de ser, agir e pensar, tomar uma atitude em relação aos últimos acontecimentos de até então.

Então, acreditando na nossa habilidade com a bola nos pés, resolvi acreditar no meu talento com a bola. Cabeção, e bonitinho, me acompanhou até á sede de treinamentos do Goiânia esporte clube. Era dia de treino para a categoria juvenil.

Quando pegamos o ônibus que passava de hora em na BR 153, eu fazia os meus planos para serem realizados assim que eu passasse naquele teste. Eu queria ser jogador de futebol para poder ter boa condição financeira, proporcionar uma vida melhor á toda a minha família e também ter notoriedade e fama.

Quando chegamos ao centro de treinamento no Jardim Olímpico, Severino, o treinador escalou as equipes juvenis. Bonito e Reinaldo cabeça começaram jogando. Eu fiquei fora da partida. Pensei que havia dado viagem perdida, mas esperei sentado no gramado próximo á linha lateral. Aconteceu que, um dos jogadores discutiu com o treinador Severino, tirou a camisa e a jogou na grama. Quando ele abandonou o campo, Severino me chamou e passou–me outra camisa de treino. Vinte minutos mais ou menos de jogo, eu já tinha feito alguns lançamentos e participado bem nas jogadas. Quando na linha que divide o centro do campo, eu tentei tirar a bola do domínio de um adversário. Ele me passou a bola entre as pernas. Aquela finta me deixou completamente desanimado e querendo sair do jogo, mas continuei Fiquei tentando me sair melhor, mas sem esperança de ser selecionado. Em minha concepção, Severino me substituiria á qualquer momento. Mas em um dado momento, eu dominei a bola á uns dez metros fora da grande área e chutei. O goleiro defendeu, mas Severino gritou: é isso garoto. Apenas isso. Reanimado continuei até o fim do treino. Houve muitos gols, tantos que, a gente nem consegue contar. Era treino, e o placar do jogo não importava naquela partida.

Cabeção era bem novinho e não enquadrava na faixa de idade daquela categoria de base. Quanto ao bonitinho, eu o chamei para irmos saber da avaliação do treinador sobre o nosso desempenho, porque ele chamou os outros que já eram jogadores do clube, para conversar no vestiário, talvez. Eu e bonito, ficamos á ver navios, até o momento em que Severino olhou para trás e fez um gesto de quem estava chamando á nós três.

–Vamos lá bonitinho.

–Não, eu não vou não. Eu acho que fomos dispensados.

Eu fui sozinho. Quando me aproximei do treinador Severino, ele me disse para eu voltar aos treinos nas quartas feiras no mesmo horário.

Seria a realização dos meus sonhos. Mesmo que eu não estivesse jogando do lado do Zico no maracanã, ou com os jogadores do Vila Nova, os meus dois times preferidos, desde a minha tenra idade.

Na volta, dentro do ônibus eu pensava calado, com o lado direito da cabeça colado no vidro, sonhando de olhos abertos: Quando a Maurinha souber que eu virei um jogador profissional, ela vai me admirar. Solon, Maurício, Elmo, Bizuca, todos os jogadores do time AZ, do cruzeiro, águia e vasquinho vão saber que eu consegui. (estes eram os jogadores e times de várzeas que eu os conheci vendo–os jogar no campo dos correios e demais campos na Vila Brasília) Todos, times fortes e jogadores muito bons.

No decorrer daquela semana para chegar á outra, eu continuava jogando nas tardes de todos os dias. Porém, o seu Vicente me convidou para jogar no time que ele havia formado para disputar o campeonato juvenil municipal. No domingo de manhã naquela mesma semana, jogávamos no campo do adversário no Setor Tangará. Eu já havia marcado dois gols, e o meu time vencia a partida por três á dois. Em um lance, dominei a bola na diagonal e passei pelo primeiro marcador com uma meia–lua. O segundo, eu consegui passar a bola entre as pernas dele, com apenas um toque sutil. Eu devia ter tocado a bola para um parceiro, mas não dava. Eu já me aproximava da grande área e não tinha mais nenhum marcador. Então o goleiro abandonou a área e veio me atropelando. Tentei me esquivar perdendo o domínio da bola e saindo de lado, mas mesmo assim, ele pendeu o corpo para o meu lado e jogou em cima de mim. O impacto foi forte, pois todo o peso dele veio de encontro a minha perna direita esticada no chão.  Ele caiu sobre o meu joelho direito.  A dor foi intensa. Seu Vicente veio com éter e jogou no local da dor. Aliviou, mas eu saí carregado pelos meus amigos. Eu só voltaria á jogar futebol, no mês seguinte em Dezembro. Não engessei a pernas, mas usei faixa por muitos dias. Quando eu voltei á jogar, para poder me certificar de que eu estava em condições de voltar á Vila Olímpica, mesmo tendo passado da fase da peneirada, eu passei á ter deslocamento naquele joelho, quando eu chutava forte, e também evitava disputas arriscadas com o adversário. Mas, eu queria ir ao treino na Vila Olímpica. Por isso, eu continuei fazendo daquele campeonato, o meu preparatório. Num outro domingo de manhã, uma bola sobrou para mim e o adversário. Eu tentei dominá–la, mas ele chutou a bola no momento em que ela tocou em meu pé direito. O meu pé deu meio giro e, o joelho sentiu o impacto. Novamente, eu saí do campo me apoiando nos ombros dos amigos. Mais alguns dias fora dos campos.  O sonho acabou.


Aparecida de Goiânia era considerada, quase que na totalidade, uma cidade–dormitório para os seus moradores. Apesar de sua localização bem próxima á capital e de ser o segundo município mais populoso do estado de Goiás, ficando atrás apenas de Goiânia em números de habitantes. Mas ainda, apesar de sua privilegiada proximidade com a capital, faltava á cidade, muitos recursos no ramo da infraestrutura, benfeitorias públicas e empregos á população aparecidense. Por estas e outras deficiências, as pessoas recorriam á capital para trabalhar e também adquirir bens de consumo, assistência médica e suprir outras necessidades.  Mas o que mais fazia jus á este título era o fato de que as pessoas da maioria dos bairros de Aparecida de Goiânia tinham que trabalhar na capital e só regressava á noite para as suas casas.  Por isso, o título de cidade–dormitório caiu bem ao município inteiro. O Setor Expansul em toda a sua extensão territorial possuía todas as características de um povoado encravado nos confins de um município interiorano. Arame farpado delimitava os terrenos dos proprietários de lotes e de áreas arrendadas para o plantio de arroz, milho, mandioca e até de batata–doce. Carroças era o meio de transporte mais usado na região. Gado solto pelas ruas, que pertencia ao fazendeiro Luís Leite. Este homem distribuía leite de graça para os moradores do setor. A sede da fazenda dele ficava á duzentos metros da minha casa.

No Expansul, muita gente se virava por ali mesmo. Havia alguns carroceiros que faziam fretes e também vendiam leite nas casas das famílias. Porém, algumas empresas começaram á serem construídas por ali no Expansul. Dentre elas eu destaco a Agromen sementes. Eu trabalhei de servente na construção dela em 87 e posteriormente eu fui o separador de sementes de pastagens e grãos cereais para plantio. Tempos depois a Agromen viraria Gelre sementes e grãos. E por fim, Leilões Brasil. Arrisquei trabalhar na construção do Laboratório Equiplex, mas foi só por meio dia de trabalho. Ao leste do Expansul despontava um promissor distrito industrial, o Daiag, nas proximidades do complexo prisional Odenir Guimarães, o Cepaigo. Nas primeiras indústrias á serem construídas e se estabelecer por lá, eu ajudei á construir. Algumas indústrias e firmas não funcionam mais, outras permanecem até os dias de hoje. Quando me faltava vaga nas construções, eu continuava ganhando o meu dinheiro honestamente em outras modalidades de trabalho informal.

Se havia algo desonesto que eu pratiquei, foram as vezes que eu e meus amigos engraxates, invadíamos os quintais das residências das pessoas ricas em Goiânia para subir nos pés de coco e subtrair alguns. Mas com toda honestidade de caráter eu afirmo, era por aventura e diversão. Alguns moradores, até nos surpreendia em no ato, mas sabia que não éramos ladrões de bens maiores, pois se fôssemos eles já teriam organizado uma força tarefa para nos levar á prisão. Éramos o terror dos pés de cocos do Setor Marista, Bueno, Oeste e Setor Sul. Os meus pais eram religiosos, e o meu pai enquanto viveu sempre foi um homem honesto e trabalhador. Embora ele já tivesse falecido, eu levava comigo o legado deixado por ele: ser honesto e trabalhador sempre.

Com essas recomendações ainda latejando em minha cabeça, teve vezes que eu recusava á ir roubar coco, mas mesmo sendo um menino que tentava ao máximo viver em dignidade em meio á tanta pobreza e ofertas para o crime, eu sentia que praticar uma aventura que não daria para causar dano algum àquelas pessoas tão ricas dos setores nobres de Goiânia, não deixaria o meu pai triste comigo, lá no céu, sabendo que nós vivíamos em um mundo e tempo em que meninos engraxates eram sempre vistos como á trombadinhas e maloqueiros. Eu não era ladrão. Considerava-me um aventureiro, apenas um aventureiro.

O meu dinheiro estava acabando por eu já ter gastado o que ainda me restava das vendas de sabão e de um lote que eu capinei para um senhor chamado Paulinho do caminhão que moraria futuramente na quadra aos fundos da minha casa. Ele foi um bom sujeito e me pagou um preço muito á cima do que eu ia cobrar dele. A quantia em Cruzados havia sido o suficiente para eu dividir com o bonitinho o pagamento pela empreita. Juntos, éramos parceiros para o que der e vier se fossem honesto e honroso. Dias antes, nós já havíamos construído uma privada no quintal de um homem meio surdo que tinha o apelido de seu Doca. A casinha privada foi erguida com adobe e massa de barro vermelho. Talvez tivéssemos sido os únicos construtores á erguer um monumento com o topo pendido para o nascente do sol o meio para o poente e a base no ponto central. 

Seu Doca nos pagou satisfeito por aquela obra de arte em arquitetura que devia ser analisada pela Nasa e incluída no Guinness Book como sendo a mais original construção predial a qual cada adobe assentado seguia seu próprio alinhamento, esquadro e base de prumo. Considerando também que, a abertura de entrada e saída daquela privada era uma representação de todas as formas geométricas. 

Para alguém entrar naquela casinha privada seria necessário que ele contorcesse todo o corpo.

    Capinamos eiras de em um milharal na chácara do seu João, pai do Bilô. Cavamos fossa fecal para um novo morador do nosso bairro. Eu sempre dava um jeito de me virar, trabalhando honestamente. Desde que eu perdi o meu pai, todo dinheiro que eu adquiria era trabalhando ou ganhando de pessoas boas pelas ruas do centro e setores nobres da capital.

Pensando em o que fazer para arrumar um emprego fixo, pois, eu precisava de um ordenado que pudesse garantir as compras das coisas que eu queria possuir. Eu precisava de roupas novas e diferentes, calçados e outros objetos usados por qualquer adolescente daquela época. Eu senti que necessitava apenas de uma entrada contínua e constante de dinheiro.

Naquele dia eu fui á em presa Cardealtur Transporte e Turismo Ltda. Falei com o doutor Airton Machado, bom homem empresário e dono daquela empresa, junto com dona Selma.

Doutor Airton acompanhou a minha infância pobre no centro de Goiânia. Ele soube o quanto eu fiquei contrariado quando eu, meus irmãos Rildo e Ismael e os nossos amigos, fomos usados por políticos que diziam que iam melhorar a nossa condição de pequenos engraxates, escórias da sociedade. Aqueles mesmos políticos usavam a nossa imagem. Nós engraxates, queríamos que “eles” os políticos, legalizasse a nossa profissão, pois foi isso que todos prometiam. Fomos até filmados para as companhas deles, e, no final da exploração, eles apenas instalaram algumas caixas de fibra fixadas no calçadão da Avenida Goiás. Aquelas porcarias vermelhas foram motivos para nós engraxates do mesmo ponto, brigarmos feitos á inimigos, porque, uns queriam bancá-las dali, outros só não o fazia e nem deixava fazer por medo da polícia. Nós fomos ludibriados por eles. Todos os itens estampavam os slogam propagandeiro. Deram á nós uns jalecos, uma caixa de graxa de madeira de segunda linha, que, em uma das minhas brigas com os maloqueiros no calçadão, a caixa não aguentou nem a primeira fase da briga. Nesse dia eu tive que correr. Eles vieram tomar a minha marmitex que eu havia ganhado dos varredores de rua, e, eu comia sentado na bendita cadeira de fibra no calçadão da Goiás em frente à empresa Cardealtur Transporte e Turismo.

Depois de eu ter levado e dado muitas caixadas e levado muitas bicudas, eu fui parar dentro da empresa do doutor Airton. As funcionárias, em suas mesas se levantaram assustadas, mas eu fui direto á mesa dele e expliquei o porquê da briga e invasão. Não dá para esquecer fatos assim. Naquela hora, Doutor Airton, me contratou para distribuir panfletos, apenas no sinaleiro da Rua 02 com a Avenida Goiás, próximo á empresa, para eu não voltar á ser vítima daqueles maloqueiros. Passou também á me dar dinheiro para eu almoçar onde eu quisesse.

Três anos depois, eu o incomodava novamente. Pedi emprego ao bom ex-patrão. Contratado eu fui naquela mesma hora. Por três dias eu distribuí panfletos. Depois passei á colar adesivos com os endereços e nomes dos clientes, nos impressos informativos e destinos turísticos da empresa. Dias depois ele me colocou como seu contínuo imediato. O meu trabalho era ir á mesas das atendentes e aos demais funcionários para buscar e levar documentos para as assinaturas do patrão e alguns cafezinhos. Todos os dias ele me entregava um pedaço de papel com a assinatura dele. A rubrica era tão fácil de fazer, que, eu á imitaria facilmente.

Fabiano, o office-boy, morava na Vila Adélia. Fiquei surpreso, porque eu o conheci no campo de futebol do meu bairro. Mas o que mais me surpreenderia dias depois na empresa, era a presença de uma pessoa do sexo masculino que, eu o conhecia bem. Aquele “homem” que protagonizou as cenas mais imorais e pervertidas que eu já havia presenciado até então, desde os meus nove anos de idade. Quando eu o vi ali pela primeira vez na empresa, ele me olhou com expressão no rosto, de quem queria me dizer: – segredo, hem! Dias depois, eu o vi no bebedouro, perguntando á uma funcionária se eu estava trabalhando naquela empresa. Fiquei preocupado.

Numa manhã de segunda feira, eu tive que ir com o doutor Airton á uma empresa que fazia a distribuição dos impressos promocionais. Dentro do Diplomata, ou Comodoro, dele, eu só me lembro de que o automóvel era novo e muito confortável, mas eu me confundo em relação ao nome, eles eram tão parecidos. Mas, do que ele falou dentro do carro, eu não me esqueço de nenhuma só palavra.

Ele me perguntou se eu tinha os meus documentos pessoais, eu respondi que tinha apenas o registro de nascimento. Ele disse que era pra eu, na terça feira, pegar o dinheiro com ele, para que eu tirasse fotografias e providenciasse os meus documentos, porque ele ia arrumar a minha vida.

Depois da fala, ele não disse mais nada. Eu fiquei todo satisfeito por saber que as coisas iam começar á engrenar em minha vida.

Eu era um menor de idade que iria ter emprego registrado. No dia seguinte ele me deu o dinheiro, eu tirei as fotos ¾ em um lambe–lambe na calçada do ministério do trabalho, na avenida que circula a Praça Cívica. Dali mesmo, eu seguiria até o ministério do trabalho. Era meio demorado todo aquele processo de documentação trabalhista. Eu teria que tirar carteira de saúde, e, nem identidade eu tinha ainda, mas tudo se resolveria em poucos dias. Quando eu dei início á este processo, doutor Airton me orientou á estudar. Feliz, eu e a minha mãe fomos ao colégio Estadual Olímpio Alves e conseguimos a matrícula. A professora era a faz–tudo naquele colégio. Eu não precisei de currículo e nem de histórico escolar para me matricular na terceira série, com a professora que dava aulas para alunos da primeira, segunda, terceira e quarta série, tudo em uma sala de aulas, apenas. O nome dela era Maria do Socorro. Os dias passavam, eu trabalhando cheio de expectativas. As noites chegavam, eu ia para a escola.  Agora sim. Tudo estava indo bem.

Numa tarde de sexta feira de uma semana daquele bendito ano, antes de a minha documentação, enfim, ficar pronta. O funcionário Célio, jovem negro e de boa estatura, do departamento financeiro, me entregou um envelope alaranjado, com dois cheques de valores altos, e me mandou ir á Belcar veículos na Avenida independência para pagar duas prestações de uma D-20 e do mesmo veículo, o qual, dentro dele, Doutor Airton Machado havia feito à promessa de mudar a minha vida. O patrão meu chefe direto não estava na empresa. Aquela era a função do office-boy Fabiano que não estava lá para cumprir a missão. Quando eu peguei o envelope, Célio disse pra eu levar os comprovantes para a minha casa, porque na volta, a loja já estaria fechada. Assim foi peito. No sábado de manhã, eu levaria os carnês e comprovantes de pagamentos.

Peguei o ônibus e fui para a casa da minha irmã Ana Rita na Vila Legionária, próximo ao Jardim da luz em Goiânia. Eu aproveitei que naquela sexta feira não teria aulas, e fui dormir na casa desta minha irmã porque ficava mais perto do centro e tinha muitos ônibus em vários horário para o centro. Eu não trabalhava no sábado, e mesmo assim, eu faria sim, aquele favor ao Célio, em lugar do dever que era do Fabiano. No sábado ás dez e pouco da manhã, eu fui á empresa. Doutor Airton Machado, Selma a patroa e Célio estavam na empresa. Entreguei o envelope ao Célio e fiquei com aquele ar de felicidade por ter sido útil em uma função que não era minha. Célio foi para o escritório e por lá ficou. Aproveitei que, eu já estava ali, e falei com o meu patrão sobre a documentação que em breve estaria pronta. De repente, Célio veia até á mim e me perguntou sobre o comprovante de pagamento dos veículos. Eu disse que estavam dentro do envelope, pois, eu não mexi em nada. Em seguida, a patroa chegou até á nós, querendo saber o que havia acontecido. O patrão ficou caldo, ele não era de muita conversa. Célio me perguntou se eu não tinha deixado os documentos em minha casa, dentro do ônibus ou em algum outro lugar. Eu respondi que não, já um pouco tenso. Então, ele me pediu pra que eu o levasse á minha casa. Eu me pus pronto, mas o avisei de que eu havia dormido na casa da minha irmã. Dona Selma começou á me sotaquear dizendo que não se devia entregar tal importância em cheques á um menino que não tinha responsabilidades. Doutor Airton se levantou e sugeriu que Célio e eu, fôssemos até á casa, porque talvez eu tivesse esquecido lá os comprovantes.

Montei na garupa da moto do Célio, e fomos. Fui por ir, pois eu tinha absoluta certeza de que eu não havia mexido naquele envelope. Não encontramos nada lá. Quando chegamos á empresa novamente, Selma estava completamente nervosa e muito iracunda. O que aquela mulher me falava naquela hora, feria–me profundamente. Ela agia como se eu tivesse roubado os cheques, e não apenas esquecido os comprovantes. Sem ao menos tentar ouvir ou pensar em uma explicação para aquele mal entendido. Ela jogava os meus sonhos, a minha moral e toda a consideração e respeito que eu tinha por ela, por ela ser a esposa de um homem gentil e generoso quanto o doutor Airton Machado. Ela seguia histérica e muito insensível em seu trato referente á mim que, estava ali tentando rebuscar na memória, se eu havia deixado o envelope no banco do ônibus, ou se a vizinha da minha irmã, que estava lá na sala conversando comigo, em algum minuto, mexera no envelope. Não. Eu tinha plena certeza de que, se faltava algum documento naquele envelope, ele não fora devolvido pelo funcionário da Belcar veículos junto com os demais.

Doutor Airton me olhava e balançava a cabeça, como quem se lamentava por eu estar ouvindo tantas indiretas. Célio pedia pra que eu tentasse me lembrar de algum detalhe que pudesse nos dar uma dica do que tinha acontecido. Então, eu pedi á ele que ele mesmo fosse á Belcar e procurasse saber. Ele estava já saindo, mas o patrão mandou que ele ligasse lá antes. Célio foi ao escritório, e, dona Selma encerrou as ofensas dirigidas á mim, com uma recomendação: – eu quero isso tudo resolvido antes do meio dia. Eu não sabia o que dizer, e nem mesmo o que eu pensava diante de tanta grosseria. Só esperava que Célio voltasse logo do escritório com uma boa notícia. Então, logo ele reapareceu dizendo que estava tudo resumido, porque os comprovantes tinham ficado na Belcar, mas que, alguém fosse buscá–los na segunda feira, pois a loja estaria fechando ao meio dia. Doutor Ailton, arqueou as sobrancelhas e deu um sorriso com os lábios cerrados, porém reconfortante para mim.

Eu respirava aliviado ainda, por finalmente, tudo ter ficado esclarecido. Até comentei com o meu patrão e o contador Célio, que eu sabia que nada havia sido extraviado por mim, porque do modo que eu peguei o envelope da mão dele, eu o entreguei á atendente que ficava em uma das mesas no saguão da loja. O atendente, depois de abrir o envelope e constatar do que se tratavam aqueles papéis e cheques, os direcionou ao caixa da empresa. E das mãos daquele segundo funcionário, eu recebi o envelope, o enfiei dentro da minha camisa e fui embora da loja. Enfim, eu dei todas as explicações cabíveis e honestas á respeito do meu procedimento com o envelope e tudo que estivesse dentro dele. Falávamos ainda, quando dona Selma reapareceu. Eu deixei que Célio reportasse á ela o equívoco, uma vez que ela dava como certo que eu era tudo aquilo que ela julgou que eu fosse.

Pensei que Selma fosse me pedir desculpas, mas não. Decididamente, ela disse que não queria mais me ver dentro daquela empresa. Entendi que tudo havia terminado para mim naquela hora. De todas as pessoas ricas que eu tive algum contato com elas, nenhuma mulher, ou que fosse um homem, me desabonou tanto quanto Selma naquela manhã de sábado. Doutor Airton Machado era um homem muito observador e não era de muita conversa. Na segunda feira, eu voltaria á empresa, para receber pelos meus dias trabalhados.

Muitas coisas passavam pela minha cabeça. Às vezes eu me culpava por na noite anterior, eu ter sentido atração sexual pela mulher que esteve sozinha comigo na casa da minha irmã Ana que havia ido para igreja naquela noite. Então eu determinei que não fosse por aquilo ter acontecido, pois foi a mulher me provocava por malícia e experiência, mas eu não cheguei á tocar nela. Teria sido então porque eu me masturbei pensando nela no banheiro na hora do banho? Essa culpa me veio porque naquele período em que eu trabalhava ali, eu ia aos cultos com maior frequência aos domingos. Eu tinha dito á Ângela, prima da Kelly, que eu ia dar o número de telefone da empresa para ela ligar pra falar comigo se ela quisesse. Tínhamos nos tornado grandes amigos naqueles dias. Teve pessoas que diziam que eu gostava dela. Eu gostava sim dela, mas a forma que eu gostava de moças crentes, era diferente.

Em um dado momento, eu pensei que o culpado fora o pervertido que se assustou quando soube que eu estava trabalhando na empresa que ele frequentava bastante ali. Será que ele pensou que eu iria dizer aos outros, que ele me dava dinheiro, para eu ficar de vigília nos lugares que ele fazia sexo com os meus colegas engraxates, todos maiores do que eu. De maneira nenhuma, isso fez com que eu odiasse os homossexuais, pois eu já tinha maturidade suficiente para saber que não se deve julgar toda uma classe de pessoas, levando em conta apenas a opinião negativa á respeito de uma delas. Mas, eu confesso que na segunda feira, eu fiquei no calçadão da Goiás por uma hora e alguns minutos esperando aquele cara pra eu ter uma conversa com ele. Mas eu não o vi naquele dia.

Ser mandado embora daquela empresa foi para mim, mais do que ter perdido o sonho de jogar futebol. Eu não era um craque. Tinha bom domínio de bola, habilidade básica e marcava muitos gols nas peladas de campão e nos torneios pelos bairros de Aparecida. Rubinha sim era o craque com quatorze anos de idade. Esquerdinha aos vinte e poucos anos, era o maior e melhor jogador que eu conheci em toda a minha vida. Estes dois teriam futuro. Por outro lado, a profissão de jogador de futebol, era á meu ver, uma forma de ganhar um dinheiro á mais e ser um pouco mais reconhecido. Eram tempos difíceis aqueles. Para um garoto que não sonhava com profissões acadêmicas, por não ter estudo e ser pobre, talvez, ser jogador viria bem á calhar. Mas num resumo, eu não me deixei abater por ter perdido a chance de voltar ao treino da Vila Olímpica. Encarei com naturalidade, e aproveitava para dizer aos amigos, que o treinador Severino me mandou voltar para um segundo teste.

No entanto, ao perder aquele emprego eu decidi que não iria mais ir ao centro de Goiânia por um longo tempo. Naquele mesmo ano eu começaria á trabalhar de servente de obras, e de inúmeras outras profissões. Comecei á cortar cabelos dos meus irmãos e amigos. Em troca de gorjetas. Eu já tinha o dom. Cuidava da casa e do quintal da Dona Ana e Sandra. Carpia lotes e furava fossas e cisternas. Por uns dias, eu ainda venderia o sabão que a minha mãe fabricava. Eu já sabia me virar, mas sentia que aos poucos eu ia me tornando uma pessoa que já não acreditava mais nas outras e nem na vida. Ia me tornando nostálgico e com um grande desejo que tudo fosse diferente.

–Rildo, na capital a gente vai chamar o nosso pai de papai...

–... E a nossa mãe de mamãe.

–É isso aí.

Eu só queria entender o motivo de tudo aquilo que eu ouvi de Selma. Os comprovantes foram encontrados. Eu estava indo bem, ascendendo-me com muita rapidez, indo de entregador de panfletos á contínuo imediato do patrão.


Pensei em toda a trajetória da minha vida e da minha família, e concluí que nós nunca sairíamos daquele estado de pobreza absoluta. –resultado: – os meus interlocutores eram os personagens de histórias em quadrinhos e literaturas que eu nem as entendia.

Certo dia, depois de uma pelada no campão, Fabiano, o garoto que trabalhava na mesma empresa que eu trabalhei e, – havia sido humilhado pela patroa, – resolveu ir comigo ao luxuoso barraco. Lá falamos sobre as nossas demissões. E o que conversamos á respeito daquela situação refletiria de forma positiva em minha vida naqueles dias. Enquanto conversávamos Fabiano me contou que ele havia sido mandado embora pelo fato de que ele morava no Setor Expansul. No momento da fala dele eu não entendi qual era a ideia que ele queria me passar. Então eu o perguntei á respeito do Expansul. Ele respondeu que era porque o nosso Setor ficava próximo ao Cepaigo, o complexo prisional. Ou seja, se moradores do Setor Expansul fossem preencher fichas de empregos, eles teriam que dar outros endereços de residências. E, o meu colega Fabiano também seria efetivado naquela empresa, mas quando alguém do departamento de pessoal da Cardealtur soube que ele era vizinho dos presidiários em Aparecida, tratou logo de dispensá-lo. Eu quis que ele me explicasse o fato de ele ter conseguido trabalhar na empresa por alguns meses, sendo que ele morava nas mediações do Expansul que era visto com maus olhos pelos empregadores. Ele explicou que quando ele começou á trabalhar naquela empresa, ele disse ao empregador que ele morava na Vila Adélia. Era verdade. Vila Adélia é um conjunto de casas construídas no território do setor Expansul para os funcionários da Nacional Expresso, uma grande empresa de transportes rodoviários. Porém, quando Fabiano entregou os seus documentos pessoais para que ele fosse fichado na empresa, sabe-se lá quem foi que rastreou a localização do endereço dele. –Resultado: rua para ele também. Essa foi a explicação que ele me deu. Então, eu deduzi o seguinte: o seu Airton me empregou porque ele pensava que eu morava na Vila Brasília ainda. Não. Mesmo sabendo que eu morava no Expansul, ele não me mandaria embora... foi aquela orgulhosa da dona Selma. No frigir dos meus grilos em formas de perguntas sem respostas, eu deixei aquilo de lado e já não estava nem aí para a Cardealtur Transporte e Turismo Ltda.

(Acredite. Até hoje, certas empresas de Goiânia não contratam quem mora nos setores próximos ao Cepaigo)


     O preconceito contra os moradores do Setor Expansul, vinha também dos moradores da Vila Adélia, o pequeno conjunto de casas, com lotes reduzidos e proprietários com um enorme orgulho depreciativo contra os expansulenses. Não seria exagero da minha parte, dizer que os nossos vizinhos agregados. –o conjunto fora construído em área territorial pertencente ao Expansul –, nos tratavam com desdenho, e comportavam com altivez em relação á nós, como se nós do Expansul fôssemos seres de uma casta inferior.

Alguns contrastes corroboravam para que houvesse entre os moradores da Vila Adélia e do Expansul, uma espécie de apartheid social entre pessoas tão próximas umas das outras. São eles: Barracos inacabados e habitados por moradores no Expansul. Casas convencionais, padronizadas e cercadas por muros de placas de cimentos, na Vila Adélia.  A vila também possuía duas mercearias. Uma do seu Joaquim, outra do seu Roxo, e dois bares, enquanto no Expansul, o único comércio existente era a bodega do Domingos. –o agito acontecia nesse bar.

A vila Adélia contava com um time de futebol que já disputava os campeonatos municipais, e, sugestivamente, o nome da equipe era Vila Adélia. As equipes de futebol de Expansul podiam muito bem ser chamadas de Arranca-toco e Quebra-canela, desorganizadas e levavam o esporte como passa tempo nos fins de semanas.

Daí, a razão de tanta desigualdade entre os moradores de um e de outro bairro. Mas, um senhorzinho que fora meu vizinho na Vila Brasília, já havia chegado ao Expansul com a sua família, para dar início á uma nova era para o bairro. Vicente Torquato. Este senhor foi o meu primeiro técnico de futebol juvenil. E, se transformaria também no que eu posso chamar de: o desbravador, que mudaria para melhor o nosso bairro e também tiraria dos moradores a dissaborosa situação de dependentes da vilinha. Vicente Torquato tornou-se presidente de bairro, – digo presidente de bairro, porque, nem associação de moradores existia antes de ele assumir o pleito. Vicente Torquato era um homem que serviu o exército brasileiro, garantia á todos que ele era um expedicionário de guerra e que também tinha certa influência no Planalto Central. De vez em quando ele sacava o revólver e atirava pra cima para estabelecer a ordem no ambiente quando a galera se inflamava.   O velhinho era, e ainda é um carismático nato. Sob o comando dele foram construídos o Centro comunitário com a verba vindo direto de Brasília. Uma igreja Católica com recursos de uma instituição religiosa lá da Alemanha, eh, da Alemanha. Eu trabalhei como voluntário, de graça nessas duas construções. Veja a influência do homem! Máquinas vieram fazer um campo de futebol digno de receber no dia da inauguração, o time de futebol feminino profissional de um clube esportivo de Goiânia. A equipe feminina veio para jogar contra as meninas do Expansul, porém, a habilidade das nossas garotas com a bola não era compatível com a da equipe visitante. Um time masculino de rapazes foi formado para enfrentá-las. Obs. A goleira não quis assumir a sua posição no gol. Como eu já tinha ali, naquele momento, trocado umas ideias e ganhado o autógrafo da camisa dez que se chamava Raquel... sim, eu, substituí a goleira e joguei contra o time do meu setor. 3 a 1 para elas. O gol único que eu levei foi por causa de um escanteio cobrado, o qual a bola foi cair nos pés do Tiboi e, ele mandou um petardo da entrada da grande área e quando eu pulei na direção da bola, o ponta direita já havia buscado ela no fundo do gol para levá-la ao meio de campo.

No final da partida foi aquela festa. O Expansul em peso estava em volta do campo, o centro comunitário, e arredor do que nós chamávamos de local de convivência comunitária, – não tínhamos uma praça, ainda. Aquelas mulheres jogavam demais. Raquel, a craque da camisa dez fez dois gols, o outro, eu não me recordo do nome da jogadora que o marcou. Mas, eu não me esqueço de que a Raquel me falou que a maioria das jogadoras da equipe dela, morava no Setor Pedro Ludovico. Foi um dia de festa naquela inauguração do campão que, então contava com traves de ferro tubular. Á noite a festa continuou no Centro comunitário. E, eu lá.

Vicente Torquato promovia torneios nos finais de meses, com diversas modalidades de competições. Eu ganhei um troféu de primeiro lugar na maratona, a qual o percurso iniciava no campão, seguindo até a Vila Adélia e terminava no mesmo campão no centro do Setor Expansul. Rubinha, o craque de bola ficou em segundo lugar. Valdijan em terceiro, ambos, ganharam medalhas.

Também, eram distribuídos pães e leite para os moradores. Leninha Torquato comandava esta boa ação. Vicente promovia mutirões de roçagem no bairro, envolvia a comunidade em seus projetos comunitários. Na gestão dele passou á ter uma associação de moradores, descente. Ele conseguiu todos os objetos de uma cozinha industrial e máquinas de costuras para que as mulheres fizessem curso de corte e costura.  Torquato era mesmo um grande líder, polêmico, mas muito atuante e arrojado. Conhecia muita gente importante no meio político, militar e grandes empresários também.

Um dia, em uma de minhas muitas conversa com ele, ele me contou que ele foi o cozinheiro do ex-presidente Juscelino Kubitschek. E, que o prato preferido do ex-chefe de estado era galinha caipira ao molho com polenta.

–Seu Vicente, o senhor conheceu o doutor Jaime Câmera? –eu perguntei.

–Ahá, ali era um nordestino inteligente e honesto. O dentista que pôs pivôs nos dentes dele era meu amigo. E fui eu que ensinei á ele mastigar amendoins pra ele acostumar rápido com os dentes.  

Eu nem sabia que o bom homem era nordestino. Quanto á mastigação de amendoins, eu só me lembro de que o doutor Jaime Câmera vivia mastigando alguma coisa, mas se era mesmo amendoins eu não podia garantir. Seus dentes eram perfeitos, mas se eram artificiais eu não fazia a mínima ideia. De qualquer forma, Vicente Torquato foi aquele que fez com que a história do Expansul pudesse ser dividida em antes e depois dele.

Com ele na presidência do nosso bairro o entretenimento era garantido todos os meses. Tinha Gincanas com corrida de sacos. Salto em distância, e até troféu para o sujeito mais feio e á garota mais bonita do Setor Expansul.  Eu quis concorrer no quesito feiura, mas a Leninha Torquato não deixou eu me inscrever.   –Joãozinho, deixe de ser bobo. Você não é feio. Só precisa parar de ser atentado. – disse-me ela na ocasião. Eu virei fã número 01 da Leninha por causa desta confissão e orientação. Na verdade eu dava muito trabalho á ela. Eu á questionava muito, mas era tudo numa boa. Fazia parte da minha natureza curiosa sobre tudo que eu via de interessante numa pessoa. E, ela era muito interessante e agradável. Em noites de festas no centro comunitário, Leninha e eu arrasávamos no forró, lambada e bolero. A minha desenvoltura para danças era um ponto forte para atrair a atenção de mulheres mais velhas e meninas novas, mas até então, o negócio entre mim, as mulheres e as garotas ficava apenas em toques de dança. Eu era tão inseguro e medroso, que, uma vez um colega meu me disse que uma garota do grupo de quadrilha de festa junina estava afim de mim. O nome dela era Élida. Morena cor de canela, cabelos cacheados á Bobs, uma gatinha de quinze anos. Eu fui embora pra minha casa antes de começar os ensaios. Em minha casa eu ensaiei algumas falas para dizer á menina. -Aí, você está á fim de mim, eu também estou á fim de você. Que tal nós dois irmos trocar umas ideias lá na beira da fogueira? - Antes de eu mesmo me dar a resposta, embrulhei dos pés á cabeça. –que nada, eu vou é dormir! 

O galo cantou na manhã seguinte e... eu ainda acordado pensando na moreninha e conversando com ela, mentalmente.



                                                                                *


Na medida em que o Setor Expansul ia se desenvolvendo com a chegada de novas famílias e locais de entretenimentos e comerciais, eu também seguia desenvolvendo o meu lado comunitário, e com isso, me afeiçoando cada vez mais com os moradores e tendo participação direta no progresso do bairro. Como voluntário não remunerado eu trabalhava na construção da igreja católica e do centro comunitário. Devido o meu bom relacionamento com os pedreiros e serventes dessas construções, consegui com a ajuda do pedreiro Joaquim, uma vaga para trabalhar de servente na construção de um novo conjunto de casas que estava sendo construído no território do Expansul. Este conjunto viria á se chamar Jardim Ana rosa. Eu trabalhei neste conjunto na fase de reboco e cobertura. Pereira foi o meu mestre de obras na fase de reboco. Ele era um encarregado muito supimpa. Eu me recordo de um trágico acidente que aconteceu com ele e que quase o levou á morte. Numa manhã de domingo, ele passou com sua motocicleta por uma estrada, ao voltar á noite pelo mesmo caminho, alguém havia esticado um fio de arame de um lado á outro da estrada. Pereira quase teve a cabeça decapitada naquela noite. Não morreu porque ele dirigia devagar, mas, sofreu um profundo corte na garganta. Dias depois, ele apareceu no canteiro de obras e nos contou o acontecido com muita dificuldade para falar.

Com o meu amigo Joaquim, outra fatalidade aconteceu. Ele caiu do andaime quando ele rebocava o alto da parede da igreja católica. Houve fratura em sua bacia, e, o impossibilitou de exercer a profissão de pedreiro. Nós moradores, fazíamos cestas de alimentos para doar á ele e sua família. Eu o ajudava com o pouco que eu podia, mas era de modo anônimo, dando um litro de óleo, ás vezes um quilo de feijão e outras mercadorias que completava a cesta básica que entregue á ele por um morador do bairro. Para eu poder ajudar mais eu quis procurar o doutor Jaime Câmera e expor á ele a necessidade sabendo que ele iria ajudar o meu amigo. Mas, foi quando tardiamente eu fiquei sabendo que o doutor Jaime Câmera havia falecido. Eu fiquei muito triste. Não que eu quisesse ter ido ao velório ou no cemitério que ele foi enterrado, até por que, a minha presença não significaria nada á família dele, e também porque talvez eu não fosse aceito no meio de pessoas tão importantes presentes no velório. Na verdade, eu nem soube onde foi a cerimônia fúnebre e nem qual era o cemitério que ele foi enterrado. Com certeza, o falecimento daquele bom homem foi noticiado em rede nacional pelos telejornais, revistas e rádios na época, mas infelizmente, eu não ouvia rádio, não assistia á televisão e nem ia á bancas de revistas, por razão de eu não ter acesso á esses meios de comunicação no isolado Setor Expansul. Nunca possuímos televisor e nem rádio em minha casa. Na Vila Brasília eu ia na casa da minha tia Ovate para ver televisão e ouvir músicas no aparelho de som dela, mas, no Expansul eu não frequentava a casa de ninguém, ainda, até então.

O meu irmão Rildo, que ainda morava na Vila Brasília, foi quem me deu a triste notícia.  Então, eu apenas elevei o meu pensamento á Deus em favor do bom político, grande empresário e excelente ser humano Jaime Câmera.

Continuei sendo solidário com o meu amigo Joaquim até o momento em que ele conseguiu a assistência da igreja católica. Tempos depois, ele se mudou do Expansul.

A minha condição de vida era muito desfavorável porque apesar da minha pouca idade, eu sentia que a minha existência era para algum propósito, mas eu era impossibilitado de agir de acordo com esse propósito que, eu imaginava que fosse fazer algo de bom á todas as pessoas. Eu vivi a minha infância em meio á muita pobreza, e isso despertava em mim um desejo de ser alguém bem sucedido na vida, para eu poder ajudar os menos favorecidos. Talvez, todas as pessoas no mundo, em alguma fase de sua vida, já tenha tido este sentimento altruísta. Portanto, não seria apenas eu, quem desejava poder ajudar os outros. Mas, pelo menos, eu estava sempre tentando colaborar de um modo ou de outro. Hora, trabalhando de graça para quem não podia pagar. Carpia o lote, ia á mercearia comprar mercadorias para uma velhinha solitária que se chamava dona Abadia. Ajudava á construir barracos para as pessoas que não podiam pagar pela construção. Trabalhei na construção de duas igrejas evangélicas, sem nada cobrar pela mão de obra. Ajudei á levantar também o rancho paroquial da igreja católica. E ainda ensinava á dois meninos meus vizinhos de bairro, á começarem ler e escrever. Eles eram ainda mais pobres do que eu, e nunca haviam frequentado uma escola aos seus dez e onze anos de idade. Moravam com a mãe deles em uma barraca de lona e não tinham pai. Mas algumas pessoas diziam que o pai deles era um extramuros do Cepaigo. –criminoso que tinha a liberdade de sair às ruas durante o dia e voltar ao presídio na hora de dormir. 

Eu nunca vi este suposto pai deles. Faltava-lhes o que comer, e as suas roupas eram verdadeiros trapos.

Um dia, a dona Abadia me deu um frango como agrado por eu á ajuda-la quando ela precisava de mim. Eu não tinha nenhuma intenção de cuidar daquele frango, porque eu não cuidei direito nem dos meus periquitinhos. Ao chegar a minha casa, pedi a minha mãe que o matasse e fizesse dele, inteiro, um molho bem caprichado.  Enquanto o frango era preparado, fui á mercearia do Roxo e comprei um quilo de farinha e um refrigerante Baré Tutti-fruti. Eu me lembro de que o seu Roxo me perguntou rindo: – Você é baiano? –Goiano dos pés rachados. –respondi, falei obrigado, saí da mercearia e passei pela rua onde a dona Laura e os seus dois filhos moravam. Eles estavam lá. Segui para a minha casa. Minutos depois, o frango estava pronto. Pedi á minha mãe que tirasse os pedaços que ela quisesse para ela e o Nelino comerem no almoço e para o meu irmão Eurípedes comer na janta. 

–Cê num vai cumê não meu fie? 

–Agora não mãe. 

Peguei a panela com mais ou menos um quilo e meio de frango no capricho, e junto com a farinha e o refrigerante fui visitar a mãe e os dois filhos necessitados. Quando lá cheguei, eles roíam milhos que haviam sido cozidos em uma panela de alumínio, amassada e posta sobre as labaredas de um fogareiro que queimava serragem de madeira no terreiro. A barraca de lona preta tinha um cômodo apenas. 

Ah meu Deus, quanta pobreza! Os únicos pratos que vi eram de plástico cor-de-rosa. Quando eu entreguei á mulher a panela com o frango, o refrigerante e a farinha, os três foram colocar as espigas de milho em algum lugar dentro daquele cômodo e voltaram para fora. Os meninos estavam felizes e ansiosos para comer e beber logo o que eu havia trazido á eles. Laura ficou toda sem graça, mas conseguiu me dizer Deus te abençoe. Em seguida, ela desocupou a minha panela despejando o frango na mesma panela dela, a qual foi usada para cozinhar o milho. Eu tive que esperar a devolução do casco do refrigerante, por isso, eu fiquei ali no terreiro enquanto os meninos comiam e bebiam lá dentro. Laura ficou em pé na abertura da barraca que não tinha porta, somente um pedaço de tecido marrom fora colocado em lugar de porta.  Ela nem me olhava, e, eu também evitava qualquer tipo de olhar em direção á ela, e não dirigimos palavras alguma, um ao outro. Minutos depois o menino mais velho veio me entregar a garrafa. –Brigado. –disse-me o menino, e correu para dentro da barraca novamente.

Devido à absoluta pobreza desta e de outras famílias, ainda maior do que a minha, eu tinha que considerar que a minha situação não era tão calamitosa á ponto de me deixar inconformado. Ora, eu morava em uma casa confortável para os padrões residenciais da periferia de Aparecida de Goiânia. Comia carnes e verduras todos os dias, e tinha minha mãe, e o meu irmão que era mesmo como um pai para mim. Essa singela, porém digna qualidade de vida já era o suficiente pra eu fazer um paralelo entre o meu estado de pobreza e os das demais pessoas que viviam em miseráveis condições de vida.  Nestas minhas comparações eu ia aos poucos me sentindo cada vez mais conformado de que eu não devia me preocupar em possuir bens materiais para que realmente eu pudesse me valorizar como ser humano. Não que eu me alegrasse e me sentisse melhor convivendo com pessoas mais pobres do que eu. Era como se eu sentisse que havia encontrado o verdadeiro propósito para a minha existência. Mesmo não tendo eu condições financeiras para ajudar as pessoas, eu poderia ser útil á quem precisasse de mim. Com o passar do tempo, eu me tornei amigo de Laura e dos filhos dela. Foi quando eu os iniciei na leitura e na escrita. 

O terreno onde eles moravam não pertencia á eles. Eles o invadiram e moraram ali por nove meses. Depois eles se mudaram para o Setor Colina Azul. No início deste setor, muitas barracas de lonas havia lá.






                                            NA ESCOLA, O PRIMEIRO BEIJO



Eu não estudava no colégio de maior referencia nas, –digamos redondezas de Aparecida –, até porque, naquela época, o colégio Olímpio Alves era de ensino fundamental da primeira á quarta série. Havendo o aluno concluído a quarta série, ele teria que atravessar a rodovia BR 153 para estudar no colégio Machado de Assis, – este sim, era o mais requisitado na época, e os alunos deste colégio se sentiam os bambambãs das cercanias. A segunda opção seria o colégio Dom Pedro I. Ambos, no centro da cidade Aparecida. Por esta razão, Olímpio Alves era a terceira via.

Intimamente, eu preferia estudar no Colégio Alfredo Nasser na Vila Brasília. Aquele sim era o meu ícone de educação e me servia de parâmetro para comparar níveis de ensino e organização estudantil em relação á todas as instituições educacionais. Eu sabia que milhares de pessoas compartilhavam desta mesma opinião. Certa noite, eu perguntei á um aluno: 

–Você sabe onde fica o Colégio Alfredo Nasser? 

–Caramba, você estudava lá? –ele perguntou surpreso. 

–Não, nunca. Mas conheço o professor Alcides, e já trabalhei pra ele. -É claro que eu não revelei á ele que eu apenas engraxei os sapatos do pioneiro em educação, mas foi o suficiente para ele entender que eu era um camaradinha bem socializado. –á despeito da pobreza.

Em 88 já havia quatro salas de aula No Colégio Olímpio Alves, mas apenas uma funcionava com a professora Maria do Socorro dando aula ás quatro turmas na mesma sala e no mesmo horário noturno. Em 89 as quatro salas já recebiam os alunos de séries diferentes e em salas diferentes também. Houve um progresso notório no sistema de educação de um ano para o outro no final da década de 80.

E porque não falar que eu também estava progredindo no ponto de vista pessoal. Não que eu tivesse descoberto a fórmula da felicidade constante. Não. Mas, de repente, tudo para mim, em questões estudantis, valiam a pena. Durante o dia eu só pensava em ir á escola porque já estava envolvido com tudo que dizia respeito á comportamentos dos alunos, merendeiras, professores e diretoria. Enfim, eu estava interagindo com todos, usando a minha inteligência em geografia para dar cola ao colega do lado. A minha ignorância e indisposição para as matérias de frações matemáticas, as quais eu achava que não eram necessárias para mim, porque somar dividir, subtrair e multiplicar já era o suficiente para lidar com os números. Somas em chaves, prova dos noves, sobe um 1 e desce 2... e um monte de representações matemáticas que só me deixavam encafifado. Nestas lições, eu era quem pedia explicações ao colega do lado. 

–Sei lá. Eu também não sei pra quê tudo isso. –respondia-me um colega de pescoço grande e cabelos batidos cobrindo as orelhas. Carlos era o nome daquele magricela legal.  Era o meu melhor amigo de escola. Nos recreios a gente respondia os questionários manuscritos das garotas, ás quais achavam que o melhor filme era Lagoa azul. A maioria queria namorar um dos integrantes do grupo Menudo, ou Fábio Júnior. Até os plásticos das balinhas Nilva e Gells, – falava-se Gelis, – que eram usados para enfeitar os aspirais dos cadernos, fazia sentido, e, eu estava ali convivendo e vivendo do meu modo. Sendo tímido em certas situações e pra frente em outras. Sentindo-me igual e diferente de todos ao mesmo tempo, mas fracionando, somando e multiplicando as minhas experiências vividas.

Desde o momento em que eu entrava na sala de aula com o meu caderno único, tudo valia a pena para mim. O arrastar da carteira para posicioná-la próxima á mesa da professora Iraci, que era uma professora tão bela, que, eu dizia á mim mesmo: – que professora mais gata do mundo! Iraci era morena clara de cabelos longos e sempre presos em um molho só, jogado ás costa. Olhos castanhos escuros, rosto bonito e um corpo que de acordo a minha opinião sobre perfeição, era perfeito. Mas não era a beleza dela que me fazia me sentar perto da mesa dela.  A professora Iraci gostava da minha caligrafia e do nível do meu conhecimento em português e gramática, – escrita, porque pronunciado era relativamente igual aos de todo aquele  bando de adolescentes bagunceiros. –Então Iraci me pedia pra eu ir á lousa e copiar a matéria, enquanto que, sentada á sua mesa ela descansava as pernas, braços e mãos.

–Tá bom João, pode se sentar... então vocês entenderam? A conjugação do verbo Ser... “entendemos professora!” 

Será?

Após receber os elogios da professora e as reclamações de alguns colegas de classe por eu não dar tempo á eles para descansarem seus neurônios enquanto Iraci descansava suas articulações, eu ia seguindo a minha vida de estudante colegial, compenetrado nos estudos, ás vezes relapso também. Porém, eu estava aprendendo á me relacionar em um meio social o qual, todas as grandes pessoas admiráveis e respeitáveis passaram por ele: A escola.

Eu era um bom aluno e conseguia boas notas porque eu dividia o meu tempo entre trabalho para ganhar dinheiro, voluntário ajudando as pessoas e com as minhas leituras de gibis e literatura. Quando eu comecei á ler histórias em quadrinhos, gostava mais dos personagens da Walt-Disney. Ria muito com o azar do Pato Donald e desejava que o Gastão se desse mal em certas situações, mas ele só se dava bem. Do tio Patinhas eu tinha raiva da pãoduragem dele. Logo que eu ia crescendo, passei á ler Heróis Marvel e X-mem. Com gosto especial pelas histórias do Homem aranha e Wolverine. Com isso eu ia desenvolvendo a minha leitura e a minha escrita. E também já questionava sobre o drama vivido pelo Peter Parker em alguns aspectos da vida dele. Trabalho, amor e família. Fantasticamente eu me punha no lugar do aracnídeo. Com Wolverine eu absorvia a coragem e nervosismo dele. Achava eu que ele era o herói mais louco dos gibis.

Beyonder foi a minha coleção preferida. Eu não perdia um número daqueles gibis. Era muito bacana ver todos os vilões e heróis da Marvel em um mesmo planeta, lutando entre eles e ao fim ter que unir forças para vencer Galactus, o maior dos vilões. No final da missão Vigia, o deus do universo Marvel teve que interferir na história para ajudar os heróis á derrotar Galactus. –era mais ou menos assim.

Depois eu passei á ler Conan e Tex. O interesse por leituras de ficções variadas foi interrompido pela aquisição dos meus livros didáticos. Eu não os levava para o colégio, mas os lia muito em casa. Era forma de compensação de aprendizado porque eu não tinha a perspectiva de seguir estudando até me formar. E sabia que a maioria dos meus colegas de classe e de toda a escola, também não tinha o sonho de se formar educacionalmente. Com eles eu ia interagindo e aprendendo sobre relações humanas práticas e de convívio direto com pessoas do meu nível de pobreza.

Fui bom em redação também. Realmente, o meu hábito de ler muito e escrever os meus próprios pensamentos era a razão de eu sobressair bem em relação á alguns alunos. Mas, sempre tem aquela aluna ou aluno mais inteligente da turma em termos de matérias de conteúdo escolar. –não era eu. Era o Plínio Danoninho o do lado dos homens. Ele era um negrinho todo delicado e reclamão.  –Ai gente, que droga. Pare de conversar perto de mim, eu tô de saco cheio. –dizia ele pegando a carteira com todo cuidado para ir se sentar bem próximo ao quadro. Ele era meio afeminado, mas era sério e muito aplicado nos estudos. 

A nota dez da classe era a menina Geovana. Ela quase não aproveitava os quinze minutos de recreio e nem interagia com a turma. Muito parecida com a Nika Costa e cheia de não-me-toque. – Grandes personalidades também têm seus defeitos.

Um dos meus defeitos era a timidez com as meninas. Dançar funk me ajudava á estar mais em contato com garotas nas festas aonde eu ia. E já havia começado á dançar músicas românticas com algumas delas, até fui considerado “mole demais” por não ter chegado junto em uma garota que me deu mole. Quando eu voltava da festa, sozinho ficava á imaginar o que eu diria ou faria para conquistar a minha primeira moleca.

E então aconteceu.

Era hora do recreio quando os alunos e alunas se encontravam fora das salas de aulas. Eu estava debaixo da cobertura no centro do pátio. Meu colega Carlos Pescoço me chamou para conversar sobre garotas. A conversa girou em torno de quantas meninas bonitas estudavam na terceira série. Apontamos algumas delas e falamos sobre elas. Até que em um dado momento, pescoço me perguntou se eu não iria chegar junto em uma colega que se chamava Marta. Eu respondi que não, porque ela não me dava moral. Ele me chamou de prego e disse que ela não tirava os olhos de mim na sala de aula. Aquilo atiçou meu instinto e me fez recordar da olhada diferente que eu havia percebido ela dar em minha direção.  Foi meio que atravessado porque ela falava com a colega do lado, e eu notei que ela falava de mim para a amiga no momento em que eu arrastava a carteira para ir me sentar próximo á mesa da professora. Num dado momento, enquanto eu e Pescoço continuávamos conversando, chegou outros colegas puxando conversa. Eu só pensava em como abordar Marta, pois a experiência que eu tinha sobre garotas fora adquirida em silêncio e muita espera. Mas, naquela hora eu percebi que espera e silêncio não iria me dar respostas que eu só ás conseguiria se procurasse usar as palavras certas ou erradas.  E á partir desta reflexão eu criei e usei a minha coragem para chegar em minha primeira garota que era a minha colega de sala. 

De uma coisa eu tinha certeza: eu não deixaria que a nossa relação se transformasse em amizade para então tomar a iniciativa de começar um lance com ela. Ao me aproximar dela para uma conversa, seria tudo ou nada. Se ela me quisesse eu entenderia que quem me achava insignificante era somente eu. A minha pobreza, a minha cor, os meus cabelos encaracolados, não seriam tão relevantes assim. Mas, se eu queria uma resposta, teria que ter coragem.

Como tudo era incerto... Arrisquei.

Marta estava chegando com algumas amigas á nossa roda de amigos. Pensei que teria de deixar para a noite seguinte. Eu não iria conversar com ela na presença de todos ali. Carlos pescoço deu uma força tremenda ao chamar os demais para ir ao banheiro. Eles foram. Ficamos apenas eu, duas colegas e Marta.

As duas meninas falavam de tudo uma para outra, e de vez em quando me incluía na conversa. Eu apenas respondia: É. Ahã. Marta me encarava quando eu falava. Meu coração disparava, eu não sabia o que fazer ou dizer.  Marta não dizia nada, apenas me olhava nos olhos. Minhas mãos frias suavam. Eu olhava no meu relógio calculador e contava os minutos restantes pra findar o recreio. Até que num impulso incomum chamei-a para conversar no canto da sala do lado de fora.

Ela escovou os claros cabelos Chanel com os seus próprios dedos. Juro que pensei: tá no papo. Saí na frente, ela me acompanhou. Encostei-me á parede e Marta se pôs em minha frente com seus braços cruzados. Usei uma estratégia á qual eu não sei de onde surgiu. Perguntei á ela se ela sabia que um aluno estava á fim dela. Ela disse que não e nem fazia ideia de quem seria. Afirmei que eu conhecia um “alguém” que estava querendo namorar ela. Mas eu não ia dizer o nome dele. Marta insistiu que eu dissesse o nome do tal “alguém”. Pedi pra que ela adivinhasse então. Ela pensou um pouco e chutou alguns nomes dos nossos colegas de classe. Foram bem uns cinco nomes que ela arriscou. Eu negava dizendo que não era um daqueles. Ela arriscou outra vez dizendo os nomes de todos os que estudavam na mesma série que nós. Só não disse o meu, mas eu sentia que ela já sabia, pois dei a deixa para que ela soubesse. Foi uma esperteza que eu adquiri no momento. Se não funcionasse eu me sentiria tranquilo... Não. Eu não sairia tranquilo se ela me dissesse que sabia que era eu o garoto que queria paquerá-la, mas ela não me queria. Porém, o comportamento dela me deixava confiante. Ela segurava em meus braços e insistia para eu dizer logo, de quem se tratava. Chacoalhado por ela eu continuava me negando. Até que, ela me perguntou:

–É você que tá a fim de mim?

–Não sei. E se fosse? –repliquei.

–Eu topo.

E... nos beijamos.

Foi uma emoção única. Enquanto durava o beijo, eu pensava no ontem.

Talvez os adolescentes mais afoitos e atirados daquela época, beijasse uma garota pensando no que viria depois do beijo. Uns amassos, um picote, – era assim que dizia, – ou quem sabe uma transa? Mas quanto á mim, enquanto beijávamos, eu pensava em todo o meu passado. 

O beijo terminou, eu á apertei em meu corpo. Marta se atracou em meu pescoço e repouso a cabeça em meu ombro esquerdo. Suspirou num gemido ao sentir meus braços imprensando o corpo dela ao meu. Então ela me perguntou o que foi que eu estava querendo fazer ao apertá-la daquele jeito. Eu não a respondi. Apenas olhei para o céu ás costas dela e disse em pensamento: valeu Marta, valeu! Tinha gratidão em minha voz silenciosa.

No final das aulas eu deixava Marta no portão da casa dela, dava mais uns beijos e ia embora vibrando para a minha casa. Mas ficou em mim a pergunta: – será que ela gostou? A resposta veio numa noite. Estávamos em um grupo de quatro alunos. Sendo eu, Carlos pescoço e Marta. Como precisávamos de outro parceiro para fazer uma dissertação escrita sobre escravidão, pescoço convidou Plínio Danoninho para reforçar a nossa tese. Valeria cinco pontos. Plínio aceitou á fazer parte do nosso quarteto, e assim fomos para o canto da sala. Antes de começarmos á discutir sobre o que exporíamos sobre escravidão, Marta me entregou um bilhetinho, mas eu não li naquela hora porque tínhamos que elaborar a nossa dissertação.

Plínio quis usar a temática da lei áurea. Até começamos por aí, mas acontece que eu já tinha lido no livro Antologia de vidas Célebres que eu tinha o encontrado no prédio interditado na Avenida Goiás. O livro falava muito sobre os egípcios e das nações que eles dominavam. Por isso eu sugeri que a nossa redação fosse mais ou menos assim:

Os primeiros registros que se tem sobre escravidão no mundo, diz que á escravidão teve inicio no Egito antigo, e eu acredito que todos nós sabemos que a cor da pele dos Egípcios é escura. Os egípcios quando escravizavam os povos, não era por causa da cor de pele daquele povo, se fosse por isso eles não escravizariam seus concidadãos. O motivo sempre foi porque quando os dominadores conquistavam determinada nação, eles faziam dos habitantes daquela cidade dominada, seus escravos. E não importava a cor, mas sim á posição social e poder aquisitivo de cada um. Muitas das vezes, nem mesmo a boa posição social dos dominados servia para livrá-los da escravidão. 

É importante frisar que até mesmo alguns governantes daquelas cidades dominadas, viriam á se tornar escravos. E não se levava em consideração a cor da pele, se era branco, negro, mulato, índio, ruivo, enfim, se o indivíduo não era da linhagem faraônica, não pertencia á grande corte dos maiorais ou eram pobres material e intelectualmente, estes sim, seriam escravizados. Todos, sem exceção de cor, eram sujeitos á escravidão...

O texto seria muito grande, mas nós reduzimos porque não queríamos perder a hora do recreio. Plínio foi o primeiro á nos garantir que nós ganharíamos a nota máxima. Acertou em cheio. A professora Iraci achou muito interessante e chamou um de nós para ir á frente e apresentar o nosso trabalho oralmente para todos ouvirem. Plínio, Marta e Carlos pescoço queriam que fosse eu, mas eu suava feito tampa de panela, com vergonha. Ficou com o Plínio a tarefa. O negrinho levava jeito para discursos.

Na hora do recreio, depois de termos trocado alguns beijos, Marta me perguntou sobre o bilhete que ela me entregou.  “I love you”  Era comum á garotas, usar o inglês para se declarar á garotos. Mas a gente não levava a tradução á sério.

De qualquer forma, eu devo admitir que aquele primeiro beijo fosse o que mais marcou a minha vida.

Estávamos no ano de 1989, e era década da curtição e agarração para a juventude. Namoro sério e casamento não estavam em voga. Os garotos e as garotas queriam mesmo era se divertir e beijar na boca. Sexo era ato que se consumava apenas depois do casamento ou do amigamento, – como era chamada a união informal de um homem e uma mulher, – mas com idade adulta.

Se um adolescente fosse pedir aos pais de uma garota a mão dela em casamento, era comum receber uma resposta mais ou menos assim: “Toma juízo menino, você nem saiu das fraudas ainda”. Por isso, os garotos eram velhacos quando o assunto era relacionamento sério, as garotas evitavam ao máximo expô-los á esta situação, e por conveniência elas e eles embarcavam na onda do beijinho, beijinho, tchau, tchau. 

Mas eu parecia estar querendo quebrar essa onda. Joãozinho, Joãozinho, faça tudo que você puder enquanto você é jovem, porque no final você vai achar que foi pouco. 

Naquele ano eu passei para a quinta série, mas desisti de estudar. Se eu seria um profissional acadêmico, eu não cogitava sobre esta questão, mas no colégio Olímpico Alves iniciei na arte da conquista que, para mim não foi ensinada por um tutor formado, nem por um colega conquistador, tampouco, eu á encararia como á uma arte, sim, apenas uma consequência da vida pelo simples fato de eu ser eu mesmo: medroso, corajoso, desprezível, aceitável, bonitinho, feinho.   

Eu era tudo isso em toda a minha vida e sabia que continuaria sendo enquanto eu vivesse, mas aquele garoto que tinha coragem e valentia para brigar, bater e apanhar nas ruas da cidade começaria á aprender administrar seus defeitos e qualidades.

Não que eu pensasse que tudo na vida se resumia em garotas, mas realmente houve grande mudança na minha maneira de pensar á meu respeito. Sempre fui e continuaria sendo muito observador em relação á comportamentos, personalidade e caráter das pessoas, fosse elas homens ou mulheres. Meninos e meninas. Confesso que este meu espírito analítico permitia que eu não levasse muitos foras em minhas abordagens ás meninas para uma paquera. No entanto, em estava sempre atrás da maioria dos meus amigos e parceiros do grupo Nova geração. Eles eram corajosos e arriscavam conquistar garotas á primeira vista, enquanto que eu esperava a oportunidade, a ocasião e o momento oportuno para então me aproximar de uma delas e tentar levar um lance mais íntimo. Eu sabia que o meu comportamento em relação á garotas, não era por eu ser experiente no assunto paqueras. Era por eu ter medo de ser dispensado por elas.  

Um dia arrisquei ser corajoso com a irmã de um amigo meu. Ele tinha cinco irmãs, – ainda tem–, e uma delas era bem bonita e se dava muito bem comigo. Numa noite quando voltávamos de uma festa, ela e eu viemos abraçados, então eu disse á ela que eu estava afim dela. Ela me disse que gostava muito de mim, mas era como se eu fosse um irmão dela. Fiquei decepcionado, mas continuamos sendo amigos.

Ás vezes, quando acabava a festa, eu e alguns amigos levávamos as meninas ás casas delas, e, uma delas, gostava de vir abraçada comigo para me contar sobre a paixão dela por um amigo meu. Eu era o confidente dela á ponto de algumas pessoas acharem que a gente vivia se garrando, mas era pura amizade e companheirismo, porém, se eu não tivesse levado o fora da irmã do meu outro amigo, eu tentaria alguma coisa á mais com aquela amiga também. Mas só o fato de eu andar abraçado com algumas garotas já elevava a minha moral com as outras, porque de vez em quando uma gatinha vinha me perguntar se eu estava curtindo com a fulana, – curtindo. Era assim que se falava –, com essa ou com aquelas. Aí, eu aproveitava a chance de “curtir” com a curiosa. 


Eu já me sentia um poeta solitário, vivia criando metáforas e inventando história á respeito do sexo oposto. Não consigo me recordar de todos os textos que eu escrevia pensando nas garotas que me faziam tremer as pernas, o resto do corpo e sentir o coração bater á mil por hora. Mas, nos meus dezesseis anos de idade, em uma de minhas divagações sobre mulheres de todas as idades eu escrevi mais ou menos assim: “Garotas, jovens e mulheres maduras”. São elas que nos levam á loucura numa perda total de juízo, nos transformando em animais irracionais destemidos. Somos domados por elas que nos tornam feras inofensivas e incapazes de feri-las para não deixá-las escaparem de nossas garras.

Desde os primórdios do tempo, quando o ser humano ainda se comportava como animais selvagens, com suas bordunas eles batiam num ponto da cabeça da fêmea, mas com cuidado para não tirar-lhe a vida. Se outro tentasse lhe tirar à presa, a borduna seria usada como arma de defesa desferida com forte violência para proteger não somente á si, mas o a sua melhor caça, seu troféu, sua fêmea; a mulher.

Para nós homens, sabemos que dinheiro, carros, fama, não teria valor e nem necessidade alguma se não existisse a mulher. Tudo gira em torno delas, e, o que fazemos ou deixamos de fazer tem que encontrar respaldo no fator mulher.

O nosso primeiro medo não é ser despedido do emprego, não ter fama e nem dinheiro, sim, de não ser correspondido na tentativa de obter sucesso com uma garota, jovem ou mulher madura. Quando se perde um emprego, seja ele bom ou ruim, a gente procura outro e ao encontrá-lo fica tudo resolvido. Se não somos celebridades nos contentamos em sermos pessoas comuns tocando a nossa vida. Se perdermos dinheiro, com o tempo a gente sai do aperto. Enfim, sempre damos um jeito de entender que no que depender unicamente de nós para termos êxito em nossos negócios e não conseguimos ter, com um pouquinho só de jogo de cintura tudo será compreendido e resolvido. Quanto á mulher, você sabe que sempre existirá um cara mais pobre, incompetente, anônimo e mais feio do que você, mas que, ele tem uma garota, jovem ou mulher madura. Então acabamos percebendo que o nosso maior desafio e ascensão ao sucesso é sem sombra de dúvida, ter uma resposta positiva em uma primeira tentativa de conquistar uma garota, jovem, mulher madura ou até mesmo uma velha com dentaduras. Que assim o diga quem já superou todas as faixas de idades da vida, mas ainda sabe que elas, as mulheres, são as responsáveis pelos nossos sucessos ou fracassos no ponto de vista de realização pessoal.

Tudo que eu escrevia fazia referência ás minhas perdas, medos e desejo de conseguir logo uma garota. Eu vivia ensaiando o primeiro beijo. Lembro-me de que eu unia o dedo polegar ao indicador. -com a ponta do polegar chegando ao meio do indicador faz-se salientar um nervinho macio abaixo do indicador e rente ao polegar. Eu ficava beijando esse nervinho até quase desbotar a cor da pele nesse local.

Eu sabia que se eu recebesse um não da primeira garota, eu estaria liquidado para sempre. Em contra partida, se ela me aceitasse todas as minhas frustrações, insucessos e medos teriam sido superados. Nem todos pensam assim, eu sei, mas eu pensava mais ou menos assim naquela noite na escola.

A partir do primeiro beijo que foi o único antes do sino anunciar o final do recreio eu entendi que a maioria das pessoas que eram insatisfeitas com o seu porte físico, gordo ou magro de mais, negro ou albino, ou que tenha qualquer tipo de preconceito contra si mesmo, é simplesmente pelo fato de julgar sem tentar buscar saber a opinião dos outros sobre ele.

Numa noite clara de lua cheia, eu fiquei olhando para a lua no céu, e refletindo:

Por que Paulo Henrique Aguiar e seus irmãos eram as pessoas que eu admirava? Porque seus pais eram ricos e seus quatro filhos tinham perspectivas de vidas cheias de sucesso. Mas como eu enxergava esta realidade era o que influenciava á minha autoestima: – abaixo do nível mínimo de orgulho próprio.

*Os amigos do Paulo Henrique, os professores e diretoria também souberam que ele explodiu o banheiro da faculdade. Porém, ele não passou sequer um minuto dando explicações á ninguém, porque ele era rico. –foi assim que eu encarei aquela situação. E se eu tivesse simplesmente suposto que Paulo Henrique era um riquinho rebelde, esperto e inteligente?

Mário Lúcio Avelar Filho me disse na mesa do café da manhã, que as pessoas boas morrem. O que eu pensei naquele momento: – os meus irmãozinhos e o meu pai eram bons, o meu irmão mais velho judia de mim. –será que não daria para eu parar de ser tão egoísta e analisar o que ele havia dito, em outra esfera que não fosse o meu próprio umbigo? –resultado: cheguei aos meus dezesseis anos querendo que o meu irmão mais velho sumisse do mapa, não que ele morresse, mas desaparecesse da nossa casa, do nosso bairro e de minha vida enfim.

A amiga do Flávio Avelar me chamou de neguinho bom de volei. –Merda, não daria pra eu ter entendido que aquela garota bonita e rica ao me escolher como parceiro estava demonstrando que o fato de eu ser negro, não tinha influência alguma em um possível relacionamento de amizade entre duas pessoas de classe e cores de peles diferentes?

Eu fui um menino que julgou serem arrogantes e dignos de desprezo, todos os integrantes de um grupo musical no auge da carreira, apenas pelo simples fato de ter visto somente o mais novo do grupo dando tchauzinho da janela do Umuarama Hotel para um bando de garotas que ansiosas que aguardavam a aparição dos cinco integrantes do grupo. Quanta ignorância. Eu passava ali por acaso naquela hora. Talvez, o grupo inteiro já havia repetido o mesmo aceno para as fãs, todos eles já tivessem distribuído autógrafos. –estou me referindo ao grupo Menudo. Nesta situação, quem seria o arrogante e desprezível?  Os famosos que tinham o compromisso de se prepararem para o show e fazer bem feito o que eles eram pagos para fazer, ou eu, que, com a minha falta de consideração e compreensão com a pessoa que eu mais achava humilde e necessitado de proteção por causa de sua saúde debilitada, eu o desprezei e não queria mais andar com ele, porque naquele mesmo dia eu encontrei maconha no bolso do blusão camuflado dele e não aceitei a explicação que ele me deu: – Não joãozim, eu não sou maloqueiro maconheiro não. Eu só uso isso porque eu sou doente, e uns amigos meus me disseram que isso é bom pra mim. –Mentira. Eles também fumam essa porra. –foi o que eu asperamente falei ao meu próprio irmão.

Que fosse mentira, que fosse verdade; quem era eu pra julgar e abandonar uma pessoa tão frágil e humilde quanto aquela? Então eu passei a não andar em grupo, porque eu supunha que amigos traziam más influências.

Algumas pessoas do meu meio social achavam que em alguns casos eu estava coberto de razão, afinal de contas, concordâncias em pontos de vistas entre as pessoas, sempre irão existir quando se discutem sobre estas questões. – e era isso que alimentava o meu ego. Outros poderiam discordar e achar que eu era um menino sistemático demais. –isso também inflava o meu ego, porque o meu pai era assim.   Mas, em o que é que toda a minha ética, meu orgulho e minha ótica sobre fatos e temas da vida. estava me transformando?  Em um adolescente que julgava a vida, o mundo e as pessoas considerando apenas as suas próprias perguntas e respostas produzidas em seu consciente em função dos seus medos e ecos de um passado tão recente ainda. –este ignorante era eu antes do primeiro beijo.

Eu queria ir ter com o homossexual da empresa para ter uma conversa com ele sobre a minha dispensa do trabalho. Mas eu tive medo de que ele me dissesse que ele não tinha nada á ver com aquilo, e que eu fui mandado embora porque a patroa não gostava de mim, porque eu era negro, ou que na verdade fora o seu Airton Machado que armou toda aquela cena para ele não ter que me cumprir a promessa que ele me fez. Eu não me enturmava com os meus amigos, porque eu não confiava em amizade de ninguém, porque o meu contra–mestre e o meu professor de capoeira me deram razão para isso. Serginho era mal com os alunos de capoeira. Rayovac era bonzinho com todos dós. Em uma primeira discussão entre os dois, nós descobrimos por intermédio do próprio Serginho, que, era Rayovac quem o mandava pegar pesado com a gente. Para mim, ambos eram falsos.

Eu havia parado de ser competitivo porque em um torneio de saltos eu fiquei em quarto lugar, quando na competição tinham apenas quatro correntes.

Eu achava que os ecos da minha consciência era o próprio Deus. E se eu o desobedecesse, eu estaria cometendo um grande erro.  Meu Deus, eu era um menino que vivia a vida de acordo o que eu dizia á Mim. E que achava que as pessoas também tinham de mim a mesma impressão que eu tinha de mim mesmo. Até aos meus dezesseis anos de idade eu era um menino que me encontrava no personagem Marcos e seu cãozinho Amerigo. –hoje eu nem me lembro mais do que se tratava as história desses dois personagens, mas só sei que elas eram muito tristes. Quando criança, eu até chorava assistindo aquelas historinhas na casa da minha tia Ovate. 

Eu era um garoto com dezesseis anos de idade e ainda trazia traumas adquiridos em uma infância, que fizera de mim, um adolescente que achava que para se ter valor pessoal,  tinha que ser rico. Porque Paulo Henrique Aguiar e seus três irmãos filhos de Nair Almeida Aguiar e Mário Lúcio Avelar, eram os meus ídolos, porque eram ricos e gentes boas. Eu era um adolescente que só se masturbou com quinze anos e alguns meses, porque achava que era pecado ter atração sexual por uma mulher, e que eu não seria aceito para uma paquera com uma garota, porque um coleguinha de classe disse á mim que a menina que eu gostava não gostava de mim. E também por achar que toda menina que me tratava com carinho e atenção, na verdade sentia era pena mim.

A partir do primeiro beijo teria eu vencido os meus medos? Não. Admito que não. Mim seguia produzindo ecos em minha consciência. Os meus medos e coragem continuaria me seguindo por onde eu andava. Minhas opiniões sobre os temas da vida foram mudadas e algumas delas permaneceriam. Mas o que importava era que eu chegaria á algum lugar.

 “Olha o aviãooo”. 

-Joãozinho, quanto é seis mais cinco? 

-Ô mãe, qual é o número depois de dez?    

-Onze meu fie. 

–Onze. Ganhei.

Ah! Eu tinha apenas dezesseis anos e já sentia a nostalgia de uma infância tão recente. Ela fora cruel, amarga, mas tambem havia sido doce, mágica. 


    Ao me envolver com as meninas eu teria que arrumar trabalho fixo para ganhar dinheiro para garantir a situação. Emprego de carteira assinada era um pouco difícil de encontrar. O Expansul estava se desenvolvendo em ritmo lento ainda, mas eu seguia capinando lotes e trabalhando nas construções das casas dos novos moradores que chegavam por ali. 

Fui trabalhar de empregado na casa de uma baiana sem marido, engraçada, muito honesta e mãe de Sandra, uma moça de dezessete anos de idade. Mãe e filha me proporcionaram momentos hilários e também muito dignos de nota. Dona Ana era branca, com cabelos lisos e ralos. Mãe e filha não tinham nada á ver uma com a outra, fora o fato de seres muito amigas. Sandra era morena, magra e de cabelos longos e lisos das raízes até próximo ás pontas que formavam ondas voltadas para cima. Ela confiava em mim á ponto de até me pedir para bater a clara do ovo quando ela ia preparar um bolo em dias de sua regra feminina mensal. Ela dizia que quando se estava naqueles dias, mulheres não deviam chupar limão, comer peixe e uma porção de outras coisas. Sandra não me tratava como á um “empregadinho” Tinha-me como amigo confidente. E ás vezes como á um menino inteligente, idiota, bonitinho e feinho, em situações variadas. Éramos confidentes um do outro. Ela e eu não trocávamos beijos na boca, ou qualquer outro carinho de conotação amorosa. Mas ela havia me passado alguma noção, como: o que eu devia dizer e fazer de modo bem simples para uma garota numa situação de simples paquera. Depois eu complicava tudo com os meus anseios e receios. Quando tive coragem de falar com Marta, eu recordei de algumas dicas que Sandra me passou. –mas eu não ás usei. A engabelação improvisada veio bem á calhar.

Na noite anterior ao meu início nas paqueras, eu lavava as louças usadas na janta que ela preparou e, nós, ela a mãe dela e eu comemos, e levei á pia para lavá-las. Ela fez um monte de comentários sobre como eu lavei as vasilhas, – mal lavadas, – mas rindo feito uma tonta. Então, recomeçou á lavar algumas daquelas vasilhas, dizendo que quando eu me casasse, a mulher ia ter que se matar na cozinha, mesmo estando em resguardo. –prende o meu cabelo aqui, ô menino ruim de serviço. Depois que eu apertei a liga nos cabelos dela, ela me falou que eu tinha que arrumar um emprego de homem, porque garotas não gostavam de garotos que não tinham dinheiro, e muito menos de uma “bichinha” que trabalhava de empregada. – e deu aquela risada marota. Talvez, ela já soubesse que eu não havia arrumado uma garota. Aí eu emendei: Dá moral pra mim pra você ver quem é a “bichinha”. –eu tô falando sério. –ela ratificou. Sandra conversava muita abobrinha, e não daria pra eu me lembrar de tantas asneiras que ela dizia, mas o que ela falou naquela hora, mexeu comigo. Quando eu enfim, dei o primeiro beijo na Marta no colégio, Sandra foi a primeira á saber do milagre.



                                                        NOVA GERAÇÃO FUNK


Eu e o meu primo Manoel, fomos morar em um barracão que o meu irmão Eurípedes construiu em um lote dele no mesmo setor, em outra avenida. A minha liberdade absoluta estava garantida. Porém, a pobreza tornou–se ainda maior. Vivendo com a minha mãe na casa do meu irmão Eurípedes, eu tomava banho em um banheiro com chuveiro elétrico. Tinha geladeira e ferro elétrico para passar as minhas roupas. Água encanada, enfim, uma casa trilhões de vezes mais confortável e receptiva para eu receber as visitas de algumas garotas. No meu novo esconderijo, só havia uma beliche de dois leitos, um fogão á gás, um velho guarda–roupas e bancos feitos de madeira lascada á facão. Improvisei um fogão de lenha para esquentar numa lata a água do banho.  De qualquer forma, eu estava satisfeito. Felicidade, era o meu nome.

O funk não era algo aprendido em escolas de danças, pois o funk contagiava as pessoas. Era como um vírus que impregnou nas veias das pessoas de uma época, a qual, os dançadores conseguiam se diferenciar um dos outros e também se identificar á eles por intermédio do seu modo de dançar funk em todos os seus variados estilos. No movimento funk, individual ou em grupos não existia a diferença entre negros e brancos, pobres e ricos, bonitos ou feios. Todos eram simplesmente, ou, extraordinariamente, funkeiros.

Se eu dissesse que fui eu que ensinei os meus parceiros á dançarem funk, estaria sendo mentiroso. Mas fui eu quem uniu aquela galerinha dispersa que nem vivia em grupo e era cada um na sua. Nós nos encontrávamos no campo de futebol e ás vezes, íamos á represas juntos. Naquele dia, eu e Fabiano conversávamos sobre funk. Não tínhamos um aparelho de som, mas ele dançou do jeito dele. Desengonçado, com as pernas duras feitas tacos de golfe. Eu mostrei á ele o meu estilo. 

–Nossa! Com quem você aprendeu dançar assim? 

–Geração 2000. –respondi.

Ele não conhecia aquele grupo. Pondera! O moleque não ia á festas ainda. Mas já fumava cigarros. Ficamos por ali conversando. Até que, Cristiano, o irmão gêmeo dele chegou trazendo dois cigarros, e discutindo com o Fabiano. Eu preparei o café. Nós três nos sentamos no piso de cimento rústico da pequena área do barracão de dois cômodos que eu morava. A rusga entre eles terminou quando começamos á passar o cigarro de um para o outro. Naquele dia eu comecei á fumar Porém, devo dizer que não houve nada de muito estranho naquilo. Muitos garotos já fumavam naquela época. Só não me esqueço da tontura nas primeiras tragadas e do fato de que a minha mãe não poderia saber.

Fabiano saiu. Eu pensei que ele não voltaria, mas de repente ele voltou com o Erick Luciano, o Pituta. Em seguida chegou o Carneirinho. E o Sandrinho. A fama do moleque da Vila Brasília já corria pelo Expansul. Falei sobre o funk, e, todos mostraram o que sabia. Dias depois eu montei o meu grupo de funk.

Edivan. Pituta, Carneirinho, Sandrinho, Cristiano, Fabiano e Wébton gato, Valdijan, – este não dançava, – me considerável como líder do grupo, mas eu não me comportava e nem me considerava como á um líder, porque as minhas experiências vividas me ensinou á me portar com simplicidade e humildade de espírito.

Pituta escolheu o nome para o grupo. Seria Boys de rua. “Garotos de rua”. (You e Boys são as primeiras palavras em inglês que qualquer um analfabeto aprende á traduzir). Todos vibraram e aceitaram o nome. Eu pensava: – esses boyzinhos não sabem o que é ser garoto de rua. Mas eu não queria ser o único á ir contra a sugestão do nome, feita por Pituta.

Numa noite de domingo, alguns do nosso grupo, voltávamos de um Rock in rua que acontecera no Pingo d´água Chopp. Os endiabrados resolveram pegar jabuticaba em um terreno colado com á dita choperia. Eu só observava do meio fio da rua. Não era um roubo, pois tinha muita gente ali, inclusive o dono. Depois das jabuticabas, fomos embora. Ao chegarmos de frente ao cemitério, Pituta xingou uns caras que estavam dentro de uma Brasília, chamando-os de bundas-moles, para então dar o recado: –aqui é o grupo boys de Ruas, seus otários. Os caras deram meia volta e vieram com tudo em nossa direção. Ficamos eu e Carneirinho para trás porque não íamos correr, pois, não mexemos com ninguém. –John, aqueles caras vão pegar a gente. –disse Carneirinho. (eu era o Boy John) – vamos correr porra. –falei.

Vazamos atrás dos outros. Atravessamos a BR com mais de mil por hora. Os caras fizeram o retorno e vieram em nossa captura. Separamo-nos. Cada um por si. Deus por todos. Aquela noite foi louca. Não dá pra descrevê-la corretamente. Quando nos reunimos novamente, em frente à casa de Cristiano e Fabiano, estávamos todos sãos e salvos. Cada um de nós comentou o ocorrido e como fizemos para nos livrarmos dos perseguidores. Foi naquela noite que eu dei a minha opinião sobre o nome do nosso grupo.

–Pituta, você fez uma coisa errada.

–Por quê?

–Aqueles caras não conheciam a gente, mas quando nós comprarmos as camisas e pôr nelas o nome do nosso grupo, eles vão saber quem somos.

Gato enfezado disse: –Você é burro demais, seu otário. Pra que você disse que nós somos os Boys de Rua? –E agora Joãozinho?

–Que tal Nova geração Funk? –sugeri.

Os meus parceiros: – Iuhhull é isso aí. Vai ficar massa esse nome nas nossas camisas. Edivan empolgado perguntou: –que dia que a gente vai comprar o nosso uniforme? Vai ser branco ou preto?

Nossos uniformes de início eram camisetas brancas de mangas curtas. O segundo eram camisetas pretas de mangas longas. Nas partes traseiras e nas mangas das camisas foram escrito o nome Nova Geração. Na frente sobre o peito escrevemos o nossos codinomes. Boy Jonh. Pit boy. Cat boy. Sander Boy. Boy Red, e outros que eu não me lembro mais.

Nosso grupo progredia á cada apresentação pela cidade.

Depois daquela noite de fuga espetacular seríamos reconhecidos por sermos os garotos mais novos á dançar em grupo em toda Aparecida de Goiânia.

O grupo Nova Geração passou á ter certa notoriedade, ainda que nós não fôssemos os melhores e nem os mais famosos entre os demais. Ratos de praia, comandado por Romualdo era bem mais reconhecido na região central e arredores de Aparecida. Explosão funk também era um dos grupos que já deixavam as suas marcas registradas na era do funk de grupo. O nosso diferencial era o estilo e as idades dos integrantes. Eu era o mais velho com dezessete anos. Os outros iam de quatorze á dezesseis. Éramos menores de idade, e por esse motivo chamávamos á atenção dos festeiros por onde quer que a gente fosse. Sobretudo, das garotas.

Havia um elo entre nós e o grupo Geração 2000 que era a o grupo mais respeitado da grande Goiânia. Mas eles frequentavam os clubes Carneiros, Sargento, Cruzeiro, Social feminino e outros grandes clubes de festas em Goiânia.

Os integrantes do grupo Geração 2000 eram os meus amigos de infância, meu irmão Rildo e meu primo Júnior, e esse fato permitia que eu aprendesse alguns spicks com eles e importá-los para as nossas mixagens para a composição de nossos passes de dança. Nossos treinos e ensaios antes de uma apresentação e outra, aconteciam na casa do nosso parceiro Pituta, o mais envolvido com o funk arte. De todos os membros do nosso grupo, Pituta era o que levava a dança como sendo uma arte que deveria ser levada á serio. Era ele quem corria atrás de eventos culturais para as nossas apresentações e também nos inscrevia em concursos de funk. –a nossa melhor posição foi o terceiro lugar em um concurso realizado no Clube recreativo, o clubão.  Devido á disposição e influência do Pituta, nós íamos fazer a abertura do Cine teatro Mário Melo no centro de Aparecida. Ensaiamos bastante, mas no dia marcado, alguns do nosso grupo deram pra trás, e então tivemos que desistir. Pituta ficou uma fera.

No começo ensaiávamos sozinhos no salão do bar do padrasto dele na Vila Adélia. Depois de muitas apresentações apenas no clube recreativo, algumas garotas se juntavam á nós para assistir os ensaios. Com isso surgiu o Grupo Gatas Eletrônicas. Mas, elas não dançavam o funk de origem e competitivo, mas faziam alguns passinhos em grupo, o que era bem legal, pois, Nova Geração e Gatas Eletrônicas, colocavam quase todos os clubeiros e clubeiras á dançarem juntos numa mesma coreografia de movimentos fáceis e repetitivos. Era bem bacana.

Alguns garotos da Cidade livre queriam entrar para o nosso grupo, mas era inviável por razões de deslocamento para os ensaios, e também porque alguns moradores daquele bairro e do Expansul não se davam bem. Brigas entre eles eram frequentes. Era o que chamávamos de Rechas, ou seja, rixas. Dias depois surgiria o grupo Top Golden Funk, também formado por meninos da nossa faixa de idade.

O funk era o cartão de apresentação de qualquer adolescente ou jovem daquela época, e era também o divisor entre os ditos “pregos e os caras pras cabeças” Funkeiros conseguiam agradar as garotas, apesar de serem chamados de malas também.

Numa noite de sábado, eu e os meus parceiros fomos fazer uma apresentação no bairro Jardim dos Buritis. Era em um colégio na ocasião. Pituta foi quem combinou com o DJ a nossa apresentação naquele local.

Quando chegamos ali uniformizados com as nossas camisetas pretas de mangas longas, algumas meninas vieram se apresentar á nós e ficamos trocando ideias sobre elas e o nosso grupo. Quando o DJ anunciou o nome Nova Geração e nos convidou á irmos para a pista, uma grande roda se formou e nos pomos no centro dela e começamos á dançar. As garotas gritavam o nome Nova Geração e batiam palmas. O comportamento delas fez com que alguns caras ali não gostassem de nos ver sendo ovacionados por elas. De repente, o meu parceiro carneirinho errou o passe, mas continuamos. Eu me posicionava na frente do grupo e não percebi o que foi que houve para o desequilíbrio dele. –vaia masculina comeu. Logo em seguida surgiu um cara com uma garrafa de cerveja e ficou atrapalhando a gente dançar. Como ele insistiu, eu dei–lhe um empurrão tão cabuloso que ele abriu uma brecha na roda. Pronto, a confusão estava armada. Fomos parar no meio do gramado do colégio. O cerco se formou. As meninas pediam para os marmanjos não baterem em nós. O DJ parou com a música e ameaçava acabar com a festa caso a briga continuasse. A multidão nos encantoou próximo ao alambrado e ameaçava trucidar á nós, que, éramos oito torando agulhas, mas prontos para apanhar e também dar uns sopapos. Meninos menores pegavam pedras, paus e tudo que viam pela frente para participarem da briga. Os maiores de idade queria que brigássemos no mano á mano um com o outro. De qualquer forma, estávamos perdidos. Aquela história de mano á mano não ia rolar, mas deu a oportunidade para o gato mostrar suas garras e instinto vingativo.

Wébton gato, o Cat–boy era o mais nervoso e de mais atitude em uma briga.

Então ele começou á discursar: – É o seguinte, nós viemos aqui para dançar. A gente não queria briga, mas se vocês querem bater na gente, então nos matam de uma vez, porque senão, eu mato vocês de um por um. –E, ele falou um monte de coisas.

Eu permanecia de braços cruzados e esperando o resultado das ameaças que ele fazia. De repente, o cara que eu o tirei da roda com um empurrão, surgiu com uma garrafa quebrada na mão erguida para cima. –morri. Pensei. –Por sorte, o indivíduo estava tão embriagado que ao invés de acirrar ainda mais o linchamento, ele fez foi ameaçar todo mundo que quisesse acabar com a festa. Eu não sabia quem era aquele sujeito, mas, ele salvou a nossa pele. Fomos salvos pelo gongo, ou melhor, os goles á mais que o bom samaritano bebeu naquela festa.

Quando alcançamos a rua, corremos feitos loucos para a BR 153 acreditando que os caras não iam deixar barato. Atravessamos a rodovia e íamos embora correndo á pés, mas um caminhoneiro que dirigia uma carreta de transporte de gado nos deu carona. Voltamos para as nossas casas, fedendo á esterco, mas inteiros, sãos e salvos.

O interessante é que quando garoto, a gente leva a vida na aventura, e sabíamos que mais brigas viriam depois. –e quantas mais vieram! Mas enquanto isso, Nova Geração ia seguindo a onda funk e nos tornávamos cada vez mais unidos e comprometidos em deixar a nossa marca em todo lugar que a gente ia para curtir a nossa adolescência rebelde no bom sentido da palavra. O que eu aprontava nas ruas, a minha mãe não ficava sabendo. Em casa eu ainda era o Joãozinho que á ajudava nos afazeres domésticos e cuidava do maninho caçula.

Pensava eu que os meus parceiros eram todos garotos que tinham uma boa relação familiar, mas com o tempo eu fui percebendo que alguns deles eram filhos de mães separadas de seus pais, enfrentavam uma vida familiar difícil e também cheia de traumas. Observando o comportamento de cada um deles, eu fui me tornando o conselheiro do grupo, enfatizando sempre o bom convívio com seus parentes e o mais sublime de todos os conselhos extraídos da escritura sagrada: honrai pai e mãe.

E assim, eles me respeitavam bastante e me consideravam de igual modo como eu os considerava. Amizade verdadeira, companheirismo e união.  Fui descobrindo em mim, um adolescente que sonhava tornar melhor a vida das pessoas e sendo o confidente daqueles que se tornavam meus amigos. Por este motivo, entre ensaios e apresentações de dança, eu conseguia fazer com que nós ajuntássemos forças para cuidar do quintal da casa de um e outro e outras tarefas braçais.

Quando um do grupo não tinha dinheiro para a compra do ingresso na portaria do clube, a gente fazia a famosa vaquinha e garantia a presença dele na festa. Quando ninguém tinha grana, eu desenhava o carimbo de entrada nos pulsos de cada um deles e no meu. De qualquer jeito a gente dava um jeito para entrar no clubão para dançar o nosso funk e paquerar algumas gatinhas também.

Francamente, sem modéstia, eram garotas á rodo. Oh fase boa!


Mais garotas e mulheres, cigarros e bebidas, brigas e fugas espetaculares.

Á partir de 1990 o nosso grupo começaria a se desarranjar. Nova Geração Funk duraria até 1994. Aos poucos fomos dispersando e passamos á dançar, de modo individual, embora ainda continuássemos sendo amigos.

Eric Luciano o Pituta foi acidentado ao tentar fazer o retorno na BR 153 montado em sua bicicleta. Alguns dias se passaram e, ele pôde então receber visitas na enfermaria do hospital Santa Helena. Eu, Carneirinho e Edivan, fomos visita-lo. O acidente não o matou, mas machucou bastante a cabeça, rosto e infelizmente, a perna direita dele teve que ser amputada pouco abaixo do joelho. Tempos depois ele foi para o hospital Sara Kubitschek em Brasília. Após muita fisioterapia, Pituta recebeu uma perna mecânica. Mesmo sem a perna direita, ele arriscava uns passos de funk, mas o Hip-hop o roubou de nós. Anos depois ele criou o grupo musical Conexão suburbana. Compunha, cantava e lançou Cds com as suas música. Hoje ele compõe, canta e lança no mercado, Cds de Rap evangélico. È formado em letras e é também um grande pregador evangélico.

Edivan é funcionário da prefeitura municipal de Aparecida de Goiânia. Casou-se com Núbia e tem duas filhas e uma netinha.

Alberto o Carneirinho é casado, pai de família, mecânico de automóveis e dono de uma oficina e uma loja de peças automotivas.

Sandrinho atualmente é escriturário trabalhando no mesmo emprego á mais de vinte anos.

Cristiano é costureiro e tem sua loja de roupas. Vive com a sua esposa.

Fabiano... eu não sei por onde ele anda, mas peço á Deus que o abençoe como fizera com o seu irmão Cristiano.

Gato casou-se com uma japonesa e foi para o Japão, mas atualmente o casal mora em Atlanta nos Estados unidos.

Valdijan morreu ao bater sua moto na traseira de um caminhão na Praça da Matriz de Aparecida. 

Eu sei que nós não fomos o melhor grupo de Funk da nossa cidade, mas com certeza, nos bailes da vida e nas memórias dos clubeiros e clubeiras do final dos anos 80 e meados dos anos 90 ainda restam as lembranças dos meninos mais novos da época, que dançavam um funk charmoso e cativante. 

Eu, o Joãozinho, o Boy Jonh, devido as minhas machucaduras jogando bola, ressurgiu o vitiligo em minhas pernas nas regiões das canelas, mas não me afetou em nada. Eu já era feliz com a vida e comigo mesmo desde o primeiro beijo aos dezesseis anos de idade.



                                                                                *


Se havia algo que eu não esperava que fosse acontecer comigo de forma tão inusitada, era a perda da minha virgindade sexual. Eu passava por uma fase excelente em se tratando de paqueras e passatempos com direito á reprises, porém, sexo com uma garota ou mulher que fosse, eu ainda não tinha experimentado. 

Adolescentes de todas as épocas vivem um modo de vida extremamente aventureiro. È como se para estes não houvesse o amanhã. Eu, particularmente achava que o melhor da vida era conquistar o máximo possível, de garotas. “Conquistar” A arte da conquista era por mim estudada de forma imaginária. Quando eu interessava sexualmente por uma garota, eu criava um cenário, ocasião e ensaiava as palavras certas para dizer á ela. Acontece que, eu mesmo respondia por ela.  Geralmente o desfecho do meu diálogo solitário com a minha ausente interlocutora, terminava me deixando com a perspectiva de levar um fora dela numa situação real de abordagem para o Coito. Toda essa negatividade me fazia evitar demonstrar á minha pretendida, que eu estava interessado em fazer “coisas com ela. Se ela estivesse na mesma roda de amigos que eu estava, eu não dirigia a palavra á ela, e também, quando ela falava alguma coisa, eu fingia não prestar atenção no que ela dizia. -aquele que tenta te ignorar é o que mais te nota. Irônico.

Aos poucos eu fui me descobrindo e saquei que na verdade a minha negatividade diante das garotas, transmitia á elas certa acessibilidade e liberdade para que elas pudessem se insinuar para mim com toda a segurança e certeza de que eu era uma presa fácil. Realmente, eu não deixava garota nenhuma passar batido. No entanto, eu ainda era virgem, com quase dezenove anos de idade.

Foi quando aconteceu A primeira vez de um rapaz.

Certa noite de sábado, eu e mais dois amigos fomos ao Setor Jardim Cristal. Nosso destino seria o centro comunitário onde estava acontecendo uma festa.  Quando nós chegamos á esquina próxima ao local do evento festivo, uma galerinha formada por quatro rapazes e uma garota, estava por ali bebendo Drear com Coca-Cola.

Eu conhecia todos os rapazes. Foi quando um deles ao me vê me chamou pelo meu nome e me intimou á chegar junto na roda dos biriteiros.

 Demos toques de mãos, estalados e girados. Imediatamente o rapaz mais inteirado da patota nos apresentou á única garota que estava entre eles. Três beijinhos no rosto de cada um dos meus dois amigos, e, ao chegar a minha vez, ela falou assim: então você é o Joãozinho... Prazer. Eu sou a “Fulana”. -e olhou direto nos meus olhos para em seguida dar um beijo em cada lado do meu rosto e um selinho nos meus lábios. 

Fiquei surpreso com a atitude dela e por ela demonstrar admiração ao saber que eu era o Joãozinho.

Rapidinho eu fiquei á par da causa e efeito. Aquele meu colega que me chamou para fazer parte da galera, quando ele me viu disse á ela que eu tinha um grupo de Funk que se chamava Nova Geração, e que ele era chegado pra caramba do líder do tal grupo. –eu era o cara em evidência na conversa entre os dois.

Ficamos conversando, clareados pela luz do poste elétrico na esquina da rua.

Á princípio, eu não dei muita atenção á Fulana. Enquanto nós, a turma toda, conversávamos, eu fazia de conta que ela nem estava por ali. Mas ela era muito excitante, e bem atualizada em termos de moda. Calçava um par de Tênis Redley na cor Vinho, vestia uma saia curta de lycra preta e bem justa. Por duas vezes ela me pediu para eu segurar a o copo para que ela descesse a barra da saia que teimava em subir e deixar á mostras suas coxas cobertas por pelinhos descoloridos. Uma camisa roxa completamente feminina completava o figurino. Pele não loira nem branca. Eu diria morena clara. Cabelos lisos, escuros e de tamanho médio num corte repicado nas pontas, e uma longa franja frontal jogada para o lado esquerdo da cabeça. Calculei que ela tivesse vinte anos.

Enquanto eu á reparava, ia ganhando tempo esquentando a goela e turbinando as ideias com a bebida do copo dela, que agora dividíamos.  Já estava rolando um clima entre mim e ela.

Caminhamos rumo á festa, eu e ela, lado á lado. Os demais seguiram na nossa frente. Ela já se mostrava sob o efeito da bebida de alto teor alcóolico misturada com refrigerante, e levava o copo descartável quase cheio da mesma. Não estava trôpega e nem tropeçando em seus próprios pés, mas a voz dela revelava que ela já havia bebido além da conta, para uma garota. Quando chegamos á entrada do local da festa. Ela não quis entrar naquele momento e me pediu pra que eu fosse com ela para detrás da parede do salão. Ela me puxou pela mão, me levando para o canto do paredão. Paramos ali. Ela colou o corpo dela ao meu. 

Não houve troca de ideias, nem sequer a pergunta de praxe partindo de mim á ela: -aí, você tá a fim de curtir comigo essa noite? No mínimo era essa a pergunta feita por um rapaz á uma garota em uma abordagem de paquera naquela época.

Suavemente o rosto dela foi deslizando no meu pescoço. Em seguida foi migrando para a minha orelha. Eu sentia o respirar e a umidez dos lábios dela. E aquele cheiro de álcool. As mãos de Fulana trafegavam pelos meus cabelos e pescoço. Abarquei com as minhas mãos a cintura dela. Eu não estava bêbado por ter ingerido um pouco de bebida. Ela, apesar de estar um pouco grogue, estava me deixando aceso com os preliminares. 

Escorei-me á parede e, de repente ela atracou-se ao meu pescoço, com ímpeto ela beijou a minha boca. Freneticamente ela me beijava, eu me surpreendi com a desenvoltura dela me beijando com ânsia e fazendo massagens manuais no órgão determinador de minha masculinidade. A tara dela me deixou aturdido. Eu experimentava pela primeira vez o que a maioria dos rapazes como eu, talvez não sentisse: prazer e Frustração ao mesmo tempo. Não sei se era por causa da quantidade de bebida que ela ingeriu, ou se ela possuía apetite desordenado por sexo. Diante de tantas dúvidas da minha parte em relação ao comportamento dela, eu me sentia inseguro, mas a minha libido não deu lugar á frigidez naquela hora. No entanto, eu fiquei paralisado enquanto ela parecia querer praticar alpinismo em meu corpo. As coxas dela se revezavam ralando em minha s pernas. Ela estava sedenta de sexo.  Eu estava faminto, mas muito ressabiado.

Homens têm a mania de querer estar no comando de tudo, e, quando algo acontece daquela maneira, a gente tende a achar que está sendo fácil demais. O meu desejo de fazer sexo com ela naquele exato momento, era grande, mas eu não queria que fosse sobre um chão coberto por brita e nem escorado á uma parede com chapisco grosso.

Percebendo a minha recusa, ela me puxou para o portão de saída dos fundos. Atravessamos a rua e chegamos á uma quitinete de dois cômodos. Era o local onde ela morava sozinha. Havia ali no primeiro cômodo, um sofá, fogão, geladeira e um armário. Sentei-me no sofá. Ela tirou toda a roupa, e ficou só de tanguinha preta. Começou á fazer uma cena de sedução infalível. Sensualmente, ela tocava as alças da calcinha, prefigurando um streeptiesy.

Estatizado no sofá com a mão tateando meus próprios lábios, eu a observava exibindo só para mim ali na sua sala/cozinha. Meu corpo pedia o corpo dela sobre ou sob o meu ali mesmo no sofá. Quem sabe nós fizéssemos sexo a noite inteira. Era impossível resistir à tentação vendo a sedutora garota com os cabelos soltos caindo sobre seus seios, e a boca de lábios carnudos úmidos, molhando os dedos de uma mão, enquanto a outra ia deslizando na barriga dela em minha frente, seminua e com uma ânsia louca de ser toda minha naquela noite. Eu estava inebriado de tesão, mas também muito espantado. Falava-se muito sobre AIDS naqueles dias. E, eu não tinha sequer uma camisinha.

    Fulana puxou-me em direção ao quarto. Fui me entregando aos poucos á ela que tirou toda a minha roupa me jogou sobre a cama. Deitado nu, com as mãos cruzadas á nuca, eu contemplava um estonteante corpo que escalava o meu corpo, molhando-me do rosto ao umbigo, degustando todo o meu abdômen. Evitou chegar ao ponto diferenciador entre o meu sexo masculino e o feminino dela.

De joelhos, tendo o meu tronco entre as pernas dela, ela massageava o meu tórax. Em seguida, seus peitos fartos se revezavam em minha boca fazendo-me saborear seus mamilos petrificados com sabor de óleo corporal. Minhas mãos deslizavam ás costas dela, que agora beijava a minha boca com voracidade.

Ao terminar o beijo, ela levou a mão em meu “falo” erigido. Ouvia gemidos no momento em que os lábios genitais dela tocou o meu mastro.

Ela aprontou um escândalo ao ser penetrada e continuava balbuciando frases sórdidas, pressionando meu tórax com as mãos ao sentir inteiro o meu membro dentro dela. Eu permanecia calado. Enquanto isso eu seguia acariciando com jeito os seios dela. Ela se contorcia toda.

Por uma fração curta de tempo, eu a observei e vi que ela fechou os olhos, e mordeu o lábio inferior grasnando feito uma fera. Subitamente, ela desabou sobre mim, sufocando-me com seus cabelos cobrindo o meu rosto. Movimentava como se estivesse troteando no lombo de um garanhão, e então, gozou rápido e intensamente.

Depois de beijar a minha boca por alguns segundos, ela juntou os cabelos num molho só e os jogou ás costas dela. Disse que queria mais. E perguntou se eu queria mais também. Não respondi. Simplesmente a coloquei de joelho sobre a cama, e me posicionei ás costas dela. Ela encostou sua parte traseira em minha dianteira e levou as mãos aos meus cabelos. Eu deslizei as minhas em toda a zona frontal do corpo dela. Ela dizia que aquela noite era só nossa, e que eu fizesse o que eu quisesse com ela, e como eu quisesse. Apoiou as mãos na cabeceira espelhada da cama, e se preparou para ser possuída em posição canina. Segurei no quadril dela e comecei á penetrá-la. No início ela gemeu prazerosamente. Ao meio, eu vi através do espelho, que ela fechou os olhos e espremeu os lábios. Ao fim da penetração, ela dava urros roçando o rosto de um lado e outro no lençol marrom, se movimentando pra frente e pra trás num ritmo acelerado.

Vai e vêm frenéticos, gemidos lancinantes, gritos roucos. E o segundo orgasmo dela aconteceu de modo á fazê-la espalhar-se sobre a cama.

Não houve tempo para uma pausa. Levantamo-nos, e de pés sobre o piso do quarto, nós nos abraçamos, nos beijamos e nos pomos prontos para mais uma sessão. Naquela posição, eu a fiz abrir o compasso das pernas, pondo um pé dela sobre a cama, e o outro no piso. Ela se equilibrou me abraçando sobre os meus ombros. E assim, de corpo colado de frente um ao outro, eu introduzi a minha régua cilíndrica de carne e nervo rígido, dentro da marcação central do compasso dela.

Eu subia e descia lento me sustentando nas pontas dos pés. Ela me mordia como louca, enquanto eu esquadrejava sua entranha. Falava coisas desconexas, tipo, pra eu chamá-la por nome diferente do dela.  Eu permanecia mudo. O que passava em minha cabeça era meio confuso, devido ao estardalhaço que ela aprontava. Mas no fundo eu estava me sentindo o “Cara”

Ouvi quando ela respirou profundo olhando para o teto depois de alcançar o ápice do prazer pela terceira vez.  Naquele momento eu senti uma explosão ejaculatória. Ela pressentiu que eu estava chegando lá pela primeira vez com ela, -mas não fazia ideia que era pela primeira vez na vida com uma parceira real. 

Foi como se o céu tivesse desabado, o chão se abrido. Sei lá, foi bom pra mais de metro. Mas eu ainda permanecia encafifado.

     Quando terminamos, ela se deitou exausta e saciada. Eu me vesti e me sentei na cama. Ela se sentou atrás de mim, me abraçou e perguntou se eu havia gostado.

    -Claro que eu gostei. Vamos pra festa.

Passamos á noite juntos. Hora dentro do salão dançando músicas românicas. Hora sentados na calçada alta de um bar desativado. Cinco horas da manhã, eu fui embora sozinho, á pés.

    Viciei naquela fogosa. Por mais quatro vezes tivemos relações sexuais. Alguns meses depois ela se mudou para o Setor Finsocial em Goiânia. Aí, não nos encontramos mais.


Para a minha decepção, numa noite, depois que eu e alguns amigos e amigas, resolvemos ir embora de uma festa de formatura realizada no Tangará Praia Clube, nós, -éramos dez pessoas, sendo cinco garotos e cinco garotas. -bem, dois e duas da turma enquadravam perfeitamente na onda Juventude transviada. Maconha, cocaína e qualquer outro tipo de entorpecentes, para eles e elas, eram bem-vindos. Eu e os demais, ficávamos apenas com as biritas. Bebíamos Presidente com Guaraná Antarctica, fumávamos cigarros, e pelas ruas cantávamos Rock dos grupos Titãs, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana e outros. 

Acontece que, houve entre nós o consenso de irmos ara a casa de um dos nossos colegas.  Chegando á casa dele, encontramos mais bebidas quentes, uma televisão e um vídeo Casset. Então nos sentamos no piso da sala, e, ele, o dona da casa, colocou uma fita de filme pornográfico para a gente assistir. Foi a primeira vez que eu assistia á um filme pornô. 

Na primeira cena a atriz se masturbava em várias posições com um pênis de silicone e encenava ter alcançado inúmeros orgasmos escandalosos. De repente entrou em cena um homem com uma máscara do Zorro e começou a transar com a vagabunda. E a performance dela com o sujeito era a mesma. A mulher fingia possuir uma fonte inesgotável de esperma renovável.

Enquanto todos os expectadores na sala faziam algazarras assistindo aquilo, eu recordava da minha primeira parceira de sexo. Foi constrangedor para mim, imaginar que talvez a “Fulana” também estivera fazendo simulações de orgasmos nas vezes que eu e ela fizemos sexo.

Quando acabou o filme ainda tinha muita bebida e cigarros. Bebemos, fumamos muito e houve também muita sacanagem, cada qual com a sua qual. Mas ninguém foi flagrado fazendo sexo. Só sei que depois daquele filme, eu passei á achar que a Fulana que me desvirginou, era uma profissional do sexo. E que eu, eu era o Cara, porcaria nenhuma.




                                                                                    *


A adolescência passa tão rápido quanto um beija-flor que migra de uma flor para outra em um mesmo jardim á procura do néctar puro e vitalizador. Tal como um pequeno Beija–flor eu sobrevoei, não sobre jardins floridos, mas fiz dos pântanos o meu canteiro, de modo fantasioso, transformando os espinhos em pétalas de rosas e as pragas em lírios do campo. As dificuldades da vida não me impediram de ser um adolescente de bom caráter moral. A minha pobreza não me privou de curtir a vida de modo intenso e prazeroso.

Quando percebi, já havia me tornado um jovem maior de idade. Dezenove anos e muitos meses, foi quando eu me dei conta de que eu não havia cumprido o meu dever com a pátria amada idolatrada, salve, salve.

Tudo que eu mais queria era não servir ao exército, tal é que, eu me alistei depois dos dezenove anos de idade. Com muita relutância eu compareci á junta de serviço militar antes de completar meus vinte anos. A apresentação seria no parque de exposição agropecuária. Levantei–me cinco horas da manhã, tomei o ônibus e fui. Cheguei ao local aproximadamente seis horas daquela manhã do dia 26–08–1992. Alguns minutos ali, do lado de fora do parque eu imaginava milhões de mentiras para contar aos oficiais. Uma das mentiras seria: Eu sou arrimo de família. – puah, eu não tinha nem um passarinho para dar alpistes á ele. –A minha namorada está grávida de um filho meu. –bla, bla, bla, bla, bla, bla.

Enquanto eu traçava uma estratégia para não servir a pátria, um soldadinho metido á general abriu o portão. Esfreguei as mãos e me preparei para entrar. –Você está atrasado. Volte amanhã ás cinco horas.

Eu pensei em mandar aquele reco ir tomar naquele lugar, mas deixei quieto e voltei pra minha casa. Era impossível que eu chegasse ali ás cinco da manhã, tendo que usar o transporte coletivo. Onze horas da noite eu entrei no ônibus e fui para o local novamente. Eu iria passar a noite ali para não perder o horário. Cheguei á meia noite e alguns minutos. Fiquei sentado escorado ao portão. A madrugada foi chegando e o clima esfriando, eu precisava esquentar o esqueleto. Quando eu intentei deixar o lugar para ir procurar por alguma coisa que eu pudesse por fogo nela para me aquecer, um carro da polícia militar me apareceu. A sirene deu um giro e um grito. Dois policiais desceram da viatura. Eu ergui as mãos antes de receber a ordem de: – mãos na cabeça meliante. –Os dois, desceram com as armas em punhos. A rua estava deserta. O giroflex desligado. –tô frito.

Um dos policiais descansou os braços sobre o teto da viatura, mas com a arma na mão. Observei e me tranquilizei, pois a arma não estava apontada em minha direção. O outro se aproximou de mim colocando o revólver no coldre. Minhas mãos permaneciam na nuca. O que se aproximou de mim me perguntou se eu tinha fogo. Deduzi que ele estava querendo me testar para depois me desacatar me chamando de maconheiro ou qualquer outro tipo de mau elemento. Respondi que não tinha fogo. Em seguida, ele me perguntou o que eu fazia ali àquela hora da noite, e que eu podia baixar as mãos. –Eu vim para me apresentar ao exército. –coração batendo compassadamente. Eu já havia perdido o medo.

Não houve mais perguntas. Confesso que os dois homens da lei foram boas praças.

Quando eles foram embora, eu dei início a minha busca por algo para que eu pudesse queimar para me aquecer. Na calçada havia caixas de papelão e pequenos pedaços de madeiras de caixas de verduras e outros bagulhos. Faltava–me aquilo que o policial perguntou se eu o tinha. Fogo. Conferi a carteira e notei que a minha grana dava pra eu comprar fósforos e até isqueiro. Eram já quase duas horas da madrugada. Saí pelas ruas á procura de um bar aberto. Cheguei á Avenida independência e avistei a bodega com as portas abertas e com mesas ainda do lado de fora. Duas mulheres e um rapaz ocupavam as cadeiras e a mesa. Passei por eles esfregando as mãos e fui ter com o dono do bar. Não deixei de reparar que as duas mulheres tinha aparências de damas da noite com maquiagens fortes e cabelos com Glitter. O carnaval já havia passado, mas resquícios dele ficaram nas cabeleiras volumosas e negras das morenas. As roupas delas eram iguais às usadas por motoqueiras dos anos 70, com jaquetinhas de couro e botas de canos longos. Presumi também que elas fossem criadoras de gado para exposição no Parque agropecuário. Na verdade, eu não era bom em reconhecer personalidades através de suas preferências por vestuários.

O rapaz parecia um colegial filhinho de papai. Usava tênis, calça Jeans e um blusão de frio. Contraste absoluto. O branquinho parecia estar tentando convencer ás mulheres, de que ele não era o que elas podiam estar imaginando que ele era: um prego. Sim, um prego. Eu notei quando ele pegou o cigarro de uma das duas acompanhantes e deu uma tragada daquelas que a fumaça é lançada de volta ao ar antes que o fumante á deixe chegar aos pulmões. Em seguida veio á tosse.

Cheguei ao balcão e pedi ao atendente bocejante, que me vendesse uma caixa de fósforos. Negociação feita. Peguei o caminho de volta. Quando eu dobrei á esquina, ouvi alguém gritar. – ô maluco espere aí, – Olhei para trás, lá vinha o rapaz correndo ao meu encontro. Pensei que eu devia correr dele, pois, o blusão que ele usava podia esconder uma arma. Mas o jeito de ele correr me pareceu um pouco desajeitado. Sinceramente, eu determinei que aquele indivíduo fosse prego até no jeito de ele correr. Ele pendeu a cabeça para o lado esquerdo e dobrou os braços com as mãos fechadas sobre os peitos. A cena me fez recordar de quando eu brincava de pega-pega com o meu irmãozinho Nelino no terreiro da nossa moradia na Vila Brasília. –Vou pegar o nenenzinho, vou pegar, vou pegar. E nós corríamos em volta do pé de amoras.

O branquelo se aproximou ofegante.

–Aí, põe um pra nós aí.

–Põe um pra nós o quê?

–Um brau. Eu sei que você vai fumar um.

O filho da mãe pensava que eu fumava maconha.

–Eu não uso isso...

Ante que eu terminasse de falar, ele apalpou os bolsos da minha calça. Eu dei-lhe um soco duplo com os dois punhos nos peitos dele, fazendo-o andar de costas por uns dois metros. Ele ameaçou me furar com uma faca, mas eu não vi a faca. Corri assim mesmo, em direção ás madeiras que seriam queimadas para me aquecer naquela madrugada. Ele veio com tudo atrás de mim.

Achei um rodo sem o cabo entre as madeiras e papelão. Apossei-me do rodo numa rapidez estupenda. Parti para cima do meu perseguidor. Quando eu levantei o rodo para amassar o crânio do sujeito, ele cruzou os braços sobre a cabeça e me pediu para não machucá-lo. –não, não. Eu tava brincando com você.

Foi por um tris que eu não o deixei troncho de uma orelha.

E, a madrugada estava apenas começando.

Desacreditando de que poderia ser mesmo uma brincadeira sem graça que ele me aprontara, eu falei para ele sair de perto de mim. Mas ele tirou o blusão, o sacodiu, e levantou a camisa para me mostrar que ele não portava arma alguma. Permaneci ressabiado, porém, ciente de que no mano á mano a situação me favorecia. O branquelo tinha o porte físico de um Sul africano desnutrido, embora, a fisionomia dele fosse de um adolescente da classe média.

Quando ele me viu ajuntando os pedaços de madeiras, ele se tocou que eu havia comprado a caixa de fósforos para acender um fogaréu que naquela temperatura fria da madrugada seria muito útil para mim e também para ele.  Então ele se ofereceu á me ajudar. Rapidinho as labaredas já estavam lambendo os nossos rostos.

Ficamos por ali ao redor da fogueira, ele de um lado, eu do outro. Precavido, eu ainda o ameacei pela última vez. –se você entrar numas comigo novamente, eu te jogo no meio desse fogo. Fica na sua. –ah, deixa de ser bobo. –foi o que ele disse abanando a fumaça do rosto dele.

Ficamos calados á princípios. Eu o analisava e fui percebendo que ele não era um mau elemento. De vez em quando ele puxava assunto perguntando o meu nome, onde eu morava, e até quis saber se eu já havia feito programas com prostitutas.  Não menti em nenhuma das respostas. Basta-me revelar que eu nunca paguei á uma mulher para receber dela caprichos sexuais.

Continuamos ali conversando, rindo dos acontecimentos anteriores á aquele momento, acontecidos em nossas vidas. Marcelo era o nome dele. Ele me contou que ele começou á fumar maconha por causa de uma garota que ele á namorou. Ela era simpatizante da filosofia Hippie, e fumava brau, mais que o Raul Seixas. Frequentemente os dois subiam o pé da serra (Lugar alto onde fica a TV Anhanguera e uma torre de transmissão de rádio semelhante à Torre de Pizza, só que, aprumada, no Setor Serrinha) Lá no alto da serra, eles fumavam maconha, e aloprados, os dois ficavam por lá até ao escurecer. Depois, eles desciam e fumavam mais maconha em terra plana. Foi uma louca paixão, mas não rolava muito sexo entre os dois. Acontece que, certa tarde  de domingo ele foi á casa da maluca, ela não estava. Ele escalou a serra, mas não á encontrou por lá. Desceu morro á baixo e foi á casa onde moravam dois hippies. O cheiro de suor e fumaça de marijuana se fazia sentir do portão da residência onde ele flagrou sua querida namorada maconheira, outra garota e os dois hippies, todos pelados ouvindo e dançando No woman no cry, de Bob Marley.

Aos poucos eu fui interagindo melhor com o recém-conhecido. Contei á ele sobre as decepções que eu sofri em relação á maconha. Julguei rudemente e feri a pessoa que eu tanto amava, ao saber que ela era usuária da erva. O fim do meu grupo de Funk, por razão de alguns dos membros terem viciados em drogas. Quando eu tive que me mudar para o barracão com o meu primo Manoel, eu não entendia ainda por qual motivo foi que o meu irmão Eurípedes decidiu que eu me mudasse da boa morada em que eu vivia com a minha mãe, o Nelino e ele, o próprio Eurípedes. Mas, Meses depois, eu soube que ele encontrara um patuá de maconha no canto externo da minha ex-casa. Meu irmão nunca insinuou que fora eu quem estava usando ou traficando drogas, mas talvez, ele pudesse, na ocasião, ter a desconfiança de que eu pelo menos sabia de quem era aquele pacote de erva danada. Na verdade, eu sabia á quem pertencia o bagulho. Mas eu não o deduraria, mesmo que a culpa caísse sobre mim. Eu já o tinha deixado triste comigo por causa do vício dele na época da nossa infantilidade.

Ao ouvir a minha indignação contra o uso de qualquer entorpecente, o meu agora companheiro de fogueira, tirou um isqueiro do bolso da calça e o entregou á mim. –pode ficar com esse isqueiro. Daqui pra frente eu nunca mais fumo maconha e nem cigarros. –foi o que ele me prometeu.

O teste para confirmar a decisão que ele tomou naquele momento viria alguns minutos depois.

Aos poucos o fogo ia se esvaindo. Quando olhei no meu relógio-calculador já eram três horas da manhã e alguns minutos. Nisso, nos chegam mais dois alistados. Eram irmãos retardatários, não gêmeos. Fortes e de peles amorenadas. Faladores e fumadores de maconha também. Chegaram fumando um canudo com espessura e tamanho de um talo de folha de mamona que não tinha mais para onde crescer. Seria mais fácil eu dizer que o baseado tinha o volume de quatro cigarros longos enrolados em uma folha de caderno de matérias escolares.  Um deles segurava no ombro do outro, assim de lado e dizia: - dá uma gonda aí. Tá pegando fogo. (Gonda é uma lambida de língua dada em volta da folha para não deixar que a brasa vire chama acesa e consuma a maconha antes do tempo) depois da salivada as tragadas eram revezadas por um e o outro. Tipo toma lá da cá. Passa a bola. Agora é a minha vez. -sabe como é o papo dos maconheiros.

Eu e Marcelo os observávamos, eles em pé, nós dois agachados ao redor das brasas.

Até que um deles nos ofereceu uns pegas. – vai uns beques aí chegados?

Meneamos as cabeças indicando que não queríamos perder a sobriedade naquela madrugada fria, que ainda tinha muito para acontecer.

Notei que o Marcelo ficara um pouco tenso. Seus olhos fixaram nos dois que queimavam o bagulho. Imaginei que ele fosse voltar atrás á promessa que ele fizera de não mais fumar maconha, mas, ele me olhou e moveu a cabeça indicando que o papo foi reto, ele não fumaria mais.

Continuávamos agachados. Os dois recém-chegados, enfim, apagaram o pavio e imitaram as nossas posições em volta do braseiro.

–Pô véi, é louco demais. Já imaginou se a gente morasse dentro do sol? Eu queria ser o Tocha humana. Eu ia por fogo na Itália inteira. Os cara botaram fogo só em Roma. Eu incendiaria até o Polo norte e...

–Ih, cê tá viajando vacilão. Tá lombrando feio, esse otário. Não pode pitar um, que começa dar uma de astronauta. E tome gargalhada dos dois irmãos.

Eu e Marcelo ríamos mais comedidos, afinal de contas, Marcelo já havia embarcado muitas vezes naquelas viagens loucas. Eu, embora não houvesse ainda experimentado o efeito da erva, já tinha convivido com usuários de maconha e de drogas mais pesadas. Portanto, aquilo para mim era fichinha. Mas eu teria que alertá-los sobre a possível visita dos policiais, que horas antes haviam me abordado. Os pus á par da questão. Os dois se levantaram juntos e parecia que procuravam um lugar para se esconderem. Eu os aconselhei á irem catar mais madeira, papel e borracha. Ninguém entendeu a minha sugestão, mas, eu expliquei á eles, que a madrugada ainda esfriaria mais e mais, e, os dois precisavam se livrar do cheiro da maconha. O cheiro de borracha e de madeira poderia disfarçar a maromba da erva.

Rapidinho eu os vi dobrando a esquina. Como relâmpagos eles voltaram trazendo espuma que eles arrancaram de um sofá velho.

Fumaça, quando inalada, ela segue o curso até ao pulmão, isso é óbvio. Porém, quando criança, na Vila Brasília eu era doador de sangue á percevejos que dividiam comigo um pedaço de espuma que eu a considerava um colchão. Quando mudamos para o Setor Expansul, eu tive a honra de aniquilar com mais um milhão de chupa-sangue, pondo fogo na bendita espuma. Na ocasião eu descobri que a fumaça da espuma sendo queimada, não segue as mesmas vias até chegar ao pulmão. Ela faz um desvio e vai direto para o cérebro da gente. Chega doer toda a massa cefálica. É horrível a ardência que a fumaça da espuma causa. É como cheirar amônia acidentalmente. –isso também aconteceu comigo em 1985. Pois bem, eu peguei as espumas das mãos dos irmãos maconheiros e as fiz inflamar em chamas. Quando a fumaça subiu eu mandei que os dois dessem umas cafungadas para camuflarem o cheiro de Tijuana. Cafungadas triplas em dupla foram dadas. Mãos nas cabeças pressionando os crânios, e dá-lhes palavrões. Se as maconhas que eles fumaram naquela noite os deixaram ligados, a fumaça da espuma causou-lhes confusões e apagões mentais. Enquanto os dois amaldiçoavam a fumaça assassina, eu e Marcelo ríamos feito crianças no circo.

Depois do sufoco, os irmãos ficaram agachados como á mim e o Marcelo.

–Ô bicho, cê queria matar a gente? Cê tá é louco com uma ### dessas.

–Pior Agnaldo. Esse bicho é mais maluco do que nós dois juntos.

Então eu descobri que um se chamava Agnaldo. Era o mais forte dos dois. O nome do outro era Adeilson.

Se tem uma algo que me deixa encabulado, é a facilidade que a gente tem de fazer com que alguém sob efeito de maconha, mude o rumo da conversa. É incrível a capacidade que eles têm para discorrer sobre qualquer assunto, e ao mesmo tempo perderem o foco dos mesmos e dos demais subsequentes.  Eu usei essa tática para fazê-los não me cobrarem pelo meu senso ardiloso. Comecei á falar sobre a guerra no Kuwait e sobre a minha aversão á servir o exército. Essa manobra os levou imaginariamente ao Golfo Pérsico. Agnaldo foi o primeiro á se manifestar, dizendo que ele queria servir e ser mandado para lá. No dizer dele, ele mataria os inimigos e arrancaria uma orelha de cada um, como troféu. Marcelo o perguntou de qual lado ele lutaria. Ele respondeu que estaria do lado dos alemães...

–Burro, filho duma égua. Nós não estamos falando da segunda guerra mundial não.  Golfo Pérsico. Ano passado, filho duma puta. –Adeilson xingava o próprio irmão.

–Vai tomar no### filho de rapariga.

Tapas e socos comiam. Marcelo e eu ríamos até quase virarmos aos avessos.

Os policiais não retornaram. Os dois irmãos voltaram á fumar mais maconha. Marcelo não fumou e continuou me garantindo que nunca mais ele fumaria.

Falamos de quase tudo naquela madrugada. Menos de coisas sérias. Quando o portão foi aberto já éramos mais de vinte alistados que se apresentaria ao serviço militar. Quando fomos passar pelos exames já passava das oito horas da manhã. Nós quatro não nos separamos durante todo o tempo que permanecemos ali. Passamos pela conferência de peso e altura e também, condicionamento físico. Eu aleguei que o meu joelho direito não estava em perfeitas condições, até comecei á andar de modo á fazer com que os avaliadores acreditassem que eu era causa perdida. Funcionou. Fui dispensado. Aliás, todos naquela manhã foram dispensados. Com uma notificação: quinze dias depois tínhamos que comparecer ao terminal rodoviário de Goiânia para jurarmos bandeira. Eu nunca tinha ouvido falar desse procedimento e achei que aquela história de juramento de bandeira fosse uma forma de futuro recrutamento emergencial.

Quinze dias depois, lá estava eu com mais uma centena de dispensados, com o sol torrando as nucas por umas duas horas espera, até que os oficiais chegassem para a cerimônia de juramento. Após os posicionamentos deles em nossa frente, foram mais umas duas horas de blá, blá, blá., sermões vindo da parte deles, e obediência, disciplina, bravura e honra ao nosso Brasil varonil, da nossa parte em forma de jura militar. Ainda hoje eu não sei se todos que são dispensados do serviço militar precisam jurar bandeira, mas em 1992 eu jurei defender a minha pátria, colocando-me, ainda que contra a minha vontade, á disposição para se houvesse necessidade, apossar-me de um fuzil e mandar bala em... qualquer direção que não tivesse um alvo humano na linha de tiro. Não que eu fosse um covarde, mas o que eu nunca desejei fazer na vida, é ter que matar alguém por motivos idiotas feitos os de uma guerra. Eu sempre acho que ao invés de soldados se matarem em defesa de seus países, quem deveria trocar tiros são os dois presidentes rivais. Guerras acontecem por razão do egoísmo, ganância e desumanidade desses chefes de estados que querem afirmar as suas prepotências e poder de controle sobre essa ou aquela situação.

Bem menino ainda, eu já tinha uma solução para o fim da guerra entre Irã e Iraque. E era bem simples. Jogassem os dois ditadores numa rinha de galo. O que tivesse a espora mais afiada e ligeira liquidava com o adversário e ponto final. Se possível, o resultado fosse os dois brigões impossibilitados de respirarem, inspirarem, influenciarem, enfim, disputando um lugar melhor no inferno, enquanto que os civis e militares de ambos os países vivessem em paz. Com a guerra no Golfo Pérsico, a solução seria a mesma. Se acaso, Saddam tivesse sobrevivido ao confronto sugerido por mim anteriormente, George Bush faria o favor de em seu último ato heroico exterminar com o bigodudo, e em seguida ir á lona também. Quantas vidas teriam sido preservadas!

Pra resumir, em se tratando de guerras, eu sou admirador de Mahatma Gandhi.

   Eu posso dizer que, quando eu tinha a expectativa de me tornar um soldado de combate á inimigos, me tornei um enviado de missões diplomáticas á três pessoas que tinham seus conflitos, seus vícios, suas coragens, seus medos.

    O que me restou daquela madrugada foram as cinzas da fogueira que aqueceu á mim e á mais três desconhecidos que se tornaram meus companheiros por algumas horas, mas que realmente valeria a pena se tivéssemos nos encontrado mais vezes e nos tornássemos amigos inseparáveis como fomos colegas horas antes e durante a nossa apresentação ao serviço militar.


                                                                               *


Ferida que não se cicatriza. Dor que não sara. Lembranças que me marcam e causam emoções. Emoções que me leva á guardar ressentimento enquanto eu esteja vivendo. 

Minha mãe e meus irmãos, com exceção de minhas duas irmãs casadas e de meu irmão Eurípedes, já moravam no mesmo barracão em que eu também morava. Dois dos meus irmãos, pelos menos dormiam com frequência debaixo do teto que nossa mãe, meu irmão Edeir, o caçulinha Nelino e eu vivíamos debaixo dele. O modo de vida dos dois mais velhos que eu, era completamente diferente do meu. Eles frequentavam os Clubes de festas mais inflamados da capital. Carneiros clube. Sargentos. Cruzeiro do Sul. Clube social feminino e outros mais. Consequentemente, esse modus vivendis escolhido por eles, os transformaram em Caras da pesada. Eu levava vida de modo badalado, porém, na legalidade, não deixando de curtir o lado bom de viver.  

Em um dia qualquer do mês outubro de 1992. Estávamos eu e meu amigo Carneirinho no barraco onde eu morava. Minha mãe e os meus irmãos não estavam lá naquela hora.

Eu havia coado um café para mim e meu amigo. Enquanto bebíamos e falávamos sobre a nossa ida logo mais á noite no clube recreativo, eu o animava dizendo que o dinheiro para os nossos ingressos eu já o tinha, porque havia recebido uma boa grana á uns quinze dias atrás, por ter trabalho de vigilante por uma semana em uma mansão no Setor Sul. Falamos das garotas que teria vindo á minha casa para que nós ensaiássemos uns passinhos de funk. -cê é foda Boy Jonh. Elas não te acharam aqui e foi em minha casa, pensando que você estava lá. Tinha duas meninas que a gente ainda não conhecia ainda. –Carneirinho lamentando a minha ausência.

Eu disse á ele, que no clube a gente chegaria junto nas meninas. Éramos tão confiantes em nosso potencial, e talvez tivéssemos boa sorte naquela noite, se justamente no momento em que eu estava indo pôr os copos na pia da cozinha, dois policiais da polícia civil não nos tivessem surpreendido chegando de arrombo á área do barracão, com as armas nas mãos e perguntando quem era o João. Assustado eu disse que era eu. Um policial me mandou entrar em meu barraco, com as mãos para cima. Eu não estava entendendo nada do que estava acontecendo e nem mesmo do que havia ocorrido para que eles viessem me capturar. 

Um deles me vigiava na cozinha, o outro entrou no quarto e procurou algo que eu imaginava o que seria. Deduzi então, que eles estavam á procura de droga. Lembrei-me das únicas pessoas que poderiam ter guardado drogas ali em minha casa. Mas uma vez eu pagaria por um erro que eu não o havia cometido. 

Saindo do quarto sem nada ter encontrado, o policial ordenou que eu os seguisse até ao Gol quadrado descaracterizado de viatura. Obedeci ao comando e fui com esperança de que eles me liberassem. Mas não foi assim que aconteceu. 

Antes de entrar no carro, eu pedi ao Carneirinho que contasse aos meus irmãos, que eu estava sendo levado por uns policiais. Carneirinho saiu correndo á mil por hora. Ele era menor de idade ainda. Talvez por isso os policiais o deixou ir embora.

No banco traseiro do veículo eu perguntei aos policiais, o que estava acontecendo, porque eu não fiz nada de errado.

O motorista disse que eu iria contar tudo, ou então, eles me afogariam no córrego Santo Antônio. Tudo que eu podia dizer á ele, era que eles estavam prendendo a pessoa errada. O medo me deixava sem argumento, porém, a minha inocência me dava plena confiança de que eu não sofreria tortura e muito menos ficaria preso. 

O veículo alcançou a BR 153, e rumou no sentido Goiânia. Chegando em Furnas, (companhia elétrica) dobrou á direita abandonando a rodovia federal. Então passávamos pelo Conjunto Mabel. Até ali havia pessoas nas ruas e muitas residências. Algumas quadras depois, só havia mato e uma estrada cascalhada. Fiquei apavorado. Eu seria mesmo afogado.

Notei que o carro dobrou á esquerda. Isso não me tranquilizou, porque o Córrego Santo Antônio segue seu curso em circulo e descamba por bairros de Aparecida. Eu poderia dizer que todos os caminhos em terras aparecidenses, levam á algum ponto do Córrego Santo Antônio. E podia afirmar naquela hora, que, aqueles policiais estavam me levando para a sessão afogamento em águas Santantonense.

O motorista maneirou a carreira para descer no terreno cheio de pedra até chegar á casa. Foi um alívio quando eu vi uma casa no meio do cerrado. Senti vontade de abrir a porta e sair correndo. Mas, a minha esperança de sair ileso daquela situação, foi renovada no momento em que um dos policiais desceu do carro e foi á cerca da propriedade. Chamou por alguém. Um rapaz apareceu para recebê-lo. Depois de um pouco de conversa, o policial voltou para o Gol. Ao entrar e bater a porto do veículo, ele avisou ao motorista, que dirigisse até á delegacia.

Respirei um pouco mais tranquilo.

Quando alcançamos novamente a BR 153, seguimos em sentido Centro de Aparecida. Nesse ínterim, o policial do lado do motorista me disse que eu tive sorte. Não entendi. Então ele me faliu sobre Eldine, e me incentivou á processar o pai dela.

Nessa hora, o policial motorista olhou para o parceiro dele e disse assim.: -não dá em nada. O homem é rico.

Eu quis saber do que se tratava toda aquela conversa, mas, o policial que dirigia falou pra eu pôr as mãos para o céu e esquecesse aquela sequência. Me lembro muito de quando numa gíria formal entre os dois, o motorista falou assim: -Fica na sua, faz de conta que não rolou parada nenhuma, e vê se não bate língua sobre essa sequência entre nós.

Me deixaram em frente ao meu barraco e foram embora. Não fui ao clube. Fiquei em minha casa naquela noite imaginando o que teria acontecido com Eldine, e, que culpa eu teria, se com ela houvesse acontecido algo ruim.   

Eram tempos difíceis aqueles e, eu não escolhia trabalho, desde que fosse honesto, me punha pronto á executar a tarefa.

Mais ou menos vinte dias antes, numa segunda-feira, eu procurava trabalho de jardineiro no Setor Sul, bairro nobre da capital. Toquei a campainha de uma residência á qual eu podia ver apenas o segundo andar, devido à altura exagerada do muro revestido com pedra ardósia, o portão todo fechado, e a distância entre o sobrado e a entrada da propriedade.

Esperei que alguém viesse me atender no portão. Mas, uma voz feminina no interfone me perguntou quem era. Eu respondi que estava á procura de serviço. A mulher me pediu pra que eu esperasse pela chegada do patrão que havia ido ao colégio buscar a filha dele, mas já estava voltando naquela hora. 

Sentei-me no meio fio e esperei confiante de que o dono da mansão me contrataria para fazer qualquer coisa na propriedade dele. Alguns minutos depois, próximo á hora do almoço, ele chegou trazendo com ele, dentro do carro, a filha dele. Pensei que ela fosse uma adolescente, mas não, a menina era bem novinha. Enquanto o portão eletrônico se abria a menina pôs o queixo sobre o vidro do carro e ficou me olhando sentado no meio fio. De repente, ela saiu do carro e me disse oi, e foi correndo para dentro. Logo que o pai dela adentrou com o carro, ela voltou sem a mochila e veio até á mim. –você vai trabalhar aqui? –eu respondi que não sabia ainda, e que ia depender do pai dela. Novamente ela voltou para ir ao encontro do pai dela, e regressou á mim segurando a mão dele.  

Combinado ficou de eu prestar serviço para o homem, de vigilante da sua residência. Eu teria que dormir lá. Ao lado do portão tinha uma guarita onde eu passaria as noites.

A menina Eldine tinha doze anos de idade. O pai era um homem muito ocupado e vivia sempre viajando, por isso ele me convocou para montar guarda em sua residência. Naquele mesmo dia ele viajou não sei pra onde, fazer o quê, também não sei. A empregada dormia na casa.

Na segunda noite, Eldine começou á vir para a guarita onde eu dormia, trazendo uma garrafa de café e biscoitos, então ela se sentava em minha cama e eu ia para uma poltrona que ficava abaixo da janela. Ela me dizia que me trazia café e biscoitos para me manter acordado porque ela não conseguiria dormir sabendo que eu pudesse estar dormindo na guarita. Eu terminava de fumar um cigarro, coisa quase rara que eu fazia, ela pediu pra eu me sentar ao seu lado na cama, eu me sentei, ela colocou a cabeça em minhas pernas e me pediu pra eu ficar deslizando a mão nos cabelos dela, louros e lisos como seda. E assim ela me falou sobre sua dificuldade em fazer amigos na escola ou em qualquer outro lugar. Eu achava que as pessoas tinham medo do pai dela. Por isso ela vivia sempre muito sozinha. Eldine era meiga, pura, singela e muito amável. Eu á ouvi falar da vida dela e tudo mais que ela queria me contar e contava antes de pegar no sono com a cabeça sobre as minhas pernas.

Quando ela pegou no sono, eu á peguei nos braços e a levei dormindo até a porta da mansão. A empregada á conduziu para dentro da casa.

    Depois da primeira noite, ela ia todas ás noites á cantina, mas ficava me pedindo pra cantar com ela aquelas musiquinhas infantis, seguidas de bate-palmas, e disparolava á conversar. 

Na quinta feira daquela semana, de manhã eu conversei com a empregada sobre o que Eldine estava indo fazer na guarita. E disse á ela que a gente só conversava, e que a maior parte do tempo eu passava ouvindo a menina falar sobre ela.    A empregada me disse que a pequena era uma gracinha e gostava muito das pessoas, e que eu podia ficar despreocupado.

 Eldine pediu o meu endereço por escrito, para ela me mandar cartinhas. Para mim, era pura demonstração de amizade e muita simplicidade da parte dela.

    Na sexta-feira o pai dela me despediu do posto de guarda da propriedade. A empregada foi quem me pagou pelos dias trabalhados e me deu o ultimato de dispensa. 

    Uns quatro dias depois, Eu recebi uma cartinha enviado por Eldine. Eu nem acreditava que ela fosse me escrever um dia.

  Na carta, ela dizia que o pai dela havia posto outro guarda na guarita, mas ela nunca iria levar café e biscoitos para ele. Achei estranho o fato de ele ter me dispensado e contratado outro logo em seguida. 

Quase no final da carta, ela escreveu que numa noite a empregada a flagrou ela fumando cigarro escondida no quarto dela, e contou para o pai dela, e ele me culpou por isso. Eu me senti profundamente culpado por ela ter começado á fumar, mas ela confessava na carta, que foi ela que afanou um dos meus cigarros numa noite sem que eu percebesse. Então eu entendi que esse foi o motivo que o fez me mandar embora. 

     Num período de mais ou menos quinze dias após eu ter sido mandado embora, ela me mandou três cartinhas. Não falavam de amor, ou de qualquer outra forma de sentimento afetivo que ela sentisse por mim. Eu entendia que ela gostava de mim como o único amigo dela, para ouvi-la contar sobre o dia á dia dela. Eu não me esqueço de uma vez, que ela me escreveu dizendo que a empregada estava ficando muito boba. Quando ela ia se arrumar para ir para o colégio, a empregada dizia para ela, que era pra ela ir com o cabelo preso para não pegar piolho. –eu ria pensando: não sei se filhos de ricos pegam piolhos. Eu nunca escrevi uma carta para ela, pois nem cheguei á gravar o endereço da mansão onde ela morava. E, depois que os policiais foram á minha casa, eu só conseguia acreditar que foi por causa da amizade dela com um rapaz pobre como eu, que fez com que o pai dela desconfiasse de alguma coisa entre nós, mas eu não conseguia entender que coisa seria essa. Também cogitei a possibilidade de eu ter impregnado nela o cheiro de cigarro. Houve vezes de eu ter acabado de fumar no momento que ela chegava para conversar comigo. Então, nessa época, atenuou-se mais em mim o complexo de inferioridade.

Não voltei á casa de Eldine para saber o que foi que fiz. Talvez fosse melhor, que tivesse ido lá. Somente assim eu não teria carregado dentro de mim essa tristeza que me acompanhará para o resto da minha vida. 

Ela me escrevia. Os policiais vieram á minha casa. Tudo indicava que o pai dela sabia onde eu morava. Concluí que, se o pai dela quisesse fazer algo comigo, ou se retratar pelo o erro que ele cometeu ao me acusar de algo, ele viria ao meu encontro.   Eu nunca toquei em Eldine com malícia ou má intenção, tanto é que, enquanto ela estava na guarita, eu mantinha a porta e a pequena janela, abertas.

O fato era: eu levava a vida assim, com medo de saber o porquê de as pessoas me prejudicarem sem eu ter dado motivos para isso. Suportava calado, querendo ir tirar satisfações, mas temia ouvir ofensas piores, que me fizessem perder o controle da situação. No fundo eu acreditava que um dia tais pessoas viessem ter comigo para me pedir desculpas. E assim, eu prosseguia a minha jornada nessa vida, deixando que o tempo cicatrizasse todas as minhas feridas e me aliviasse a dor por eu ser uma pessoa tão castigada pela incompreensão de outras.   

    No âmago de minha alma, eu quero que ela, o pai dela, e até mesmo a empregada, um dia tenham eles pensado em mim com o mesmo respeito que eu tive por aquela garotinha.

Eldine ficará marcada em minha memória, como sendo a menininha que eu a considerei como uma criancinha rica infeliz que necessitava de um amigo.








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-Você é gay.

-Não, não sou.

-É gay sim...

-Eu já falei que não sou...


Eu estava me arrumando para sair. Era sexta-feira, a ferveção, para mim, começava justamente nesse dia da semana. Cetinha veio ao meu encontro no meu barraco, todo esbaforido e com aquele jeito de sempre: alegre e muito conversador. Já chegou dizendo que ele tinha conhecido algumas mulheres novas no pedaço. Quando eu o perguntei de quem se tratava, ele me intimou á ir rápido com ele ao bar do Domingos. 

Saí apertando o cinto na cintura. Cetinha estava eufórico e muito animado. Presumi que ele havia conhecido as misses universas, pela empolgação dele naquela hora no começo da noite. –elas são gatas demais. Os otários que estão alugando elas, não conseguiram nada. –dizia ele enquanto seguíamos velozes na avenida.

Quando nos aproximamos do bar, logo vi alguns coroas jogando Sinuca e outros tagarelando em suas mesas debaixo da cobertura de telha de amianto, na calçada. Até então, eu não vi mulher nenhuma naquela bodega.

Fomos para outra margem da rua e ficamos observando o movimento. De repente eu vi uma figura estranha que saiu de um canto qualquer do bar. Ela vestia calça jeans desbotada e uma camiseta num tom cinza. Seus cabelos de tamanho médio estavam molhados, deixando marcas de água na camisa ás costas dela. Eu a vi de perfil e de costas, mesmo assim calculei que aquilo não era uma mulher, sim uma bichona. E era daquelas que vão ao banheiro de cinco em cinco minutos para ajeitar as bolas dentro da calça. Quando ele inclinou ao balcão para falar com a atendente, eu percebi que aquele gay tinha o físico de um praticante de natação. Ombros largos, panturrilhas grossas. E nenhum sinal de cintura se veria naquele corpo, não fosse o cinto de lona apertado ao máximo.  Comentei com o Cetinha sobre aquela coisa.

Ele me disse que se “ela” fosse um gay, ele não estava nem aí, e o faria de sorvete assim mesmo. Para o Cetinha, aquela pessoa era uma mulher das mais fiçurante que ele já havia visto perdida no Expansul. Aí então ele me contou que ele estava naquele bar desde ás cinco horas da tarde, bebendo umas e de repente as duas belezuras desceram do ônibus e chegaram até a mesa dele e o perguntou se era ali o setor Pontal Sul. Ele disse que não era e ás convidou para se sentarem com ele, mas, fulano e ciclano, que ali estavam enchendo as caras também, foram para a mesa dele e começou á falar merdas. As belas perdidas deram um jeito de sair fora indo ao banheiro. Então Cetinha foi ao meu encontro.

Continuamos do outro lado da avenida. Eu de braços cruzados, vendo os coroas, - á maior parte deles, casados, - mexendo com o sorvetinho do Cetinha. Cetinha por sua vez, ficava feito um mané, gesticulando muito, coçando a cabeça e as vezes segurava em meus ombros para me sacudir insistindo que nós fôssemos logo abordar as mulheres. Ele dizia que eram duas mulheres. Eu tinha visto apenas uma e tinha as minhas dúvidas. Porém, olha só o que eu vi saindo do bar e chamando a amiga para embora. 

-Vamos Yorrana, a gente tem que ir. –ela implorava com vós puramente feminina.

-Espera, Maria Clara, agorinha a gente vai. Eu quero comprar um cigarro. –falou com voz achicletada, tirando de vez a dúvida do Cetinha. Era gay. E voltou ao balcão. 

Ah, mas a amiga dela parecia-se com uma estudante do horário noturno, que havia matado aula para perambular pelos Guetos de Aparecida, e foi parar justamente no meu bairro, na minha área de domínio, na avenida onde eu morava, especificamente no bar onde eu comprava fiado até a atendente. –mas eu já estava devendo muito ao dono do botequim. -Ela usava uma saia bege rodada e camiseta branca. A protuberância no busto dela não deixava dúvida, era uma garota, mulher, seja lá o que fosse, era do sexo feminino. Em toda a minha vida eu já havia visto homossexuais que tinham trocado seus verdadeiros nomes, por Jordana, Roberta Close, Lorrana, e agora, Yorrana, mas, pelo nome Maria Clara, eu jamais vi. Determinei que Maria Clara era 100% feminina de cabelos longos naturalmente castanhos.

-Cetinha, cê tem cigarro aí? –perguntei ao desorientado.

-Tenho, tá aqui. Pra quê?

-A “mulher” que você tá á fim dela, quer fumar...

-Oi, oi, - ele gritou. –Eu tenho cigarro aqui ó.

No trajeto que o sorvetão do Cetinha fez nas dependências do bar, levou uma passada de mão na bunda, uma cheirada no cangote, e quando alcançou a pista, um dos jogadores de Sinuca foi até á porta e disse: -vem em mim, gostosa da disgrama. -e sacudiu as bolas dentro da calça dele.

Eu não conseguia entender tamanho assédio á um fresco, que, mesmo que eu não tivesse o benefício da visão, eu perceberia que aquela Coca era Fanta.

A primeira á chegar até á mim e Cetinha, foi a belezinha real. Eu notei que ela estava assustada e com medo dos ânimos dos beberrões. Se ela havia ido ao banheiro, foi para retocar o batom.

-O que foi, você tá com medo? –perguntei.

-Ah não, eu quero ir embora daqui, mas aquela doida não pode ver homem. –quase chorando.

A noite estava de temperatura normal, mas ela parecia estar sentindo um frio tremendo. Esfregava os braços e ombros. Eu achava que ela estava temendo ser estuprada naquele bar. A fragilidade dela me deixou mais convencido de que ela era mesmo uma donzela perdida entre feras famintas.

Olhei para o Cetinha e indiquei á ele, que se virasse com a Yorrana. Eu ia trocar umas ideias com a medrosinha. 

Quando Yorrana chegou, foi logo enfiando a mão no bolso da camisa do Cetinha, sacando a carteira de cigarros dele e falando: -Nossaaa, esses homens daqui são uns grossos. Parece que quer me comer viva... – e deu aquela risada escandalosa, para depois pedir o isqueiro.

Cetinha teve a honra de produzir a chama e levá-la á ponta do cigarro “dela”

Quando eu o vi olhando para o sorvete, com os olhos vidrados naquele rostão quadrado de pele plastificada, com sobrancelhas feitas á lápis, eu segurei o riso. Mas, depois que o cigarro foi aceso, Yorrana deu um giro 380 graus em um só pé, e então disse: - uau, você é bom de fogo, hem gato! Cetinha disse: he, he, quando eu tô frio, eu sou igual brasa. –nessa hora eu tentei segurar mais o riso, meus tímpanos quase estouraram, então gargalhei sem querer, segurando em minha nuca e olhando para o céu. Maria Clara também riu. Cetinha grudou na cintura da Yorrana e a impediu de me dar o Feedback.

Depois que nos recompomos, Cetinha sugeriu que nós fôssemos para o bar novamente. Yorrana consentiu prontamente. Maria Clara fez algumas objeções. Se aqueles homens viesse ás incomodar, ela chamaria a polícia. Eu esperava pela decisão que seria tomada. Porém, Cetinha ás avisou que, o bar ficaria mais perigoso depois das oito horas da noite, com a chegada dos extra-muros do Cepaigo. 

-O que significa extra-muros do Cepaigo. –Maria Clara quis saber.

-São os presidiários que podem sair ás ruas e só voltam ao presídio para dormir. –respondi.

Até a Yorrana bambeou as pernas musculosas.

Cetinha mentiu. Oito horas da noite, era a hora que eles estariam se apresentando no presídio para dormir. Eu saquei a manobra dele. A história de irmos beber no bar era conversa fiada. Na verdade, ele não teria coragem de dar uns malhos no baitola na frente de todos os nossos conhecidos que ali bebiam também. Cetinha queria era sair do local. Voltar para o bar não seria a alternativa correta. Eu temia o jeito saliente da Yorrana. O comportamento espalhafatoso dela ia dar em confusão com a turma no boteco. Passou pela minha cabeça, que o Cetinha também estava sem grana. Pelo sim, pelo não, o melhor á ser feito seria darmos o fora dali.  

Para mim, a ocasião era perfeita. Elas, amedrontadas. Eu tinha apenas um dinheiro suficiente para um cigarro picado e duas balinhas de troco. Só faltava eu criar uma expectativa de um suposto assalto, ou algo pior que pudesse acontecer com as duas ali.

Então eu daria a grande sacada.

-É o seguinte, vocês duas não são daqui, e pelo que eu soube estão perdidas nesse bairro perigoso. O penúltimo ônibus que passa por aqui passou ás seis e meia. O último só passará ás onze e meia.  Eu e o meu amigo vamos levar vocês ao ponto de ônibus na BR 153. Aí vocês vão embora para não correrem o risco de serem...

-Ai credo. Vamos embora logo. –Maria Clara, puxando-me pela mão.

Yorrana foi bem receptiva com o Cetinha, e os dois vieram atrás de mim e Ana Clara. Cetinha matava Yorrana de tanto rir lá atrás. Eu e Ana Clara falávamos sobre a “amiga” dela. Até que resolvemos esperar pelos dois. Quando eles nos alcançaram, Yorrana e Cetinha se beijaram na boca em nossa frente.

Ana Clara encarava aquilo com muita naturalidade. Eu recordava da cena que presenciei na minha infância, entre o meu colega engraxate e o homossexual no prédio abandonado na Avenida Goiás. Não chegou á me parecer tão grotesco, mas Ana Clara percebeu que eu fiquei de certo modo incomodado. Então, ela me convidou á seguir em frente. Seguimos. Os dois continuaram se beijando.

De repente, Yorrana veio correndo e atravessou em nossa frente e disse:

-E vocês dois, vão ficar só na conversa?

Esperei que Maria Clara respondesse alguma coisa, mas, ela apenas me olhou, arqueou as sobrancelhas e cerrou os lábios. 

Tá no papo. Pensei. Mas, não tive iniciativa ou resposta alguma. Continuamos andando.

Cetinha passou correndo por nós quando chegávamos já ao conjunto Vila Adélia. Muita gente estava zanzando por ali. Em meio á tantos senhores, senhores, garotas e rapazes que ali havia, dava para imaginar, o que Cetinha não queria que as pessoas vissem. Quando chegamos á BR ele já nos esperava na margem da rodovia. Novamente ele abraçou Yorrana, e os dois seguiram á nossa frente.

Maria Clara, andando lentamente corria os dedos em seus cabelos esparramados sobre o seio direito dela. Eu seguia andando do lado esquerdo dela. Ela parecia estar oferecendo o pescoço dela pra eu tateá-los com os meus lábios e mordiscar a orelha dela. Caramba! Eu não sabia o que fazer ou dizer...

Até que, vimos o Cetinha correndo em direção ao ponto de ônibus que distava á uns cem metros ainda. Yorrana corria atrás dele, exigindo que ele devolvesse alguma coisa que ele tomou “dela”. Nessa hora, Maria Clara me perguntou o que eu achava dos dois. Eu sabia que ela se referia ao agarra-agarra entre eles, mas eu não iria comentar o que eu achava á respeito do lance dos dois. Na verdade, eu conhecia muitos homossexuais assumidos e outros não. Mas confesso que em relação á aos travestis, esses que se transformam em quase mulher, eu achava que eles são artistas não reconhecidos como tais. Ás vezes, desrespeitados e agredidos físicos e moralmente, mas que atuam de forma voluntária nos palcos da vida. 

Eu não estava nem um pouco preocupado em dar a minha opinião sobre o meu amigo e o amigo dela, e saquei que ela só queria quebrar o silêncio entre mim e ela. Então eu seria sagaz e oportunista.

-O Cetinha está com a Yorrana porque eu falei pra ele que eu fiquei á fim de você no momento que eu te vi... –esperei a reação dela. Francamente, naquela fase da minha vida, eu já havia paquerado inúmeras garotas, mas á cada nova abordagem, era como se eu me sentisse um iniciante mais ou menos sincero e 100% inseguro. Eu fiquei mesmo gamado nela no momento que eu a vi no bar. Não disse ao Cetinha, como o que eu disse á ela, até porque, aquilo foi uma escolha que eu fiz, devido eu ser hétero com H maiúsculo. Ter dito á Maria Clara, que eu fiquei gamado nela á primeira vista, causou em mim aquela velha e estranha sensação de ter dado bola fora. Malícia eu tinha para perceber as insinuações positivas de uma garota direcionadas á mim, Mas, eu sempre enfrentava uma espécie de expectativa negativa depois de uma iniciativa tomada. E, Maria Clara continuava enfiando os dedos em seus cabelos.   

De repente, ela parou e ficou me olhando, e eu, parei e enfiei as mãos nos bolsos da minha Calça Jeans.

Os lábios dela pareciam duas fatias de maçãs argentinas, daquelas mais graúdas, cobertas com caramelo de mação do amor. A língua dela cuidava de deixá-los úmidos enquanto ela me encarava com aquele ar de quem espera por um beijo antes da embarcação chegar e levá-la embora. 

Só um imbecil filho da mãe não colaria o corpo dele ao dela para os dois unirem suas bocas e se saborearem em um beijo frenético ou suave.  Se existia um imbecil desses nos anos 90, podem apostar que ele não seria o único. 

Eu á convidei á seguir comigo para o ponto. De braços cruzados, ela me acompanhava silenciosa, e com certeza, pensando que ela estava diante de um babaca que á atiçou e á deixou á ver navios no acostamento da BR 153. O meu coração naquela hora já estava batendo de modo compassado. Estava tudo sobre controle. Maria Clara demonstrou que estava interessada em mim. Só faltava a gente chegar ao ponto onde pelo menos tinha uma coluna de concreto que sustentava a cobertura do ponto de ônibus, feita de zinco. Seria escorado á coluna, que eu á atracaria pela cintura e daria um trato nela. E, ali mesmo, eu descobriria algo perturbador.

Como eu havia planejado, me escorei na coluna de concreto do ponto de ônibus. Maria Clara veio ficar perto de mim, de braços cruzado alisando os ombros dela.

Ela olhava para a extensão de rodovia, talvez a espera de ver a aparição do ônibus que surgiria do lado de lá das duas pistas, para então fazer o retorno e parar no ponto onde nós estávamos.

Vendo ele de perfil, esfregando os próprios braços, eu sentia que ela queria ser surpreendida por qualquer fala minha, ou atitude. Tipo assim: - se você estiver sentindo frio, eu posso te esquentar. Ou podia ser que ela quisesse que eu fosse mais impulsivo e á abraçasse sem nada dizer. Analisar comportamentos e expressões faciais das garotas era o meu forte. Para mim, gestos e expressões revelam muito sobre as pessoas. Confesso que ao vê-la me encarando e passando a língua nos lábios dela, minutos antes, me deixou temeroso justamente por eu ter entendido que o jeito dela me olhar e o uso que ela fez da língua, foi malicioso e sedutor demais. Outro detalhe, ela andava com um travesti!!!

Cetinha e Yorrana passavam o tempo trocando tapas, rindo e se abraçando, e ás vezes correndo um atrás do outro na encosta da BR.

Como forma de me preparar para chegar junto nela, eu dei uma abaixada para  afeitar as barras da minha calça. Olhei-a de lado, de baixo para cima e constatei que as nádegas delas tinham as formas de dois tobogãs emparelhados. E aquilo era natural, porque o uso de silicone para modelar bumbum, ainda não era tão comum naquela época. –anos 90. Aparecida de Goiânia. Goiás. Brasil... não se esqueço disso.

Fiquei contemplando aquela obra de arte em anatomia humana por alguns segundos... -Dane-se, ela é uma garota, e bem fiçurante. –me levantei e ajeitei, agora, a gola da minha camisa. Ela se virou para mim.

-Que horas o ônibus passa? –ela me perguntou, chegando um pouco mais perto de mim.

-Esquece o ônibus. –falei, levando a mão no ombro dela e puxando-a de encontro á mim. 

Sem esboçar nenhuma reação de fuga ela colou a parte frontal do corpo dela ao meu. Antes do primeiro beijo nós trocamos afagos manuais moderados. Ou seja, eu deslizava as mãos nas costas dela. Ela deslizava as delas tórax, sobre á minha camisa. Coladinhas de rostos e cheirinhos nos cangotes. Até que, os cabelos dela causaram uma coceirinha no meu rosto, e eu procurei me livrar do desconforto dando bicotinhas a partir da testa até chegar ao queixo dela. Essa parte preparatória era o meu jeito de demonstrar para as garotas que eu não era um afobado. Mas, no fundo, era o meu medo de me tornar apenas mais um “tempinho perdido” para elas. Eu necessitava de ser bem avaliado.

Dias antes àquele encontro, eu havia estado com  uma mulher em uma festa no clube recreativo. Foi num sábado á noite. Ao deixar ela na casa dela, ficou marcado de a gente se ver no domingo á noite. No horário marcado eu fui á casa dela. Ela não estava. Fiquei esperando por ela, com o meu amigo Cristiano que morava em frente á casa dela na Vila Adélia. Sentamo-nos em um banquinho na calçado, bebendo cervejas e falando sobre o nosso grupo de funk. Foi quando um carro parou de frente ao portão da casa dela. Então nós á vimos descer do carro pela a porta traseira. Ela nos viu, mas não disse nada. Em seguida, um rapaz também desceu e a abraçou por trás. Ao final do desembarque, dois homens e duas mulheres, sendo ela uma delas, entraram na casa. Em mim ficou a certeza de que eu não á agradei. Nunca mais a procurei.  

Outro fator que me fazia agir assim, era simplesmente o fato de eu valorizar demais as garotas e mulheres. Não que eu me sentisse o mais feio dos mortais, mas sim por saber que “elas” para nós homens, sempre será a nossa maior conquista. –há quem queira discordar do que eu digo, mas no ponto de vista de realizações pessoais, pelo menos para mim, que não tinha grandes perspectivas da vida, uma garota ou mulher, significava aquilo que me fazia me sentir alguém realizado e feliz. 

Maria Clara se deixava levar por minhas carícias suaves e comedidas. Então notei que os olhos dela estavam fechados, e sua boca ansiava por ser beijada.

O beijo aconteceu de modo tranquilo. Sem volúpia, apenas degustativo e demorado. Mas esse prelúdio suavizado ganharia uma articulação mais expressiva, energizada. O culpado dessa mudança comportamental, foi porque ela, depois do beijo, ficou de costas para mim, e os tobogãs anatômicos dela ficaram ralando no meu... –deixa pra lá, Dali para frente, as minhas mãos ficaram bobinhas e serelepes.  Ela foi permissiva e sem frescura.

O que vem ao caso aqui não é a nossa performance no quesito agarra-agarra, mas sim, o que foi que descobri ao ser um pouquinho mais, digamos, “Caliente”.

   Usarei uma linguagem diferente para contar esse trecho de minha aventura com MC, porque fui informado por alguns amigos de longa data, que suas esposas, filhos e filhas estão acompanhando as minhas postagens. Eu espero que os leitores mais antenados,  entenam as minhas figuras de linguagens a partir deste ponto à seguir.    

Bom, com a minha montanha russa estava sendo imprensada pelos tobogãs da Maria Clara, eu resolvi dar uma volta pelo parque e fui abrindo caminho com as minhas mãos que adentraram a tenda coberta de tecido. Ela permitiu sem nenhuma objeção. 

Minhas mãos ficaram por ali, dando voltas nas mediações á frente dos tobogãs dela, até que eu encontrei o caminho que levaria á gruta que guardava o mais valioso ponto de atração. (a fonte dos desejos)

Quando as minhas mãos estavam à porta da entrada da mina do tesouro, Maria Clara me dissuadiu da investida, forçando-as para baixo, e ficando de frente para mim, segurava as minhas mãos rentes as minhas pernas.

Maria Clara manteve o corpo dela pressionando o meu contra a coluna de concreto. Eu já estava á ponto de Homem aranha. –sabe como é... –Precavida, ela segurou firmes as minhas mãos e ás uniu na região da vértebra lombar dela. –espertinho, deixe essas mãos quietas aí.

    A recomendação dela me fez desconsiderar a ideia que eu me divertia num parque aquático. Agora, ela seria um sítio arqueológico, e, eu, um arqueólogo procurando objetos valiosos. 

    Minhas mãos voltaram para debaixo da tenda pela entrada dos fundos, e ficaram por ali tateando cuidadosamente o terreno onduloso que outrora era um tobogã. Suavemente encontrei as alcovas laterais frontais. Meus dedos deslizaram sobre um tecido que cobria o meu achado. Pareceu-me, ter encontrado a tampa almofadada de um Baú do tesouro escondido. Era bem macio o entrave que impedia que eu penetrasse a cavidade da mina encontrada. Tudo bem, eu não passaria dali. A Função das minhas mãos seria apenas deslizar sobre o tecido, como se estivesse retirando poeira de um objeto precioso. 

    Demorou pouquíssimos segundos, a minha alegria. –Ah não! Vamos parar com isso.  - dessa vez, ela se afastou de mim, abruptamente.

    -Foi mal. Você é lacre inviolável? 

    Ela não me respondeu de imediato, e demonstrou estar mais assustada do que decepcionada. 

     De qualquer forma, eu saquei que ela não era.

Sem lamúria ou qualquer outro indicativo de decepção em relação á mim, ela simplesmente disse: - se eu soubesse que os ônibus demoram tanto para passar nesse setor, eu não teria vindo parar aqui. –e ficou olhando para os carros que passavam na rodovia. 

    Pensei em insistir. Porém, ocorreu-me, que Maria Clara fosse uma área geográfica já explorada, mas, com aquele aviso: (não ultrapasse. Terreno temporariamente inapropriado para procedimento topográfico) -sabe como é... eu estava de barraca armada, mas talvez, ela estivesse naqueles dias que não se pode deixar que ninguém finque estaca em certa demarcação dela. Ou seja, aquela superfície de relevo fofinho que eu encontrei, podia ser a tapagem de um Gêiser, e ao rompê-la com as minhas mãos, elas sairiam molhadas de líquido vermelho. –entendeu? 

Só de pensar, fiquei enojado.   

   Fui até á ela, a abracei por trás novamente e pedi desculpa outra vez. Ela virou-se ficando de frente á mim e segurando nos meus antebraços. Não havia tristeza no olhar dela, nem raiva em sua expressão facial. Era eu que estava ali, sentindo aquela estranha sensação de ter sido grosseiro por ter sido afoito, e patético por querer desfazer a má impressão que eu causei.

  -Você está de “paquete... catchup?” - perguntei curioso.

  Maria Clara me confessou que ela era uma “hermafrodita”. Não usou essa palavra, falou ao modo dela, dando explicações sobre a anormalidade sexual dela, e que ela faria uma cirurgia para se tornar unicamente mulher. E também, que, ela não sentia atração por mulher, e que o órgão masculino dela era bem pequeno e inativo, sexualmente falando.

    A vida real não é como um romance literário, no qual o personagem principal é um mocinho educado e bem intencionado, ou um cafajeste malfeitor. Tive vontade de aprontar um esculacho, deixá-la ali e ir-me embora. Mas a minha personalidade forte, e natureza explosiva, já haviam dado lugar á um novo modo de ser, viver, lidar com as pessoas e comigo mesmo desde o meu primeiro êxito com Marta na escola.

   

   Cetinha e Yorrana ficaram escorados ao alambrado da Cerealista Agromen, localizada ás margens da Rodovia, poucos metros afastados do ponto. Imaginei que Maria Clara chamaria Yorrana para ficar perto dela, mas não a chamou. A partir daquele momento, próximo um do outro, nós esperamos o ônibus chegar. Quando ele apontou no outro lado da rodovia, nós nos abraçamos pela última vez. 

    Maria Clara, á meu ver, era 100% mulher. Se havia algo que pudesse revelar á alguém que ela era meio á meio, estava escondido á frente dos tobogãs, dentro de uma tenda de cor bege, coberto por um tecido que acobertava a tampa almofadada de um Baú do tesouro, um sarcófago com o cetro do Faraó, que seja. E daí? Foi surpreendente, chocante, constrangedor, mas, sobretudo, marcante.

   Quanto ao meu amigo Gilson Cetinha, ele era o tipo de cara que qualquer um gostava dele ao primeiro encontro. Era alto astral e não levava nada à sério. Sempre alegre e de bem com a vida. Se alguém dissesse algo surpreendente, como por exemplo: eu vi uma galinha que bota três ovos de uma vez. Ele dizia que ele tinha uma galinha que botava meia dúzia até ao meio dia e mais seis ovos do meio dia para tarde. Cetinha era incrível e sabia fazer a gente esquecer os problemas, com suas conversas improváveis. 

Nossa amizade durou até o ano 2011, foi quando ele faleceu. Eu só soube dias depois. A causa da morte dele não me foi esclarecida. Eu soube apenas que ele passou mal e morreu antes de ser levado ao hospital.  

   Cetinha fora aquele cara feliz que eu tive a oportunidade de conhecê-lo e me tornar amigo dele. Enquanto viveu fantasiou de palhaço o tempo e sorriu para a vida. 












                                                O FINDAR DAS ILUSÕES




Funk, Festas, cigarros, bebidas, garotas, mulheres, brigas, noites em claro, dias perdidos. Medos superados, mágoas esquecidas. Idas e vindas da vida, sonhos perdidos, ilusões vividas. Ah! Se tudo que eu vivi dos dezesseis anos de idade até aos vinte e quatro e meio não foi o suficiente para me fazer feliz, então foi tudo ilusão, porém uma ilusão boa de viver.

Gostei e fui gostado por algumas garotas, jovens, e mulheres maduras. Desprezei e fui desprezado também. 

Não me envolvi com drogas, roubos ou qualquer outra tipo de modalidade criminosa. Não conheço cadeia nem por visitar alguém em celas. Fumei cigarros e bebi bebidas alcóolicas. Nunca me relacionei com gays, mas aprendi á respeitá-los, porque eles também têm seus medos e coragens. 

Então eu cheguei ao ano 1997. E no 22/03/ daquele mesmo ano eu fui á minha última noitada no Sesi de Aparecida. Não dancei música alguma, não briguei. Bebi uma lata de cerveja e fumei alguns cigarros.

Naquela noite, ao voltar da minha última noitada, enquanto eu fumava o último cigarro recordando o meu passado eu cheguei á conclusão de que foram os meus medos que me levaram até ali. Eram ecos de um passado, mas, no passado era tudo preto no branco: Sim ou não. Verdades, mentiras. E, mesmo que eu dissesse que valeu, eu teria que me perguntar: –e quando as cores estavam lá, Claras, confusas, nítidas, embaçadas, eu ás distinguia claramente? Nãooo! Eu não iria mais buscar respostas. Dei o último trago no cigarro, joguei a guimba fora, entrei para o quarto, dobrei os joelhos em oração eu me entreguei á Deus. Na manhã de domingo em diante eu viraria a página da minha história.

No dia 20/04/1997 eu fui batizado. Então me tornei um evangélico.

No dia 30/12/1998 eu me casei. No dia 20/12/1999 minha filha Quélita Elizane nasceu. A minha filha Rayane nasceu em 02 de dezembro de 93. Fará 23 anos este ano. Mas ela só veio me conhecer e me chamar de pai em 2009. A partir de então, ela passou á vir passar férias com a minha família em nossa casa. Ano passado ela não veio. Eu nunca á procurei, por achar que a mãe dela já teria se casado com outro homem, e eu não queria estragar a vida conjugal dela e seu esposo.

Em 2012 eu me tornei professor de música instrumental em minha congregação, mas, Deus sabe porque é que eu não continuo sendo aquilo que eu não pedi para ser. Só entendo que o que Deus dá ninguém tira. Ele me deu o dom da música. Quanto ao cargo ministerial, eu já disse, eu não pedi para tê-lo. Quanto ao meu afastamento das aulas de música, eu continuo esperando na providência de Deus.

Hoje, com humildade e sinceridade eu posso afirmar que sou um homem que superou a pobreza material. Tenho as minhas propriedades adquiridas com trabalho e honestidade. Sou pai e tenho uma netinha filha do meu enteado. Ele e a esposa dele asseguram que eu sou o avô da menininha que eu á amo muito e á considero como neta.

Minha mãe querida! Eu posso afirmar que ela nunca mais me bateu depois do dia que eu disse á ela que ela nunca mais me bateria. Não fui um filho exemplar, mas ela nunca soube que eu brigava nas ruas, nunca fumei, nunca bebi na presença dela, e nem dancei tipo nenhum de música perto dela. A minha mãe querida morreu em 10/05/2013. Uma parte de mim e da minha fé religiosa foi embora com a morte dela, mas eu sei que Deus reservou um lugar no céu para ela.

  Hoje eu posso dizer que sobrevivi numa época em que tudo levava á crer que os filhos de Pedro e Francisca não chegariam ao século 21... Mas aqui estamos.

  Eu me casei aos 26 anos de idade. Tenho uma filha linda, inteligente, musicista. E uma esposa preciosa. Levamos uma vida confortável, com algumas propriedades materiais que nos garantem conforto e bem estar.

  Sobre Deus eu posso dizer que ele esteve, está e estará sempre comigo. Quando eu era menino, ele também o era. Quando eu aprendia á falar e caminhar, ele aprendia comigo. Mesmo na pobreza, na vida dura, nos momentos de tristeza e alegria ele estava comigo. Todo tempo ele esteve, está e estará ao meu lado, á minha frente, em minha retaguarda, unido á mim, fazendo o que de bom eu fiz e faço, sendo o que melhor eu fui e agora sou. Ele sempre esteve prevenindo–me, e me livrando de situações perigosas, corrigindo–me por meus erros sem punir–me com penitências cruéis, ou ameaçar–me com o castigo eterno. Eu sei que ele é o Deus que se manifesta á mim de modo pessoal e compreensível. Ele nunca me abandonará.

Desde que ela morreu eu passei á escrever livros de ficção, como fuga para o vazio que se fez dentro de mim e só parei para escrever estes fragmentos da minha história de vida.

O meu primeiro livro leva o título Os caras bacanas. Nele eu mesclei a minha história real com ficção, dando um contexto feliz á minha relação com a ex–patroa Selma dona da Cardealtur Transporte e Turismo. Entreguei o original nas mãos de um editor, pensando que ele faria um bom trabalho de edição, mas ele só quis o meu dinheiro e fez uma porcaria com o meu trabalho.

O meu segundo livro, Sonhos roubados teve uma edição melhorzinha e foi repassado para a distribuidora Leart livros. Enquanto isso, eu vou postando os outros livros que eu escrevi. 

Ironicamente, eu, um semianalfabeto sonha em ser um grande escritor. Mas o maior dos meus sonhos é poder construir uma escola para levar educação escolar gratuita ás pessoas menos favorecidas. Os meus livros Sonhos roubados, A marca e Ameaça terrorista, dizem muito sobre as minhas aspirações em relação a minha visão de mundo, da humanidade em geral e da pessoa que eu pretendo e procuro ser.

Termino aqui esta postagem, mas, a minha história continuará até quando Deus quiser.


























































































































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